De chapéu, bota e roupas típicas de quem lida com o gado nas regiões tropicais do Brasil, pecuaristas de pelo menos seis estados deixaram suas fazendas e foram à Brasília na noite de quarta-feira, 24 de setembro, para um evento diferente.
O grupo lançou oficialmente uma espécie de manifesto em defesa da pecuária sustentável, mas acima de tudo, em busca de reconhecimento pela sociedade. A iniciativa é chamada de “Pecuária Tropical pelo Clima” e o evento, batizado de “Vozes da Pecuária”, apresentou relatos pessoais de pecuaristas, representando os biomas Cerrado, Pantanal e Amazônia.
“É um movimento de produtores, que busca a transição do modelo de produção tradicional para o sustentável, o mais rápido possível. Mas a gente encontra dificuldades nesse modelo, que é principalmente o custo dessa transição, que é elevado”, contou Raul Almeida Moraes Neto, pecuarista do Vale do Araguaia, Mato Grosso, em entrevista ao AgFeed.
Além de ser um dos idealizadores do movimento, Raul Moraes também foi um dos convidados para contar sua história no palco.
O relato mais comum é fato de serem descendentes de famílias que desbravaram fronteiras, chegando a lugares até então sem nenhuma infraestrutura, incentivados por governos que buscavam povoar as regiões e aumentar a produção de alimentos.
“Sabemos que erramos muitas vezes ao longo do caminho, mas foi por falta de conhecimento, algo que agora temos acesso, por isso estamos buscando fazer a coissa certa”, disse Mauro Lucio Costa, presidente da Associação dos Criadores do Pará.
Para Raul Moraes, a maior necessidade é ter acesso a crédito, com juros e prazos adequados, “para recuperar o pasto e o solo”.
Ele nunca tinha falado com nenhum político de Brasília. Mas o grupo recebeu apoio de uma ONG, a Morada Comum, que vem ajudando a conectar pecuaristas que já adotam práticas sustentáveis e buscam apoio para seguir ampliando a adoção entre os vizinhos.
Segundo Raul, com apoio da ONG, o grupo foi recebido pela Frente Parlamentar Agropecuária esta semana e conseguiu organizar o evento, que também teve suporte do IICA.
Ele explica que uma das demandas urgentes é permitir que pequenos e médios produtores consigam fazer o manejo adequado das pastagens.
“Começa pela subdivisão de áreas, para você subdividir, tem um imobilizado muito grande em cercas, arames, porteiras. Aí você tem outro investimento, que é a captação e construção de bebedouros, onde o gado vai ao coxo, bebe água. Você precisa fazer a correção do solo. Então, são custos vultuosos de prazo longo de retorno. Se a pessoa resolver fazer isso e não tiver condições financeiras, ela cai no vale da morte. Ela vai quebrar antes de ter a receita”, descreve o pecuarista.
A estimativa dele é que o custo ficaria próximo em R$ 35 mil por hectare, para fazer essa mudança.
O grupo defende que boa parte dos pecuaristas hoje já está adaptada às práticas mais modernas, que garantem maior sequestro de carbono no solo e mais produtividade. Para chegar a todos, o movimento entende que, assim como em outros momentos na história do País, o setor precisará de incentivos.
“Na realidade, nós precisamos fazer uma reunião de esforços entre produtores, governo e mercado. O mesmo esforço que foi feito para a marcha para o Oeste, nós vamos fazer a marcha pelo clima”, afirmou Moraes.
O pecuarista se refere ao movimento de famílias do Sul do Brasil, especialmente, que seguiram para Mato Grosso e outras regiões de Cerrado, para iniciar a produção agropecuária nessas regiões décadas atrás. “Marcha para o Oeste” era o nome da política implementada por Getúlio Vargas a partir de 1938 para ocupar o interior do Brasil.
Carta Aberta
Um dos momentos principais do evento de Brasília foi o lançamento da “Carta Aberta dos Pecuaristas pelo Clima à Sociedade Brasileira e à Comunidade Internacional”.
Emocionada e segurando o chapéu, a pecuarista de Cocalinho (MT), Carmen Bruder, leu o texto no palco.
“Esta carta é um convite: conheçam nossa história, nossos valores e a pecuária tropical que estamos construindo — justa, produtiva, diversa e parte da solução climática”, diz um dos trechos.
