O contexto é conhecido e uma página-virada: Donald Trump iniciou seu novo mandato à frente dos EUA disposto a mexer nas relações comerciais com tarifas de importação.

Agora, o mercado tenta projetar, se é que é possível diante de uma mudança repentina nos discursos do presidente a todo momento, os efeitos de toda essa política.

A consultoria de Boston Consulting Group (BCG) divulgou um estudo, obtido em primeira mão pelo AgFeed, tentando prever os efeitos das tarifas.

A principal conclusão dos analistas Matt Westerlund, Lucas Moino, Iacob Koch-Weser e Adam Haidermota é que o tarifaço de Trump pode redesenhar o sistema alimentar americano e o mercado global de soja.

Moino, sócio do BCG e um dos idealizadores do estudo, cita que a situação criada por Trump fez aumentar o número de ligações e mensagens que ele e outros executivos da consultoria receberam de clientes, a fim de reavaliar suas estratégias.

Olhando por vários ângulos e escrevendo junto de colegas americanos, Moino e os colegas perceberam que a cadeia dos EUA é complexa e se apoia em muitos fluxos de fora e, como o Brasil está inserido nesse ínterim, resolveram “aterrissar” os impactos na realidade.

No caso da oleaginosa, não à toa, a última semana foi marcada por protestos de agricultores americanos. Isso porque, prestes a iniciar a colheita de sua nova safra, eles estão preocupados com o fato de, até agora, não terem feito nenhuma venda antecipada ao seu principal cliente, a China.

Representantes da Associação Americana de Soja afirmam estar à beira de um “precipício financeiro”, e numa carta enviada ao presidente Donald Trump, pediram um fim da disputa comercial entre EUA e China.

Em anos anteriores, em média, os chineses a essa altura já tinham fechado, em média, 14% das suas encomendas de soja americana.

"Os produtores de soja estão sob extrema pressão financeira. Os preços continuam caindo e, ao mesmo tempo, nossos produtores estão pagando significativamente mais por insumos e equipamentos”, diz um trecho da carta assinada por Caleb Ragland, presidente da entidade, publicada pela agência Bloomberg.

Na carta, os agricultores pedem pressa a Trump na solução da “guerra” comercial com a China, com a redução de tarifas e, se possível, a inclusão de um mecanismo em que o país oriental se comprometa a fazer mais compras de soja nos EUA.

"Quanto mais nos aprofundamos no outono sem chegar a um acordo com a China sobre a soja, piores serão os impactos", prossegue o texto.

Segundo a associação, além da retração do apetite chinês, as tarifas de Trump trazem um aumento de custo para o setor, fazendo com que as commodities americanas tornem-se menos competitivos do que os de concorrentes como o Brasil

As vendas dos EUA para outros países não conseguiram compensar a diferença, disse Ragland, acrescentando que as tarifas estão tornando os suprimentos dos EUA menos competitivos do que os do rival Brasil.

O BCG mostra no estudo que desde 2018, com o primeiro governo Trump e sua primeira política de tarifas, as exportações de soja americana para a China caíram 75%, passando de 32 milhões de toneladas em 2017 para 8 milhões de toneladas nos anos seguintes. O preço do bushel caiu quase 10% nesse intervalo.

“Em 2020, no entanto, tanto o volume quanto o preço das exportações para a China haviam se recuperado essencialmente aos níveis anteriores a 2018, em parte devido a uma trégua comercial sob a qual a China removeu suas tarifas punitivas sobre os EUA”, citou o estudo da consultoria britânica.

“Esse precedente histórico sugere que aumentos tarifários podem ter impacto imediato e aumentar a volatilidade do setor”, acrescentou.

De lá pra cá, a China reforçou as compras da oleaginosa brasileira. No intervalo de 10 anos, de 2014 a 2024, a importação da soja americana saiu de 40% para 23% de todas as compras do gigante asiático.

