A construção cultural do que é a região do Sertão nordestino - ou pelo menos a visão (muitas vezes deturpada) de estados mais ao Sul do Brasil - sempre encontra um animal como figura central: o jumento.
Se, de um lado, o jumento foi usado em estereótipos que ligam a região a uma sociedade rural e atrasada, de outro, representa um companheiro de trabalho e parte integrante da identidade do povo local.
Dito até como “herói do sertão”, e presente em músicas como na famosa “Apologia ao Jumento”, de Luiz Gonzaga, e na literatura de cordel, o animal que, de fato sempre foi um parceiro de transporte e de trabalho rural em uma era antes da mecanização do campo, agora vira personagem de uma polêmica que envolve esferas jurídicas, ONGs, frigoríficos – e até a Academia.
Há quase uma década, o jegue deixou de ser apenas um vestígio do passado agrícola do Nordeste para entrar em um circuito de abate industrial voltado sobretudo à exportação de peles para a Ásia.
Ainda muito distante da magnitude da exportação de aves, suínos e bovinos, e em meio a decisões judiciais que vão e voltam, denúncias de irregularidades e a promessa de geração de renda no semiárido, formou-se um impasse difícil de decifrar.
O AgFeed se debruçou sobre esse imbróglio, conversou com o gestor do maior frigorífico de abate de jumentos do país e analisou documentos, cartas públicas de pesquisadores e posicionamentos de organizações de bem-estar animal. De um lado, a justificativa de um mercado regulado e amparado pela justiça, e do outro, a acusação de um risco de extinção do animal.
Na largada do debate, há um consenso entre as partes: o Brasil não sabe quantos jumentos existem hoje em território nacional. O último Censo Agropecuário do IBGE, de 2017, registrou 376,8 mil asininos, uma queda de 69% desde 1980.
Já estimativas de pesquisadores e da ONG britânica Donkey Sanctuary, referência global no tema, com base em números da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), IBGE e Agrostat, afirmam que o país teria hoje cerca de 78 mil indivíduos, retração de 94% em relação a 1997.
O fato é que não há atualização oficial sobre o rebanho, formado por animais soltos ao longo de décadas.
Essa lacuna alimenta a divergência central: enquanto ONGs afirmam que o abate é parte de um processo “extrativista” que acelera a extinção, o frigorífico que domina o setor diz que o declínio populacional ocorreu antes da existência da indústria atual, e que a reprodução continua ativa no Semiárido.
O frigorífico
O principal operador desse mercado é um frigorífico com sede em Amargosa (BA). O negócio, chamado de Nordeste Pecuária, é administrado pelo zootecnista Alex Bastos, que conta ainda com dois sócios chineses, segundo informações do CNPJ da empresa.
Em entrevista ao AgFeed, Bastos contou que entrou na atividade por acaso. Após duas décadas trabalhando com modernização de plantas frigoríficas e consultoria em inspeção industrial na Bahia, percebeu um interesse chinês pela espécie no Brasil.
A questão é que, há cerca de 10 anos atrás, a legislação não permitia um abate na mesma unidade de bovinos e asininos, o que fez com que ninguém assumisse o risco de migrar de um mercado consolidado para outro mais arriscado.
“Na época criminalizava-se a presença dos chineses no Brasil. Diziam, de forma pejorativa, que era ‘xing ling’, e que tudo que vinha da China era só falsificado. Hoje as empresas de tecnologia mudaram essa percepção”, disse Bastos.
O projeto só avançou depois de uma reunião improvável: um investidor chinês abordou o então governador da Bahia, Rui Costa - hoje ministro da Casa Civil - durante uma viagem oficial, dizendo que queria “todos os jegues” do estado.
Costa viu a oportunidade de resolver uma pressão política por conta dos acidentes envolvendo animais soltos nas estradas, ao mesmo tempo que poderia gerar empregos no estado.
A planta do frigorífico de Alex Bastos foi, então, arrendada em 2018, numa unidade antes pertencente à JBS e hoje da própria empresa. “No começo, levamos a carne e só exportava o couro. Fizemos teste, o empresário gostou”, disse o diretor, que não dá detalhes sobre o empresário ou sócio chinês da empreitada.
Até conseguir a habilitação para exportar para a China, a companhia exportava o couro e a carne para Hong Kong e Vietnã. Hoje, o mercado chinês é o único destino.
Aqui entra um outro aspecto importante do imbróglio: o porquê do interesse chinês nos jumentos brasileiros.
Um dos principais produtos da milenar medicina chinesa é o “ejiao”, uma gelatina feita a partir do colágeno extraído a partir do animal. Os chineses acreditam que o produto possui benefícios que vão desde o fortalecimento do sangue até melhora no sono e na fertilidade.
