Entre o tumulto do fim de ano, o início das agendas de trabalho e o turbilhão de conferências e reuniões de 2024, em um raro momento de paz e calmaria – um fim de semana em que meu único propósito de vida foi o de não sair do sofá a não ser por motivos de força maior –, fiz algo que queria fazer desde o ano passado: maratonei Yellowstone.

A série fez um sucesso enorme nos EUA e em outras audiências pelo mundo. É uma espécie de neofaroeste, em que a personagem principal são as belas paisagens de Montana. Ali acontecem os dramas da família Dutton, cuja missão é proteger seu rancho de todo tipo de inimigo, dos burocráticos aos violentos.

É difícil não fazer um paralelo cultural entre a visão de mundo dos pecuaristas de Montana e os brasileiros. Aliás, um fazendeiro daqui vai sempre ter mais coisas em comum com um fazendeiro americano, australiano, argentino ou canadense do que teria com brasileiros de outras realidades. Mato Grosso poderia facilmente ser nosso Montana.

É impossível querer debater a pecuária nacional sem entender profundamente os valores enraizados nessa gente. A família e seu legado, a palavra, o amor e o cuidado à terra e aos animais e, sobretudo, o apreço pela própria liberdade e modo de vida que em um mundo cada vez mais complexo eles veem ameaçados.

Na série, os Dutton não titubeiam em usar quaisquer meios para defender esses valores. Em um parêntese, devo dizer que a agricultura corporativa moderna muitas vezes entende terra como uma espécie de galpão industrial, onde se coloca insumo de um lado e se tira produto de outro. É uma visão completamente diferente da que um pecuarista de verdade tem da sua terra.

Na COP 28, em Dubai, muito se falou sobre a transição de sistemas alimentares. A redução do impacto necessário em emissões na produção de alimentos.

No Brasil, a pecuária está no centro da discussão. Não só pela sua correlação com o desmatamento na Amazônia, mas porque é a atividade que ocupa a maior área dentro da produção nacional e pelo gap de eficiência que ainda existe no setor. É preciso rastrear o gado, é preciso ter novos produtos financeiros para a pecuária, o pecuarista precisa tomar crédito, precisa de assistência...

Um dos motivos do sucesso de Yellowstone é o de mostrar um modo de vida que muita gente anseia por ter. Há uma tese de doutorado, de Gislene Silva, da PUC de São Paulo, depois transformada em um livro chamado O Sonho da Casa no Campo.

Gislene entrevistou assinantes da revista Globo Rural na área urbana de São Paulo, que não eram produtores e nem tinham nenhuma relação com o campo. O que ela descobriu é que muita gente vive em conflito com o modelo civilizatório urbano e cria um imaginário de um mundo possível, longe da violência, do trânsito e da poluição, em um lugar de convívio simples, mas harmonioso com a natureza e com as pessoas.

Algumas lições de comunicação podem ser tiradas daqui. A primeira é que esse estudo nos dá uma dica de como o campo pode tocar o coração da cidade. A outra é como podemos dialogar com pecuaristas. Quando falamos de transição de sistemas alimentares para um pecuarista que vive em um lugar onde a maioria de nós pagaria para passar férias, ele provavelmente te daria aquele olhar de John Dutton pensando: o que este imbecil está achando que tem de errado aqui?

Um pecuarista jamais vai tomar uma decisão porque alguém acha que ele deve fazer, mas pelo que ele pensa ser melhor para sua família, sua terra, seus animais. Eu mesmo já os chamei outras vezes de “os últimos homens livres do ocidente”. Tenho orgulho de conhecer vários destes e de chamar alguns de amigos.

É impossível querer debater a pecuária nacional sem entender profundamente os valores enraizados nessa gente

Mas há um detalhe nessa história toda. Na realidade brasileira, tem gente que usa boi para roubar terra pública. Tem uma massa de pequenos produtores com poucas cabeças de gado em regime de subsistência. Tem muita gente com outra fonte de renda e que ainda usa gado como uma espécie de poupança, sem entender muito o que está fazendo. E há gente que simplesmente não tem apoio para melhorar.

Eu receio que no Brasil, o pecuarista de verdade, o que vive da e para a pecuária, seja apenas um pedaço dentro do universo nacional da produção. E eles não são o problema.

Essa é uma mensagem que precisa ser martelada por quem quer dialogar com a pecuária. E que precisa ser entendida pelas associações de pecuaristas, pois são esses pecuaristas que deveriam estar pensando o futuro de sua atividade, em como defender o que fazem de melhor e, ao mesmo tempo, enfrentar os desafios que no fim prejudicam sua própria imagem.

Fernando Sampaio é Engenheiro Agrônomo e Diretor de Sustentabilidade da Abiec.