Na mesma comparação, a soja nacional saiu de 47% para 69% dessas compras. “O Brasil saiu na frente diante dessas circunstâncias e provavelmente continuará a impulsionar o crescimento de seu comércio de soja com a China. A Argentina também vem investindo para aumentar a produção de soja e desenvolver ainda mais a infraestrutura necessária para impulsionar suas exportações”, citou o estudo do BCG.

O Boston Consulting Group relembra que, nessa mesma década, o percentual de importações de milho e de carne vinda dos EUA também recuou. No cereal, passou de 40% para 15%, e na proteína animal, de 14% para 10%. O Brasil ganhou share nessas duas culturas.

No milho, uma exportação inexistente no milho passou a 50% no ano passado, e na carne, saiu de 17% para 44% de tudo que os chineses compram.

Mesmo com as visíveis quedas nar porcentagens, o BCG relembra que o aumento dos volumes mitigou os impactos em certa medida. Na soja, por exemplo, as importações totais chinesas saíram de um patamar de US$ 40 bilhões para US$ 53 bilhões.

“Uma demanda significativamente limitada por soja pode reduzir os lucros dos produtores americanos e de seus fornecedores de insumos e equipamentos. E, em última análise, afetará todo o ecossistema de comércio de grãos, cuja economia é impulsionada pelo volume e pelas exportações”, afirma o BCG.

Esse cenário de constantes mudanças na política comercial e das incertezas que acompanham essas mudanças, segundo o estudo feito pela consultoria, é um desafio global para os agricultores.

Considerando, é claro, que uma produção não pode mudar conforme um novo discurso do presidente americano. Uma lavoura não pode ser replantada no meio da safra e uma mudança para outra cultura pode levar anos.

Como resultado, os agricultores serão forçados a fazer escolhas difíceis sobre como gastar e alocar capital, aponta o BCG.

“Em um ambiente de demanda restrita, quanto eles estão dispostos a gastar em insumos? Eles se sentem confortáveis ​​em fazer grandes compras de equipamentos?”, questiona o BCG.

De forma a mitigar esse mar de incertezas, o BCG cita que as empresas do setor devem monitorar políticas públicas internas e externas, como por exemplo um sinal de que algum determinado país está disposto a oferecer isenções para produtos que necessita.

Ele usa o exemplo do próprio Estados Unidos, que isentou a importação de potássio do Canadá. No tarifaço feito ao Brasil, inclusive, Trump deixou de fora uma série de produtos que são amplamente demandados nos Estados Unidos. No agro, produtos do setor florestal e o suco de laranja ficaram de fora da taxa de 50%.

“Outro fator que poderia ser considerado são novos investimentos na infraestrutura de armazenagem e logística necessária para importar ou exportar uma determinada safra, como a Argentina está fazendo agora para impulsionar as exportações de soja para a China”, acrescenta a análise do BCG.

Se a soja americana enfrenta dificuldades, o mais normal seria pensar que o produtor pode optar pelo cultivo de milho na próxima safra. Só que aí uma outra política de Trump entra como barreira.

Lucas Moino, sócio do BCG e um dos idealizadores do estudo, citou que desde que o presidente americano assumiu o posto, tem sinalizado um apreço aos combustíveis fósseis em detrimento aos biocombustíveis, no qual a cadeia do milho tem papel fundamental.

Se no Brasil a pujança do etanol de milho tem criado oportunidades de escoamento para cerealistas, lá no Norte da América isso pode não ocorrer, deixando o agricultor americano numa encruzilhada.

“A China hoje tem mais de 100 milhões de hectares de agricultura e decidiu aumentar a produção de milho internamente, ao mesmo tempo que se apoia na importação para a soja. Nesse sentido, as tarifas de 2018 foram o estopim para esse investimento”, citou.

Esse cenário de 2018 é importante para entender também a relação atual entre China e Brasil. Moina usou como exemplo o investimento de R$ 1,6 bilhão da Cofco no Porto de Santos, que elevou a capacidade de recebimento de commodities de 4,5 milhões de toneladas para 14,5 milhões de toneladas.

