O empresário Guilherme Quintella passou a semana em um périplo pelas capitais do agro no Mato Grosso. Passou por Sorriso, Sinop e Lucas do Rio Verde, sempre com a mesma missão: apresentar um novo traçado para a Ferrogrão, ferrovia de 933 quilômetros que pretende ligar Sinop ao Porto de Miritituba, no Pará, rasgando a Amazônia para escoar os grãos do Centro-Oeste aos terminais portuários do Arco Norte.
Presidente da Estação da Luz Participações (EDLP), empresa que idealizou a obra há mais de uma década, Quintella levou à região uma mensagem otimista em relação ao projeto com valor estimado em mais de R$ 25 bilhões. Com as alterações no trajeto dos trilhos, evitando passar por terras indígenas demarcadas e reservas ambientais, ele garante ter eliminado os entraves que brecaram durante anos seu andamento, fazendo com que o projeto se tornasse alvo de sucessivas contestações judiciais.
"O projeto agora está com a ANTT (Agência Nacional de Transporte Terrestre), que vai encaminhar nos próximos meses, acho que em setembro, para o TCU (Tribunal de Contas da União), que vai analisar. Com o TCU autorizando, o governo vai licitar no primeiro semestre de 2026", disse Quintella em conversa com o AgFeed.
A concessão da Ferrogrão se daria justamente no trecho entre Sinop e Miritituba, com a possibilidade de uma extensão a ser feita até Lucas do Rio Verde, com uma segunda concessão.
Há pelo menos dois grupos econômicos que estão interessados nessa licitação, que já contrataram equipes e estão trabalhando nesse projeto, afirmou Quintella à reportagem, sem trazer mais detalhes por contratos de sigilo.
Em evento na Prefeitura de Sinop, Quintella afirmou que grupos estrangeiros e grupos nacionais “têm nos procurado e procurado o Ministério dos Transportes, a ANTT, que é o local onde o projeto está hoje, para que possam ter o reconhecimento do projeto e se prepararem para a disputa do leilão do ano que vem.”
Além da ferrovia em si, a ideia é que sejam também implantados terminais rodoviários nas cidades de Miritituba, Matupá, no Pará, e em Sinop e Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso, integrados aos terminais portuários de Santarém, Santana e Vila do Conde, no Pará.
O cronograma de implantação da Ferrogação contempla que os trabalhos para dar início ao projeto começariam ainda em 2026. As obras de terraplanagem e de instalação do canteiro de obras começariam a partir de 2028, com a conclusão e início das operações da ferrovia a partir de 2034.
A reportagem teve acesso à apresentação que detalha os estudos da ELDP, apresentada por Quintella nas cidades de Mato Grosso.
A previsão é de que a ferrovia acompanhe a faixa de domínio (nome técnico para as faixas laterais das rodovias) da BR-163, rodovia que hoje transporta mais de 20 milhões de toneladas e que, sem a Ferrogrão, precisaria ser duplicada para atender à demanda de grãos.
Dessa forma, a EDLP argumenta que a rota da Ferrogrão não vai atravessar o Parque Nacional do Jamanxim e nenhuma terra indígena demarcada, pontos que levaram à judicialização do empreendimento nos últimos quatro anos.
As terras indígenas mais próximas, Swaré Bap in (Apompu) e Sawré Muybu (Pimental), estão distantes 14,5 km e 29,6 km, respectivamente, da futura ferrovia, de acordo com o documento.
O estudo diz ainda que duas terras indígenas, mas urbanas – Praia do Mangue e Praia do Índio, em Itaituba (PA) – estão a menos de 10 quilômetros do traçado da ferrovais.
O projeto da EDLP também afirma que a Ferrogrão está fora do parque de Jamanxim, ainda que 49 quilômetros da ferrovia passarão do parque.
A empresa alega que o parque foi criado como contrapartida à pavimentação da BR-163, que se deu em 2006, e que o decreto de criação já previa a exclusão da faixa de domínio da rodovia da área do parque.
Como a Ferrogrão está na faixa da domínio, ficaria, portanto, fora do Parque do Jamanxim. "Uma parte muito grande do traçado é linear com a rodovia que já existe", diz Quintella.
O projeto prevê também o plantio compensatório de 2 mil hectares de vegetação nativa. De acordo com o documento, 60% da faixa de domínio já está desmatada.
A proposta da EDLP promete também uma redução significativa das emissões de gases do efeito estufa. Nas contas da empresa, uma composição ferroviária com capacidade de carregar 16,9 mil toneladas substitui 422 caminhões com capacidade de 40 toneladas.
Dessa forma, ainda nos cálculos da empresa idealizadora da Ferrogrão, haveria uma redução de 40% das emissões ao ano de C02 feitas no Mato Grosso, com 3,4 milhões toneladas de CO2 ao ano que deixariam de ser emitidas.
No documento, a EDLP defende também que a Ferrogrão é a alternativa mais eficiente entre as possíveis rotas de escoamento de grãos a partir de Lucas do Rio Verde, com a carga saindo pela Ferrogrão, passando pelo Porto de Mirituba, e depois seguindo Hidrovia do Tapajós até chegar ao Porto de Barcarena (PA). A distância total chegaria a 2.175 quilômetros, com custo de frete de US$ 34 por tonelada.