A Donkey Sanctuary já se posicionou no passado, dizendo que o produto não possui comprovação científica e que, globalmente, o abate anual de jumentos para abastecer esse mercado ronda em torno de 5,9 milhões de animais ao redor do mundo.
Alex Bastos cita que o frigorífico possui hoje um único cliente, que pertence a uma empresa estatal chinesa no ramo farmacêutico, que utiliza a pele do jumento para fazer medicamentos, xampu e máscara facial. A companhia ainda vende a carne, para “equilibrar os custos da indústria”.
No passado, a prefeitura de Amargosa, cidade sede do frigorífico, publicou um release com seu então prefeito, Júlio Pinheiro, se encontrando com executivos da Deej World, maior produtora de ejiao da China. A companhia é controlada pelo conglomerado público China Resources Pharmaceutical.
Segundo informações da Bolsa de Shenzhen, em 2024 a Deej registrou receita anual de 5,9 bilhões de yuans (cerca de R$ 4,4 bilhões).
A argumentação da ONG é que os abates de jumentos têm feito a espécie caminhar para seu desaparecimento. O administrador do frigorífico tem outra interpretação.
Para Bastos, considerando que o Brasil nunca teve hábito de consumir carne de jumento e que esse mercado de frigoríficos ganhou seus primeiros players depois de 2017, não é essa atividade a culpada pela redução dos animais.
Ele cita que, no final de 2017, no início da operação da empresa, abateu de 10 mil a 15 mil animais. “Eu tenho uma oferta mensal de 2 mil animais por mês há sete anos. Mês passado recebi quase 3 mil. Está acabando? Acho que não”, diz.
Segundo Bastos, que estima 1 milhão de jumentos no País, o abate anual de 25 a 26 mil animais anuais, números da própria Nordeste Pecuária, não seria suficiente para levar a espécie ao colapso.
Ele acredita que a queda de população tem origem bem anterior ao abate industrial e cita duas dinâmicas que, segundo ele, explicam esse movimento melhor do que qualquer tese associada ao mercado asiático.
O primeiro é socioeconômico: a substituição do trabalho agrícola e do transporte animal por motos, carros utilitários e tratores, um processo que se acelerou a partir dos anos 1970 e levou ao abandono massivo desses animais no Semiárido.
A segunda é demográfica, com populações de jumentos errantes, envelhecidas, reproduzindo-se na natureza sem manejo sanitário e sujeitas à seca, à fome e aos acidentes nas estradas.
As brigas judiciais
É justamente nessa ausência de dados que nasce a parte mais ruidosa desse debate: a via judicial. Desde 2018, o abate de jumentos na Bahia enfrenta decisões que suspendem e restabelecem a atividade, movidas por ONGs e grupos acadêmicos que afirmam haver risco iminente de extinção.
Segundo a Donkey Sanctuary e pesquisadores que assinaram uma carta pública divulgada durante um evento em Maceió (AL) neste ano, o jumento nordestino estaria “próximo do ponto de não retorno”. A solução, defendem, seria a suspensão imediata do abate até que existam números oficiais.
Essas alegações foram levadas ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), onde a “Frente Nacional de Defesa dos Jumentos” tentou travar a atividade.
Mas o parecer mais recente restabeleceu o abate no estado. O relator, desembargador Eduardo Martins, entendeu que não havia indícios de ilegalidade ou omissão do Ministério da Agricultura e Pecuária na fiscalização.
O TRF-1 também acolheu a tese econômica apresentada pela AGU: a de que a interrupção da atividade poderia causar prejuízos comerciais e comprometer a credibilidade das relações com a China, principal compradora das peles.
A ONG discorda frontalmente. A Donkey Sanctuary afirma que o setor não tem relevância econômica e cita um estudo do professor Roberto Arruda de Souza Lima, da Esalq/USP, para dizer que as exportações representam menos de 0,000003% das exportações brasileiras.
Além disso, cita que a operação é “extrativista”, com a captura de animais soltos e sem uma cadeia produtiva estruturada.
Alex Bastos diz que a judicialização é hoje o principal entrave ao desenvolvimento da atividade.
Ele diz que o frigorífico recorreu a pareceres jurídicos e apoio do Ministério da Agricultura para reverter decisões anteriores e que a segurança jurídica é condição básica para dar o próximo passo: investir na criação.
“Tivemos êxitos e pareceres positivos no STJ, STF e agora TRF. Já conseguiram fechar a gente em 2019, mas depois revertemos isso na Justiça com ajuda do Mapa”, disse Bastos.