O texto destaca compromissos em valorizar a diversidade dos biomas, combater o desmatamento ilegal, seguir buscando práticas de baixa emissão de gases causadores do efeito estufa, além de temas como rastreabilidade, falta de infraestrutura, insegurança jurídica e barreiras comerciais.
Bruder é paulista, chegou a se formar em medicina, foi para Goiás trabalhar na área da saúde, mas acabou atendendo a vocação de trabalhar no campo, com gado de leite e depois com pecuária de corte.
Hoje ela administra a Fazenda Entre Rios, considerada referência na cria de bezerros e práticas sustentáveis, como o TIP, Terminação Intensiva a Pasto.
“Nós começamos numa pecuária que não tinha IATF, não tinha transferência de embrião, não tinha nem ultrassom, e hoje nós estamos numa pecuária de alta tecnologia, que respeita o meio ambiente, que precisa ver o pasto como agricultura, como colheita, como semente, como produto para alimentar o gado”, disse ela, em entrevista ao AgFeed.
“Não é qualquer capim, não é mais aquela pecuária que já foi um dia, de anos atrás, em que desmatava, jogava um capim, o gado comia, quando acabava, desmatava em outro lugar. Não tem mais isso”, ressaltou.
Na fazenda de Carmen, hoje são 1,5 mil matrizes nelore. E o cuidado é redobrado, com o plantio consorciado de florestas, para dar mais conforto ao rebanho tanto no frio, quanto no calor.
“Hoje, os nossos pastos são muito preciosos, nós não degradamos o pasto. O gado tem a hora certa de entrar e a hora certa de sair, de forma que há uma verdadeira simbiose entre o coletor do nosso produto agrícola, que é a vaca, e o nosso produto agrícola, que é o pasto”.
Perguntada sobre qual seu maior desejo, agora que leu e divulgou a carta aberta, ela respondeu: “Eu gostaria que a gente pudesse andar de chapéu também nos shoppings, nas cidades, e não fôssemos olhados como bicho do mato, mas sim como produtores, produtores que têm o compromisso de garantir a segurança alimentar, queria que nos tratassem com um pouco mais de carinho e respeito”.
Nova entidade na pecuária
O evento em Brasília também contou com a presença de alguns parlamentares e de lideranças da CNA e federações estaduais de agricultura e pecuária.
Um dos destaques foi a criação de uma nova entidade representativa de pecuaristas, a Unapec, União Nacional da Pecuária.
A ideia surgiu da aproximação das associações de criadores de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, mas agora já engloba oito estados, com Rondônia, Pará, Tocantins, Goiás, São Paulo e Paraná.
“Há 60 dias, a ideia é juntar as associações de pecuaristas dos estados para que a gente possa ter uma voz uníssona, de forma a ganhar força para as discussões, principalmente nas discussões que são realizadas aqui em Brasília, do setor da pecuária nacional”, explicou ao AgFeed Guilherme Bumlai, pecuarista de Mato Grosso do Sul que foi eleito presidente da Unapec.
Outro objetivo, segundo ele, é que o setor “se comunique fora da bolha”. Os produtores entendem que muitas vezes são associados a exemplos ruins que não representam a maioria, por isso querem mostrar o trabalho sanitário e de sustentabilidade que vêm fazendo.
Em relação à questão climática, Bumlai e outros produtores presentes defendem que a prioridade é estabelecer as métricas adequadas à pecuária tropical e não as internacionais, criadas em países de clima temperado. O sequestro de carbono nas pastagens seria a prova de que a “neutralidade” em emissões seria possível.
“A grande discussão é que o boi produz o metano. Mas já tem estudos mostrando que com 11, 12 anos, essa molécula do metano é quebrada, vira carbono e esse carbono contabilizado com toda a pastagem que foi produzida ao longo do tempo, ele é neutralizado. Então a gente precisa difundir isso para mostrar que a nossa pecuária, se bem auferida, ela vai chegar num resultado de carbono neutro”, afirmou.
Resumo
- Pecuaristas do Cerrado, Pantanal e Amazônia lançam movimento “Pecuária Tropical pelo Clima” em Brasília
- Carta aberta divulgada no evento Vozes da Pecuária defende sustentabilidade, práticas regenerativas e apoio financeiro para transição
- Também foi criada a Unapec, nova entidade nacional que busca dar voz unificada ao setor e destacar avanços ambientais