Não bastasse o horror da tragédia das enchentes que acometeram o estado do Rio Grande do Sul, o sofrido povo brasileiro tem que lidar com pequenos horrores paralelos à tragédia principal, causados por desocupados em busca de atenção.
Entre estes, estão os que usam recortes da desgraça para promover alguma posição política ou os sommeliers de doações (by Madeleine Lascko), especialistas em julgar a bondade alheia, avaliando quem está sendo suficientemente bom (em seu ponto de vista) ou não.
Tudo isso nesse deprimente show das redes sociais, onde, nas palavras de Chimamanda Adichie, somos todos anjos nos acotovelando para demonstrar quem é mais virtuoso do que o outro.
Em relação ao Agro, foi bem ilustrativo perceber duas correntes de pensamento no pós-tragédia, digladiando-se nas redes sociais. A primeira, que tentava colocar no Agro a culpa pelas chuvas excessivas, pela contribuição que o setor dá ao desmatamento e ao seu apoio à flexibilização de leis ambientais.
A segunda, que tenta de todo jeito livrar o Agro de ter tido qualquer papel na tragédia, isso quando não nega abertamente que as enchentes tenham qualquer relação com mudanças climáticas e que a forma como usamos nosso território tenha qualquer relação com essas mudanças.
Francamente, precisamos abstrair a disputa idiota das redes sociais e focar nas nossas incompetências básicas, que podem sim trazer consequências cruéis para a vida real das pessoas.
A nossa primeira incompetência básica é a de pensar a longo prazo.
Independentemente se você “acredita” (como se fosse questão de fé) em mudanças climáticas de causas antropogênicas, há tempos modelos apontam para um aumento da frequência de eventos extremos – e, no caso do Brasil mais secas no norte e mais chuvas no sul. Até agora as previsões estão sendo confirmadas.
No setor público, a incompetência em pensar a longo prazo é indiferente à esquerda e à direita. Raro é o político que pensa além das próximas eleições.
Um extenso programa sobre adaptação às mudanças climáticas, o Brasil 2040, foi simplesmente engavetado em 2015. Nenhum governador ou prefeito vai investir hoje para prevenir desastres que possam ou não ocorrer no futuro, que imaginam longínquo e fora de seus mandatos.
Questiono se obras de reconstrução em Minas Gerais, na Bahia, na região serrana do Rio e as que serão feitas no Rio Grande do Sul levaram ou levarão em consideração a adaptação a mudanças climáticas.
No lado privado, o Agro deveria ser o setor mais preocupado com possíveis cenários de mudanças climáticas, dada a óbvia influência do clima sobre a produção.
É inegável que o enfrentamento à crise exige esforços globais. Na agenda do clima, que envolve desde governos, finanças e empresas, o debate envolve principalmente transição energética e transição em sistemas alimentares.
O Agro brasileiro tem papel relevante nas duas discussões e pode não só mostrar o potencial que tem no enfrentamento a mudanças climáticas, como liderar um novo modelo de desenvolvimento e de economia verde.
Para isso, precisamos enfrentar uma segunda incompetência básica no país, a gestão territorial e o ordenamento de paisagens.
O governo claramente não consegue concatenar quem ocupa suas terras, suas obras de infraestrutura, a proteção de seus recursos e o clima. E o País ainda age como se nossos recursos fossem infinitos, ocupando e degradando território para ocupar um pouco mais ali na frente.
Em todas as arenas internacionais de que participei, sempre ouvi de representantes do Agro sobre nossa imensa capacidade em produzir mais sem necessidade de desmatar... Bem, é hora de fazer isso acontecer.
Produzir onde vale a pena produzir, preservar onde é necessário preservar. Construir uma agenda de consenso, público-privada, sobre o enfrentamento à ilegalidade, a recuperação de áreas degradadas, a defesa e efetiva implementação do Código Florestal, a disseminação de tecnologias de baixo carbono, o financiamento verde e a inclusão de pequenos produtores, a restauração florestal e a rastreabilidade da produção, teria o potencial de unir um amplo espectro de apoiadores em toda a sociedade e na esfera política.
E poderia levar o Agro brasileiro ao papel de protagonista, que deveria, por direito, ocupar na agenda do clima, deixando de se pautar pelo atraso e pela defesa de interesses isolados e de curto prazo.
O que nos leva à uma terceira grave incompetência: a escolha de lideranças.
Não é de hoje que se aponta uma carência de lideranças em geral, no mundo, no Brasil, na política, no nosso setor.
Em tempos onde as redes sociais corroem a confiança entre pessoas, entre setores distintos da sociedade, em instituições, o papel de lideranças é crítico.
É preciso resgatar o entendimento que temos sobre liderança. Líder não é aquele que fala o que você quer ouvir, em busca de likes e aplausos. Esse só é líder de torcida.
Líder é capaz de ler os sinais de mudança em contextos globais e locais, de ouvir opiniões divergentes, amplificar vozes e apontar caminhos e soluções.
Estamos com excesso de líderes de torcida e em carestia de líderes de verdade. E, dada a complexidade dos temas com os quais lidamos, é preciso que líderes apoiem-se em redes de colaboração.
Nizan Guanaes, em uma coluna recente fala de uma aula na Harvard Business School, onde seu professor trouxe um compilado de 44 desculpas comumente usadas em empresas para não fazer nada. Não mudar rumos. Não enfrentar desafios difíceis.
É uma reflexão que serve para a ONU, para governos, para empresas e para qualquer setor.
Eu não acredito que, na agropecuária, possamos bancar o luxo de não fazer nada. Acredito que só temos a ganhar agindo em relação ao clima.
Se há algo a tirarmos da tragédia é que a imensa maioria de brasileiros é, sim, solidária. Coopera, faz sua parte, quer o bem para a população.
Que saibamos aproveitar os homens e mulheres de boa vontade para ignorar a estupidez inútil do mundo virtual e enfrentarmos nossas incompetências.
Minha solidariedade aos amigos gaúchos, suas famílias e todos os afetados pelas enchentes. Este bravo povo haverá de superar mais essa.
Fernando Sampaio é engenheiro agrônomo, diretor de Sustentabilidade na Abiec, cofacilitador da Coalizão Clima Florestas e Agricultura.