“Com o parecer do TRF e um trabalho junto ao Ministério Público da Bahia, estou mais seguro para colocar dinheiro próprio e expandir. Tenho planos para investir de R$ 5 milhões a R$ 15 milhões em fazendas”, acrescentou.
O empresário afirma ter operado, no auge, com 1,2 mil fêmeas em reprodução, mas reduziu o plantel para uma faixa entre 200 a 250 atualmente, num movimento que ele associa justamente à instabilidade jurídica dos últimos anos.
O objetivo, segundo ele, é ampliar a oferta de animais criados sob manejo, diminuir a dependência de capturas no semiárido e atrair pecuaristas para uma produção de asininos na caatinga.
Hoje, Bastos diz operar a partir de uma rede de 22 fornecedores espalhados entre Bahia e Piauí. Segundo ele, esse sistema funciona de duas maneiras: há produtores formais, com fazendas cadastradas, que entregam lotes padronizados e mais valorizados, e os chamados “catingueiros”, que coletam animais soltos em áreas de uso comum e os mantêm em suas propriedades até completar a lotação.
Para cumprir a legislação baiana, que proíbe o transporte de lotes compostos apenas por fêmeas, o frigorífico exige que ao menos 60% dos animais sejam machos. Bastos afirma que muitas fêmeas chegam prenhas e terminam a gestação sob manejo, o que, segundo ele, contribui para repor parte da população usada na indústria.
Ele conta que existem fiscais do Mapa dentro do frigorífico e que nunca houve notificação por maus tratos. “Nossa luta é esclarecer que esses dados [das ONGs] são de papel. Os jumentos foram soltos desde os anos 1970, quando chegaram as motos. Não existe contagem real, pois ninguém cadastra mais os animais”, afirma.
Bastos fez questão também de rebater outro argumento divulgado em reportagens em que a Donkey Sanctuary e pesquisadores estão presentes, em relação ao preço da pele de jumento.
Em uma reportagem do jornal O Globo, de julho deste ano, o pesquisador Pierre Escodro, da Universidade Federal de Alagoas, cita que o preço da pele de um jumento pode custar até US$ 4 mil no mercado externo. Ainda segundo Escodro, o preço do animal vivo no interior nordestino custa R$ 500, um salto frente aos R$ 100 de anos anteriores.
Bastos cita que os valores não são reais, mas conta que houve uma valorização de 1.500% nos últimos anos no preço do jumento.
O animal não é de origem brasileira e, segundo Bastos, a espécie que habita o Nordeste nasceu na Etiópia. A introdução dos jumentos foi feita no século XVI, no início da colonização portuguesa por aqui.
Enquanto que, para a região de Minas Gerais foram trazidos animais maiores, o jumento nordestino hoje é resultado de uma adaptação pela escassez de comida e água, com uma estatura menor.
A China, principal interessada nos animais, concentra hoje a maior população de jumentos no mundo. Bastos cita que a variedade chinesa é uma espécie de “angus dos jumentos”: animais maiores que são utilizados na produção de carne e leite, pesando em média 350 quilos.
Bastos afirma ter conversas com instituições chinesas e universidades brasileiras para desenvolver linhagens próprias, mas diz que qualquer avanço depende primeiro da estabilização jurídica do setor.
Do lado da Donkey Sanctuary, o momento atual envolve tentar reverter a última decisão do TRF-1. Em um release enviado ao AgFeed, a organização se mostra preocupada com o que chama de “Estado de Emergência dos jumentos nordestinos” e prevê uma extinção da espécie até 2030 se o abate continuar.
Em uma reportagem recente publicada pelo portal UOL, Gislaine Brandão, coordenadora da Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, se mostrou otimista com uma reversão no julgamento.
Apesar disso, a Donkey Sanctuary se disse ainda preocupada com o início do recesso do poder judiciário, que vai de 20 de dezembro até o mesmo dia do mês seguinte, janeiro de 2026. A argumentação é que, mesmo em um curtíssimo período de apenas 30 dias, a manutenção do abate “agrave ainda mais a situação dos jumentos”.
Resumo
- Falta de dados oficiais sobre o rebanho asinino alimenta a disputa entre ONGs, pesquisadores e o maior frigorífico do setor, que nega risco de extinção e mira expansão
- Decisões judiciais se alternam desde 2018; o TRF-1 autorizou novamente o abate ao considerar a atividade legal e relevante para relações comerciais com a China
- Impasse envolve acusações de extrativismo, pressão por segurança jurídica, dependência da exportação de peles e debate cultural sobre o papel do jumento no Sertão