“Está na hora de aumentar o tamanho da pizza. É melhor um pedaço moderado de uma pizza em crescimento do que brigar por espaço em uma pizza que encolhe.” Foi assim que Joe Nicosia, diretor global de operações e senior head da plataforma de algodão da Louis Dreyfus Company (LDC), uma das maiores de seu setor, sintetizou o desafio que produtores de algodão do Brasil e do mundo têm pela frente.
Para transformar a pizza do algodão em “tamanho família”, Nicosia defendeu que uma causa comum precisa unir, com urgência, Brasil e Estados Unidos, concorrentes na produção e no mercado global da pluma: a guerra contra os tecidos sintéticos, caso do poliéster, derivado de combustíveis fósseis.
A defesa dessa ideia foi o ponto central da participação de Nicosia no ANEA Cotton Dinner, evento anual promovido pela Associação Nacional dos Exportadores de Algodão (ANEA), que acontece esta semana no hotel Rosewood, em São Paulo.
A pressa de Nicosia está vinculada à desaceleração da demanda da China pela pluma observada ao longo da última safra.
Nesta terça-feira, dia 1º de julho, no auditório do Rosewood, diante de grandes produtores de algodão como Eraí Maggi Scheffer, líder do Grupo Bom Futuro, Guilherme Scheffer, um dos herdeiros do Grupo Scheffer, e Alexandre Schenkel, ex-presidente da Associação Brasileira de Produtores de Algodão (Abrapa), Nicosia foi objetivo, como costumam ser os americanos: “Devemos estar preparados para o fato de que o mercado na China provavelmente será muito menor do que no passado.”
A desaceleração das compras chinesas de algodão já vem sendo sentida pelos produtores brasileiros e de outras partes do mundo. Nos nove primeiros meses da safra 2024/2025, a China importou 467 mil toneladas de pluma brasileira — volume bem inferior às 1,159 milhão de toneladas registradas no mesmo período da temporada anterior, segundo um estudo divulgado pelo AgFeed em abril passado.
Dessa forma, Bangladesh e Vietnã passaram os chineses, hoje o terceiro maior mercado de exportação da pluma brasileira.
Ao mesmo tempo, a China tem produzido mais algodão – entre 7 milhões a 7,5 milhões de toneladas na última safra, segundo disse o presidente da Anea, Miguel Faus, ao AgFeed – e também mais poliéster, tecido sintético feito a partir de combustíveis fósseis.
Hoje, 70% das fibras utilizadas pela indústria têxtil global são sintéticas, principalmente poliéster. No início dos anos 2000, essa participação era de cerca de 50%. Mais de 60% da produção de fibra sintética vem da China.
Com menos demanda de algodão e mais produção de fibras sintéticas, Nicosia atenta para o fato de que alguém pode ficar fora do jogo: “Ou o mundo aumenta o consumo ou alguém tem que parar de cultivar algodão. Esse é o nosso dilema. Porque vamos cultivar mais algodão do que consumimos no mundo”, afirma.
Nicosia ressaltou que o aumento da participação de algodão deve também passar pela resolução de questões macroeconômicas, como o recuo da inflação ao redor do mundo, e geopolíticas, com o fim de conflitos na Ucrânia e Israel. Mas centrou suas atenções para a batalha a ser deflagrada contra as fibras sintéticas – causa em que os grandes países produtores de algodão precisam se unir, em sua opinião.
“Precisamos de um novo plano de jogo, em que todos possam ganhar. E esse plano começa com a luta contra as fibras artificiais”, afirmou.
Para dar cabo à tese, uma ferramenta que Nicosia acredita ser bastante importante está na área de advocacy. Para ele, é preciso investir em ações do tipo em defesa da commodity tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. “Acredito que o próximo grande passo que podemos alcançar não é o consumidor, mas sim o legislativo e o regulatório”, afirmou.
Hoje, na avaliação de Nicosia, os consumidores não associam os derivados do combustível fóssil às roupas que vestem. “Precisamos garantir que as pessoas saibam a diferença entre poliéster, plástico, microfibras e microplásticos. Quando pensam em plástico, as pessoas pensam em embalagem, não pensam em roupas.”
Ele avalia que Robert F. Kennedy, secretário de saúde do governo de Donald Trump, pode ser um importante aliado para o setor. “Ele odeia plásticos”, disse Nicosia. Não apenas RFK, mas os políticos americanos recebem bem a ideia de uma luta contra as fibras sintéticas, relata Nicosia.
“Quando você conversa com o Congresso americano, eles adoram essa ideia porque apoia nossos produtores, porque a fibra traz problemas de saúde e porque se opõe à China. A frase que eles mais usam é: seria bom tornar a China processadora, e não concorrente dos Estados Unidos.”
Miguel Faus, presidente da ANEA, disse ter gostado das ideias de Nicosia em conversa com o AgFeed após a fala do executivo americano. “Precisamos nos juntar aos nossos concorrentes no algodão e lutarmos contra as fibras sintéticas. O algodão perdeu muita participação no mercado e precisamos recuperá-la.”