O estudo compara esses valores com os de outras rotas ventiladas para reforçar a ideia de que o custo que a Ferrogrão pode trazer é menor. Pelo traçado da Malha Norte (EF-364), que vai de Rondonópolis (MT) até Santa Fé do Sul (SP) e segue pela Malha Paulista até o Porto de Santos (SP), o custo estimado é de US$ 44 por tonelada. Já pelo trecho que liga Lucas do Rio Verde à Ferrovia Norte-Sul, somado ao trajeto até o Porto de Barcarena (PA) via Açailândia, o custo sobe para US$ 55.
Se a carga fosse levada pela Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (Fico), hoje em construção, conectando-se à Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol) até o futuro Porto de Ilhéus (BA), o valor chegaria a US$ 60 por tonelada. E pela rota mais cara considerada — a Ferrovia Transoceânica, que também ainda não saiu do papel e ligaria o Brasil ao Porto de Chancay, no Peru — o custo atingiria US$ 76 por tonelada.
Com a Ferrogrão, o EDLP promete uma redução de custo logístico de R$ 8 bilhões ao ano, com redução de 20% do frete médio em Mato Grosso. Além disso, segundo o estudo, com a implantação da Ferrogrão, a matriz de transportes de Mato Grosso passaria a ser 86% ferroviária e 14% rodoviária - hoje, metade da matriz é ferroviária e a outra metade é rodoviária.
O projeto deve envolver a implantação de 166,1 mil toneladas de trilhos, 65 pontes ferroviárias, 10 viadutos rodoviários e 4 viadutos ferroviários. Para a construção em si, serão necessários aproximadamente 95 milhões de metros cúbios de terraplanagem na linha tronco.
O estudo da EDLP diz que a implantação da Ferrogrão "não terá obras complexas", pois o terreno tem "condições bastante favoráveis, o que ressalta a viabilidade e a eficiência do projeto ferroviário."
O documento diz ainda que, nos 6.581 metros lineares de pesquisa geológicas " não foram identificadas quantidades significativas de tipos de solos críticos para a construção e manutenção da ferrovia.”
Disputas no Judiciário
O projeto da Ferrogrão vem de mais de uma década e começou em 2012, quando a Estação da Luz Participações se uniu às tradings ADM, Amaggi, Bunge Carill e Louis-Dreyfus Company (LDC) para identificar possibilidade de investimentos em logística pelo Brasil para melhorar o escoamento da produção agrícola brasileira.
Mais de 38 mil rotas foram analisadas até que a EDLP concluiu que o caminho ideal era a construção da EF-170, que logo ficaria conhecida como Ferrogrão, entre Sinop e o porto de Miritiuba, localizado em Itaituba (PA).
Em 2014, o Ministério dos Transportes autorizou que a EDLP desenvolvesse estudos de viabilidade técnica da rodovia, que foram entregues no ano seguinte, com três revisões feitas entre 2016 e 2019.
Em março de 2021, contudo, o Supremo Tribunal Federal acolheu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade protocolada pelo PSOL. A sigla argumentou que para alteração e supressão de áreas das unidades de conservação é necessária a promulgação de lei em sentido formal.
Em 2017, o ex-presidente Michel Temer sancionou a lei nº 13.452, em que alterava os limites do Parque do Jamanxim após ter assinado a medida provisória nº 758, sobre o mesmo assunto, em dezembro de 2016.
Na avaliação do relator da liminar, ministro Alexandre de Moraes, a alteração do traçado da ferrovia não deveria ter sido decidida por medida provisória.
O projeto ficou parado até setembro de 2023, quando Moraes autorizou a retomada e atualização dos estudos técnicos e processos administrativos relacionados à Ferrogrão. O Ministério dos Transportes criou, então, um grupo de trabalho de diálogo, formado por representantes do governo federal, da sociedade civil e de comunidades indígenas.
“Está autorizado pelo Supremo Tribunal Federal que haja licitação da Ferrogrão. Só não pode começar a obra porque está aguardando o licenciamento ambiental”, disse Quintella ao AgFeed.
Em uma carta aberta divulgada há um ano, o PSOL, o Instituto Kabu, Rede Xingu+ e a Aliança #FerrogrãoNão, membros do comitê, anunciaram a saída do grupo. O documento diz que o comitê, que “deveria ser um espaço de diálogo transversal e interministerial, terminou esvaziado, sem que a Casa Civil enviasse sequer um representante a uma única reunião.”
“A Infra S.A. e o Ministério dos Transportes já divulgaram que os estudos, realizados pela mesma empresa autora dos anteriores, serão aprovados sem discussão, participação ou transparência”, prosseguiu o documento.
“Juntamente com a Aliança #FerrogrãoNão, manifestamos nossa discordância e profunda preocupação pelo tratamento dado ao tema. Não mediremos esforços para barrar esses trilhos de destruição e seguiremos os diálogos com o governo federal de outras maneiras e em outras instâncias.”
A viabilidade da Ferrogrão passou a ser uma bandeira encampada pelo governo Lula. Em maio passado, por exemplo, o vice-presidente Geraldo Alckmin disse que iria conversar com ministros do STF para “liberar” as obras da ferrovia, que está no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo federal.
Resumo
- Novo traçado da Ferrogrão foi apresentado em cidades de Mato Grosso, com promessa de evitar áreas de proteção ambiental e terras indígenas demarcadas
- Estudo da empresa idealizadora aponta redução de 40% nas emissões anuais de CO2 no MT e promete economia de R$ 8 bi ao ano em custos logísticos
- Projeto foi alvo de disputa no STF, que suspendeu o andamento dos estudos em 2021, mas autorizou retomada dois anos depois