Por Marcelo Winter e José Afonso Leirião Filho
O agronegócio brasileiro, tradicional motor da economia nacional, atravessa um período de desafios. Embora os impactos mais perceptíveis tenham se intensificado no último ano, a origem das dificuldades remonta a um cenário econômico prolongado, caracterizado por taxas de juros elevadas, baixa operacionalização do crédito rural oficial e uma escassez de linhas de financiamento acessíveis.
Essa combinação de fatores criou um ambiente de alta pressão para produtores rurais e empresas do setor, fomentando o crescimento de pedidos de recuperação judicial (RJ) como uma alternativa de sobrevivência empresarial.
Contudo, nem todos os pleitos de RJ, diria a sua maioria, têm se pautado pela boa-fé ou pela observância dos requisitos legais especificamente aplicáveis aos produtores rurais pessoas físicas.
Embora haja casos legítimos de uso desse instituto, observa-se com crescente frequência o ingresso de pedidos que não atendem aos pressupostos básicos da legislação falimentar brasileira, em especial no que tange à caracterização do estado de crise econômico-financeira de caráter permanente e à adequada instrução processual. Tal cenário tem gerado insegurança e afastado investidores do setor.
Muitos dos pedidos de RJ atuais não refletem uma real situação de crise econômico-financeira, mas sim estratégias protelatórias e por vezes pouco fundamentadas. Essa prática indevida compromete a credibilidade do próprio instrumento da recuperação judicial, concebido originalmente como um meio de reorganização legítima e estruturada de empresas viáveis em crise.
O aumento do número de recuperações sem lastro em fundamentos sólidos expõe uma permissividade preocupante na análise de admissibilidade dos pedidos por parte de alguns magistrados.
A tolerância com instruções processuais falhas ou omissas, assim como a aceitação de requerentes sem comprovação mínima de atividade empresarial, estimula práticas irresponsáveis e induz o comportamento de agentes econômicos. Como consequência, investidores são afugentados a investir seu capital no setor.
O caso Grupo Safras: um ‘precedente’ emblemático
Em meio a esse contexto, uma recente decisão da 4ª Vara Cível de Sinop (MT) representa importante marco na revalorização do rigor jurídico no tratamento das recuperações judiciais. Trata-se do indeferimento de pedido de tutela cautelar antecedente para fins de mediação e determinação de emenda do posterior pedido de RJ do Grupo Safras, conglomerado agroindustrial com atuação relevante no estado de Mato Grosso, que indica endividamento de mais de 2.2 bilhões de reais.
A decisão judicial é exemplar por aplicar com rigor e precisão os comandos da Lei nº 11.101/2005, especialmente após as alterações promovidas pela reforma legislativa recente.
Inicialmente, a tentativa de suspensão da reintegração de posse da planta industrial subarrendada pelo grupo foi rechaçada com base no art. 20-B da referida lei, desmascarando a utilização indevida de uma mediação antecedente como subterfúgio para invalidar decisão judicial anterior.
Posteriormente, ao analisar o pedido de RJ, a magistrada constatou graves falhas na petição inicial. Chamou atenção o fato de sete pessoas físicas, autoqualificadas como produtores rurais, figurarem como requerentes sem apresentar os documentos exigidos para tanto.
A ausência desses elementos instrutórios, somada a outras pendências, justificou o indeferimento do processamento. Caso aprovado, o pedido representaria a recuperação judicial de maior valor em tramitação no estado, o que evidencia ainda mais a importância da decisão adotada.
A recuperação judicial é um instrumento valioso, mas deve ser manejado (e principalmente avaliado pelos julgadores) com extrema responsabilidade. Seu uso indevido desvirtua o sistema, sobrecarrega o Judiciário e compromete a reputação de todo um setor. O caso do Grupo Safras demonstra que, quando bem aplicadas, as salvaguardas legais funcionam como barreiras legítimas contra eventuais abusos.
Cabe ao Poder Judiciário exercer com rigor seu papel de filtro na admissibilidade dos pedidos, assegurando que apenas requerentes que efetivamente cumpram os requisitos objetivos e demonstrem sua crise econômico-financeira possam acessar o procedimento. Essa postura é essencial para resgatar a confiança dos agentes do mercado e preservar a integridade do agronegócio brasileiro como setor estratégico da economia nacional.
Marcelo Winter é sócio de Agronegócio do VBSO Advogados e mestre em Direito Comercial pela PUC/SP.
José Afonso Leirião Filho é sócio de Agronegócio do VBSO Advogados e mestre em Direito Comercial pela PUC/SP.