O novo rei do algodão
Nicosia não teve pejo de admitir que os Estados Unidos foram mesmo destronados pelos brasileiros na produção de algodão. Ao apresentar gráficos que mostram o boom da commodity nos últimos 25 anos, passando de 1 milhão para cerca de 3 milhões de toneladas exportadas, ele ressaltou: “O coração do algodão no mundo hoje é o Brasil. E o que eu acho mais impressionante é a rapidez como isso aconteceu”, afirmou.
No ano passado, o Brasil ultrapassou os Estados Unidos em volume de exportações de algodão, tendo embarcado cerca de 2,70 milhões de toneladas de pluma, contra 2,57 milhões de toneladas dos Estados Unidos ,que liderava o ranking há anos.
“As exportações de algodão dos Estados Unidos às vezes eram o dobro ou o triplo das exportações combinadas do Brasil e da Austrália. Hoje, nem chegam perto. E não vai demorar muito para que, juntas, as exportações desses dois países dobrem em comparação com as dos Estados Unidos”, analisou.
A China comprava algodão dos Estados Unidos e, durante a primeira guerra comercial deflagrada por Donald Trump em sua incursão inicial à Casa Branca, na década passada, passou a adquirir a pluma de outros países, principalmente do Brasil.
Dados da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa) repassados ao AgFeed recentemente indicam que, na safra 2016/2017, o Brasil respondia por apenas 11% das importações chinesas de algodão. Já na temporada 2023/2024, esse percentual saltou para 49%. No mesmo período, a participação dos Estados Unidos caiu de 82% para 38%.
Com as tarifas impostas por Trump e a retaliação chinesa, chegou-se a especular que o Brasil poderia ampliar ainda mais sua fatia nesse mercado. No entanto, isso não se confirmou com a desaceleração das importações chinesas de uma forma geral. Para a safra 2024/2025, a projeção atual é de apenas 1,2 milhão de toneladas importadas, segundo Nicosia.
O consumo global previsto para a safra 2025/2026 deve ficar em 25,6 milhões de toneladas, praticamente o mesmo nível da safra 2024/2025, de 25,4 milhões de toneladas, segundo dados do USDA (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos) compilados por Nicosia.
“Com o crescimento da produção, a necessidade de algodão por parte da China diminuiu de forma geral. Haverá menos algodão brasileiro indo para a China, assim como menos algodão americano, australiano e de outros países”, disse o executivo da LDC ao AgFeed.
Ele disse também que os preços do algodão não caíram o suficiente para causar uma redução na área plantada no Hemisfério Sul e que a valorização do dólar americano compensa parte da queda nos preços futuros.
Além disso, Nicosia ressatou que o alto preço de suporte da China (18.600 yuans por tonelada, ou US$ 1,18 por libra de pluma) limitará qualquer redução significativa na área plantada com algodão.
Miguel Faus, da ANEA, disse à reportagem que o nível de preços atual não é ruim para o Brasil. “Isso porque o produtor brasileiro tem alta produtividade. O menor custo está aqui no Brasil e conseguimos competir nesse nível de preço, em uma situação de vantagem sobre nossos concorrentes.”
Algodão brasileiro precisa provar qualidade
Na frente de grandes nomes do setor e com a experiência de quem já esteve no topo do mercado, Nicosia deu alguns alertas aos produtores brasileiros: o Brasil precisa provar que tem um algodão de alta qualidade, livre de contaminação e com valor equivalente ao do algodão americano e australiano.
Mas Nicosia alertou que também é preciso cuidado ao adotar métodos de qualidade do sistema americano de produção de algodão, como o da classificação por seed coat neps, fragmentos da casca da semente. “Uma vez que é classificado, não tem como contornar. Você não pode negar que está lá, porque eles estão te dizendo que está. Quando você vê isso, a nota (do algodão) sofre um desconto de 8 a 25 centavos”, explica.
Outro ponto sensível é o sistema de seleção de estoque fardo a fardo, que exige investimentos substanciais em armazéns, mão de obra, equipamentos e infraestrutura de TI. “Os custos de armazenagem são 500 mil libras mais caros que no resto do mundo”, diz.
Para além da qualidade do produto em si, Nicosia destacou a necessidade de o Brasil melhorar sua logística. “Vocês precisam de estradas e de um sistema ferroviário melhores. Lembrem que o algodão é uma mercadoria pesada a granel. O transporte ferroviário é a maneira mais eficiente de transportá-lo”, afirma.
Ele reconhece os avanços do Brasil na exportação e elogia o Porto de Santos, considerado por ele um dos “melhores do mundo”, mas alerta: é preciso diversificar. “Vocês vão precisar de novos portos, até porque, e se algo acontecer em Santos, como uma greve ou um desastre natural? Esse é um risco”, afirma.
Resumo
- Joe Nicosia, da LDC, sugere que Brasil e EUA se unam contra o crescimento das fibras sintéticas, que dominam 70% do mercado têxtil global
- A medida é necessária, segundo Nicosia, pois a China vem reduzindo as importações e aumentando a produção doméstica de pluma e das fibras sintéticas, pressionando o consumo mundial de algodão
- O Brasil já supera os EUA em exportações e deve focar em qualidade, logística e advocacy para ampliar consumo do mercado global do algodão