No livro e documentário O Poder do Mito, o escritor e professor norte-americano Joseph Campbell destaca a importância dos rituais como formas de expressão e recriação dos mitos na vida cotidiana, ajudando a manter a coesão social e espiritual.

Campbell, que ficou famoso por seus estudos sobre mitologia e religião comparada, explora como os mitos são expressões universais da busca humana por significado, transcendência e conexão com o divino.

Ele argumenta, ainda, que os mitos são metáforas simbólicas que refletem os desafios e experiências fundamentais da condição humana.

Escrever sobre mitos e ritos no período da Páscoa é praticamente uma jornada interminável e não haveria espaço suficiente nessa coluna para descrever as mais diversas crenças e costumes desta que é uma das mais importantes celebrações da comunidade cristã.

Mesmo assim, não dá para deixar de falar sobre uma das tradições que acompanha esta festividade que é o consumo daquele que já foi considerado o “alimento dos Deuses”, o chocolate.

Mas, com a decolagem do preço do cacau para a estratosfera, este tema que costumava ser bem doce ficou um pouco mais salgado neste ano. Isso porque o cacau foi a commodity agrícola que mais encareceu em 2024 e, de acordo com o Valor Data, acumulou alta de 150% na bolsa de Nova York.

Esta escalada nos preços reduziu o apetite do mercado em nível global e tem sido justificada pelas variações climáticas que impactaram diretamente os níveis de produção nos principais países produtores, entre eles o Brasil.

Trocando em miúdos, aliás em ovos, isso já trouxe impactos na perspectiva da indústria com um volume 22% inferior à 2024, numa redução equivalente a menos 13 milhões de ovos de Páscoa no Brasil em 2025, na projeção feita pela Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Cacau, Amendoim, Balas e Derivados (Abicab).

Se continuar assim, valerá mais uma barrinha de chocolate na mão do que dois ovos de Páscoa voando.

Folclore, coelhos e outros segredos

Há quem diga que a “Lebre da Páscoa”, com origem no folclore alemão e que entregava ovos decorados na primavera, se uniu com a receita francesa de ovos de chocolate de Luís XIV e, daí, deu no que deu.

Um coelho, um ovo de chocolate e o símbolo de uma nova vida emergindo da casca. Mitos e símbolos andam lado a lado e, ao longo do tempo, podem assumir outras formas e gerar novos ritos, inclusive, de consumo.

No rito de presentear com chocolate o que não falta é opção de produto. Segundo a Abicab, só no mercado brasileiro são mais de 800 tipos de ovos de Páscoa. Ainda que tenham variados tamanhos, recheios e algumas surpresas sortidas, as embalagens festivas não mostram outros segredos da dura realidade da cadeia produtiva do cacau.

⁠"Nossas crenças culturais não moldam apenas as nossas mentes, elas criam os limites
do que acreditamos ser possível."
Joseph Campbell

Os “Easter eggs” são elementos bem conhecidos no mundo dos games, filmes e tecnologia para descrever uma referência ou algo que está escondido dentro de uma mídia. Geralmente, o autor do mistério dá pistas para que outras pessoas encontrem um item oculto.

E não é preciso guardar segredo que, infelizmente, na cadeia produtiva do cacau ainda há questões sensíveis quanto a práticas de produção que não seguem a cartilha da conformidade socioambiental.

Sem coelhos escondidos na moita, a série documental Rotten (“Podre” em inglês), produzida pela Netflix, expõe situações críticas de cadeias produtivas globais com o objetivo de propor maior consciência sobre a produção e consumo dos alimentos.

O destaque fica para o episódio “Chocolate Amargo”, que lança um olhar questionador para a agroindústria e a situação de países africanos que ainda lutam contra o trabalho infantil na produção cacaueira. O conteúdo segue o mesmo argumento do documentário ativista “The Dark Side of Chocolate”, que também se propôs a desvendar segredos obscuros desta indústria.

Apontar o dedo e meter a colher naquilo que pode comprometer a sustentabilidade dos negócios não costuma ser uma atividade conciliadora. Porém, há quem já cumpra com o papel de promover o consumo e produção sustentáveis do cacau reunindo os interesses de produtores rurais e fabricantes.

Sustentabilidade sem mito

O cacau é uma das culturas cobertas pela Rainforest Alliance, organização internacional que promove a agricultura sustentável e certifica produtores com base em normas de produção que englobam cuidados com a floresta, o clima, os direitos humanos e os meios de subsistência.

Já o CocoaAction Brasil é uma iniciativa da Fundação Mundial do Cacau (World Cocoa Foundation – WCF) que visa promover a sustentabilidade na cadeia produtiva. Um de seus projetos é o Cacau 2030, que tem coordenação do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), para apoiar na capacitação, geração de renda e bem-estar social a pequenos produtores brasileiros.

Além dos estigmas que rondam o setor, especialistas de mercado também alertam sobre o panorama de futuro do cacau com um risco iminente de extinção da cultura por conta das mudanças climáticas.

Mesmo que esse futuro possa parecer distante da realidade dos consumidores, já tem gente de olho na autopreservação. Não à toa, grandes fabricantes e startups já estão em busca de alternativas para a produção do cacau em laboratório e para o desenvolvimento de chocolates que usem ingredientes tecnológicos alternativos ao cacau.

No entanto, na contramão de quem só quer se manter vivo, há quem invista genuinamente na sustentabilidade como estratégia, sem parecer alarmista e com compromissos de longo prazo. É o caso da holandesa Tony’s Chocolonely e da brasileira Dengo.

Fundada em 2005, a Tony’s Chocolonely se propõe a vender chocolate 100% livre de escravidão e aplica uma política de fornecimento baseada em cinco princípios da marca para ajudar os produtores a saírem da pobreza e eliminarem o trabalho infantil.

A empresa, que conta com o ex-CEO da Starbucks Howard Schultz entre seus investidores, organiza sua cadeia de suprimentos por meio da Tony’s Open Chain, uma plataforma colaborativa que reúne players do setor de chocolates e outros produtos de confeitaria.

Levantando a bandeira da sustentabilidade e da brasilidade, a Dengo tem se diferenciado pela produção de chocolates finos com preservação ambiental, capacitação e pagamento de prêmio a produtores com base em padrões de qualidade e atributos de sustentabilidade.

Com cultivo pelo sistema agroflorestal conhecido como Cabruca, onde os pés de cacau são plantados à sombra das outras árvores da floresta original, a empresa se relaciona com mais de 300 produtores, começou atuando no sul da Bahia e expandiu a sua atuação para o Pará e Espírito Santo.

Sem quebrar os ovos, estes dois casos desmitificam como é possível gerar impacto e equilibrar os pesos na balança de uma cadeia produtiva. Que essa crença na sustentabilidade continue a nos conectar com algo superior e que o comprometimento com a agricultura responsável não seja apenas mais um símbolo para vender mais. Feliz Páscoa!