“Essa talvez seja a materialização desse impacto de longo prazo do que aconteceu em 2018”, disse.

Naquele ano, calcula que as perdas na safra americana foram de US$ 20 bilhões a US$ 25 bilhões. Na atual temporada, já prevê impactos de US$ 25 bilhões a US$ 30 bilhões, mas ressalta que um acordo comercial entre EUA e China pode mudar todo o cenário, e de quebra, prejudicar as exportações brasileiras.

Impactos na economia americana

Em 2023, o comércio na América do Norte foi avaliado em US$ 1,8 trilhão e nessa economia uma ampla variedade de produtos agrícolas tem um peso grande. Desde alimentos de consumo humano, como produtos frescos e carne, quanto insumos agrícolas essenciais, como fertilizantes e ração e até mesmo o mercado de máquinas agrícolas.

O porém, relembra Moino, é que uma sinalização de menos demanda por um produto pode redesenhar o cenário de uma safra futura.

“OS EUA estão preparados para produzir e isso, conectado com a indústria de insumos, equipamentos e serviços toda posicionada para movimentar um certo volume, que envolve logística, estocagem e processamento. Isso conta com uma série de empresas. Quando se é confrontado num cenário que o volume varia absurdamente, todos precisam recalcular as decisões”, comentou o sócio do BCG.

Isso coloca o produtor num cenário de desinvestimentos e, consequentemente, regulando o tamanho dessa cadeia toda para baixo, avalia o executivo.

Uma incerteza na venda faz o produtor aumentar o intervalo das compras de insumos ou equipamentos, rever investimentos e até a própria produção. “Ele vai calcular se vale mais a pena produzir 60 sacas a um custo de 40 do que produzir 75 sacas a um custo de 60. Esse intervalo menor, num cenário de queda de preço repentino, pode colocá-lo numa situação de prejuízo”, diz.

“Ele desintensifica a compra de sementes, químicos, espaça a compra de tecnologias e certamente impacta essas indústrias”, acrescenta.

Moino cita que a soja é o elemento central dessa discussão, mas o contexto se aplica para todo e qualquer produto que tenha volume e fluxo. Nesse sentido, cita o caso do suco de laranja, que acabou ficando fora do tarifaço contra o Brasil.

Caso o produto continuasse taxado em 50%, a indústria brasileira teria muita dificuldade para encontrar novos compradores, na mesma medida em que o produto caro na gôndola nos Walmarts americanos poderia fazer uma substituição.

Ao mesmo tempo, o cenário para as carnes, que continuam taxadas em 50%, tem um rearranjo mais simples na visão do sócio do BCG. “A proteína é demandada e tem mercado em todo o mundo. Se os EUA ‘fecham’ o mercado para a carne brasileira, a demanda é preenchida por outros países, como Argentina. E aí o destino das carnes desse país cria um buraco que é preenchido pelo Brasil”, cita.

Toda essa confusão na cadeia americana pode ainda criar um aumento na inflação no País. Moina cita que se de um lado a guerra comercial com a China já impacta a popularidade de Trump no meio-oeste americano, região de forte produção agrícola em que o presidente tem grande parte do eleitorado, do outro, uma inflação pode estremecer a relação dele com seu eleitor urbano.

“Gera uma inflação por falta de oferta, que não é regulada por taxa de juros. Se isso acelera pode até entrar num processo de desindustrialização, com mercados e fornecedores que vão deixar de produzir, e aqueles de outro país deixam de priorizar seu mercado”, argumenta.

Resumo

  • Estudo do BCG mostra que tarifas impostas por Trump podem reduzir competitividade da soja americana e fortalecer a posição de Brasil e Argentina no comércio com a China
  • A pressão sobre produtores americanos cresce: queda de preços, aumento de custos de insumos e incerteza para a próxima safra reduzem investimentos e alongam ciclos de decisão
  • Além da soja, tarifas afetam carnes, milho e insumos agrícolas, e podem gerar inflação nos EUA, reconfigurando cadeias logísticas