A Serra Gaúcha é reconhecida internacionalmente como o berço do vinho brasileiro, pois foi a partir da segunda metade do século XIX que os imigrantes de origem italiana começaram a implantar vinhedos e a produzir vinhos na região Nordeste do Rio Grande do Sul.
Mas a história da vitivinicultura gaúcha é muito mais antiga. Começa pelo menos 250 anos antes dos colonos italianos aportarem no Sul, com a chegada dos padres jesuítas espanhóis à região hoje conhecida como os Sete Povos das Missões - onde predomina o cultivo em larga escala de commodities como soja, milho e trigo.
Ao padre jesuíta espanhol Roque González de Santa Cruz é atribuído o cultivo das primeiras vinhas na região, em 1619. As primeiras castas plantadas foram as espanholas, oriundas da Rioja, Criolla e Criolla Chica, também chamadas de País e Mission. As mesmas, aliás, que deram origem à vigorosa indústria vinícola do Chile - país que hoje faz um grande esforço para resgatar a cepa Mission em vinhos boutique de pequena tiragem.
Com o desmantelamento das Missões Jesuíticas espanholas após sangrentas escaramuças com as forças da Coroa Portuguesa, a produção de vinhos locais - que contava com a colaboração dos indígenas Guaranis catequizados - entrou em declínio e desapareceu.
A vocação vinícola da região, entretanto, nunca se extinguiu completamente - e renasce agora com a formação de uma nova e promissora região vitivinícola, batizada de Terroir NoMi (contração dos nomes das regiões Noroeste e Missões do Rio Grande do Sul).
Se a “marca” NoMi surgiu em março deste ano, num churrasco organizado por representantes das oito vinícolas da região regado a vinho da terra, alguns dos modernos rótulos - como os da Malgarim Vinhos, de São Borja, na fronteira com a Argentina - já tem uma trajetória de quase três décadas.
“Da produção vitivinícola da região só restou a história”, diz o produtor Sérgio Malgarim. Mas, é sobre essa rica tradição histórica que ocorre, agora, o renascimento da produção local de vinhos.
Principalmente pelas mãos de produtores como Malgarim, Carlos Boff, da Vinícola Don Carlos, de Santo Ângelo, Alcindo Neto, da Vinícola Novos Caminhos Wine, de Ijuí, Delci Weber, da Vinícola Weber, de Crissiumal, Jorge Fin, da Vinícola Fin, de Entre-Ijuís, Márcio Bortolini, da Bortolini Azienda Agrícola, de Ijuí, Leodir Hilgert, da Casa Tertúlia, de Três de Maio, e Marli Wazlawick Fischer, da Vinhos Famìlia WF, também de Ijuí.
Os novos pioneiros do vinho brasileiro têm em comum, principalmente, o desejo de inovar - seja nas variedades, nos cortes (mesclas de vinhos de castas diferentes) ou na arte dos rótulos.
Embora também cultivem cepas viníferas internacionais, como Cabernet Sauvignon, Merlot, Tempranillo ou Chardonnay, eles investem pesado em variedades ainda pouco conhecidas no Brasil, como a grega Xinomavro, a georgiana Saperavi, a montenegrina e sérvia Vranac ou as italianas Casavecchia e Nero D’Avola.
A Vinícola Weber, de Crissiumal, que também produz mudas, testa 40 diferentes variedades de videiras. Os blends também podem ser inusitados - como um “vinho laranja” da Don Carlos, elaborado com as uvas Palava, Chardonnay, Viognier e Pinot Bianco.
Os rótulos do Terroir NoMi remetem quase sempre à longa tradição missioneira: nomes como Sepé, da vinícola Malgarim, que alude ao índio Guarani Sepé Tiarajú, símbolo da fibra do povo gaúcho, ou Aragano, da Don Carlos, sinônimo de algo arisco, como um cavalo difícil de aceitar a doma.
Se a terra vermelha argilosa e fértil que caracteriza as regiões Noroeste e Missões é ideal para o cultivo de grãos, o mesmo não se pode dizer em relação à videira, que viceja melhor em solos pobres, áridos e pedregosos.
Mas este não chega a ser um problema para os novos vitivinicultores, que estabelecem seus vinhedos justamente em áreas inadequadas para a soja ou o trigo.
“O meu vinhedo de 2,5 hectares, assim como os de outros produtores parceiros, fica nas encostas do Rio Ijuí, uma área com bastante pedra e boa drenagem”, conta Boff, da Vinícola Don Carlos.
Além disso, a forte amplitude térmica (diferença entre as temperaturas do dia e da noite) favorece a concentração de substâncias desejáveis nos vinhos, como os polifenóis.
Entusiasmados com a aceitação que vêm obtendo para seus vinhos entre o público e a crítica especializada, as oito vinícolas da região já se organizam em uma associação e buscam apoio da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, para a conquista de uma Indicação de Procedência (IP) junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), a exemplo de outras regiões vinícolas brasileiras.
A demarcação não é uma certificação de qualidade, mas uma espécie de certidão de identidade regional de um produto, que tem considerável apelo comercial entre os consumidores.
O próximo passo, que já começa a ganhar tração, é o desenvolvimento do enoturismo - atividade fundamental para a sustentação econômica de qualquer vinícola moderna. Projetos de hotéis, pousadas e restaurantes, que formarão um “corredor enogastronômico”, já estão em andamento - alguns, inclusive, em operação, como na Vinícola Don Carlos.
Além disso, a região ainda possui pontos turísticos que remetem a séculos de história, como as ruínas de São Miguel ou a Catedral de Santo Ângelo.
A distância de cerca de 400 quilômetros da capital gaúcha, Porto Alegre, não preocupa os produtores: eles dizem que a região está bem servida de aeroportos, em Santo Ângelo, Passo Fundo e, futuramente, em São Borja, que recebem voos comerciais regulares de São Paulo.