A reunião dos líderes da União Europeia nesta quinta-feira, em Bruxelas, tinha como pauta a discussão de assuntos relacionados à guerra na Ucrânia. Eles foram “atropelados”, no entanto, por mais de mil tratores que tomaram as ruas da capital da Bélgica, sede do Parlamento Europeu.

Produtores rurais reproduziram ali uma cena que vem se espalhando por todo o bloco, com manifestações que já afetam uma dezena de países. O maior epicentro, no momento, é a França, onde a mobilização começou há 15 dias e se mantém forte, com dezenas de bloqueios em eixos centrais de rodovias do país, inclusive nos arredores de Paris, apesar das inúmeras medidas voltadas para o setor anunciadas pelo governo francês desde então.

Elas foram complementadas nesta quinta-feira com um novo pacote que envolve uma série de ações, entre elas uma ajuda “perene” de 150 milhões de euros para os produtores de carne, afetados pelo custo de uma doença viral do gado, e também pela concorrência do frango mais barato de países como a Ucrânia.

No total, as ajudas anunciadas nos últimos dias pelo governo francês, e que incluem 80 milhões de euros para os viticultores e 50 milhões de euros para os produtores de orgânicos, totalizam 400 milhões de euros (cerca de R$ 2,1 bilhões), segundo o ministério das Finanças.

Após os novos anúncios feitos pelo primeiro-ministro francês, Gabriel Attal, nesta quinta-feira, a FNSEA, que representa o maior sindicato de produtores agrícolas da França, juntamente com os Jovens Agricultores, felicitaram os “avanços tangíveis” e pediram a suspensão dos bloqueios nas estradas do país.

Mas muitos agricultores franceses prometem continuar protestando. O representante da FNSEA da região da periferia de Paris disse não ter intenção de suspender as barreiras de tratores em torno da capital.

A Confederação Camponesa, o segundo maior do país, declarou que apesar das novas medidas anunciadas pelo primeiro-ministro irá manter a mobilização e lançou apelos para que os bloqueios nas estradas continuem.

A nova salva de medidas para o setor inclui desde discussões sobre aposentadorias a uma fiscalização mais rigorosa do cumprimento de uma lei destinada a garantir uma melhor remuneração dos agricultores, evitando que eles vendam com prejuízo por conta das negociações acirradas de preços entre supermercadistas e industriais, a chamada lei Egalim.

Em Bruxelas, o presidente Emmanuel Macron prometeu um controle reforçado das maiores indústrias e varejistas e declarou que será “intratável” em relação à aplicação dessa lei. Ele também sugeriu uma “Egalim europeia” para que não haja um “desvio” por meio das centrais de compras do continente.

Entre os anúncios feitos nesta quinta, o governo francês declarou ainda que irá suspender o “plano Ecofito”, que visa reduzir o uso de pesticidas, e realizar milhares de controles de embalagens para fiscalizar se a indicação da origem francesa dos ingredientes é real, entre outros anúncios que envolvem decisões também no âmbito europeu.

As reivindicações dos agricultores franceses são múltiplas, mas entre as principais - que são um ponto comum entre os produtores do continente - estão a melhor remuneração da atividade (18% dos produtores rurais na França vivem abaixo da linha da pobreza, segundo dados de 2021 do instituto oficial de estatísticas do país, o Insee) e o problema de ter de cumprir regras mais severas do que em outros mercados, o que eles avaliam como uma concorrência desleal.

Mercosul e eleições na mira de Macron

Isso envolve diretamente os tratados de livre comércio. Na linha de mira dos agricultores franceses está o acordo Mercosul-União Europeia, que eles querem derrubar. Nesse ponto, o governo francês se associou aos produtores e vem martelando nos últimos dias que não aceitará o texto no formato atual.

Após Macron voltar a reiterar, no começo desta semana, que se opõe ao acordo em razão de “regras que não são homogêneas às nossas” e do ministro das Finanças, Bruno Le Maire, prometer uma “queda de braços” com a Comissão Europeia para que o texto não seja assinado do jeito que está, foi a vez do primeiro-ministro, Gabriel Attal, tranquilizar os agricultores ao destacar, nesta quinta-feira, que é “claro, límpido e certo” de que a França não aceitará o acordo.

Em Bruxelas, Macron voltou a manifestar sua oposição ao tratado de livre comércio com o Mercosul. A recusa do governo francês tem o apoio de alguns pequenos países, como a Bélgica, a Irlanda e a Áustria.

Mas a Alemanha, maior economia do bloco, a Espanha e a Itália têm pressa em concluir o texto que resulta de novas negociações relançadas no ano passado.

O chanceler alemão, Olaf Scholz, disse nesta quinta, durante o encontro de líderes em Bruxelas, ser “um grande fã” do projeto de acordo com o Mercosul.

Apesar da ofensiva de Macron, as discussões em nível europeu não foram interrompidas. O presidente francês não se dá por vencido e estima que o país tem peso para influenciar as decisões.

“Cada vez que levantamos a voz somos seguidos”, declarou Macron em uma coletiva após a reunião de chefes de Estado e de governo em Bruxelas.

A cinco meses das eleições europeias e com a ascensão de partidos de extrema direita nas pesquisas em alguns países como a França, onde o Rassemblement National, de Marine Le Pen, lidera as intenções de voto, a revolta dos agricultores preocupa líderes do continente.

Especialistas estimam ser pouco provável que a França aceite algo em relação ao acordo com o Mercosul antes da votação, em junho, por conta do peso político desse tema.

Macron se reuniu nesta quinta com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para discutir a situação dos agricultores na Europa, o tratado com o Mercosul e a questão das importações agrícolas da Ucrânia, assunto que também provoca a revolta dos agricultores.

Vizinhança indignada

Os produtores franceses também se queixam de ter de cumprir algumas regras mais restritas do que as aplicadas na própria Europa.

Os produtores rurais espanhóis, por sua vez, disseram estar “indignados” com as declarações do premiê francês sobre a “concorrência desleal” exercida por “países vizinhos”, embora Attal não tenha citado a Espanha e sim a Itália ao falar sobre produtos fitossanitários proibidos na França, mas utilizados em outros países do continente que exportam para a França.

Em Bruxelas, nesta tarde, o presidente Macron enviou um recado para os agricultores franceses ao declarar que deseja que a regulamentação francesa não seja mais restritiva do que a decidida pela União Europeia. O presidente também pediu a criação de uma força europeia de controle sanitário e agrícola.

Algumas reivindicações dos agricultores envolvem medidas no âmbito europeu. Na quarta-feira, a Comissão Europeia anunciou a suspensão, em 2024, da obrigatoriedade de deixar 4% das terras cultiváveis em repouso, uma regra que deveria entrar em vigor neste ano e que visa preservar a biodiversidade, sob a condição de que os agricultores reservem pelo menos 7% da área de plantio para culturas intermediárias, como leguminosas.

Bruxelas também anunciou um “freio de emergência” nas importações de produtos sensíveis da Ucrânia, como frango, açúcar e ovos, com a aplicação de taxas se os volumes ultrapassarem os níveis médios de 2022 e 2023. A isenção de impostos de produtos agrícolas desse país em guerra, será prolongada até junho de 2025.

Segundo Macron, as importações de cereais da Ucrânia também terão um “mecanismo de salvaguarda reforçada” em nível europeu que permitirá uma intervenção em caso de desestabilização dos preços.

Na França, várias prefeituras estão fazendo as contas dos danos causados pelos protestos dos agricultores que, pelo visto, devem continuar, como também em outros países europeus.