Depois de décadas de negociações, o Brasil obteve o reconhecimento do status de seu rebanho bovino como livre de aftosa sem vacinação.

O anúncio aconteceu nesta quinta-feira, em Paris, na França, durante a 92ª Sessão Geral da Assembléia Mundial de Advogados da Organização Mundial de Saúde Animal (WOAH, em inglês). O Brasil havia protocolado o pedido de reconhecimento em setembro de 2024.

O presidente Lula deve receber oficialmente o certificado no dia 6 de junho, em uma cerimônia após o fórum econômico Brasil-França, embora o status tenha validade imediata.

Antes desse reconhecimento, apenas os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Acre, Rondônia, partes do Amazonas e do Mato Grosso eram considerados livres de aftosa sem vacinação. O restante do Brasil, até então, tinha o status de livre de aftosa com vacinação.

Enquanto para alguns esse reconhecimento representa um reforço para que a carne bovina brasileira possa chegar a novos mercados, para outros, o pedido do Brasil representa um risco para a sanidade do rebanho.

Em nota, o presidente da Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária (CNA), João Martins, que estava presente na cerimônia em Paris, afirmou que o reconhecimento é uma conquista histórica para os produtores rurais e para todos os brasileiros, resultado de um trabalho de anos e de um esforço conjunto de pecuaristas, federações, sindicatos, os Estados, governos e políticas públicas .

“O anúncio feito hoje, de Brasil livre de aftosa sem vacinação, é um reconhecimento desse esforço, uma grande conquista. Mais do que nunca, o Brasil pode vender carne, um produto de altíssima qualidade, para qualquer país do mundo.”

Alcides Torres, da Scot Consultoria, afirma que o reconhecimento não é uma garantia, mas abre para o Brasil a perspectiva de chegar a mercados mais restritos. É o caso da Turquia, Japão e Coreia do Sul.

Torres explica que além de mais exigentes, esses mercados também pagam mais pela carne bovina. Enquanto o preço médio para os demais mercados gira em torno de US$ 5 mil a tonelada, o Japão, por exemplo, paga entre US$ 7 e 8 mil pela tonelada do produto.

“O Brasil negocia a abertura do mercado do Japão há cerca de 25 anos e muitas das vezes em que as conversas avançaram, acabaram por ficar travadas na questão do status do Brasil em relação à febre aftosa.

No início de maio, durante coletiva de imprensa, o presidente da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), Roberto Perosa, considerou que o reconhecimento do status do rebanho brasileiro é um marco histórico para a pecuária nacional.

“Estamos utilizando essa conquista como um ativo estratégico em negociações com mercados altamente exigentes, como o Japão. A expectativa é que possamos, ainda neste ano, concretizar a tão esperada abertura do mercado japonês à carne bovina brasileira — um processo que estava travado há duas décadas."

Na ocasião, o executivo confirmou uma missão técnica japonesa que deve vir ao Brasil em junho, como parte da continuidade do processo de negociações.

“Países como Filipinas e Indonésia já manifestaram interesse imediato em importar miúdos bovinos com base nesse novo status sanitário”, afirmou.

Segundo Torres, o reconhecimento ratifica a mensagem de que o Brasil tem um sistema sanitário e de fiscalização que é robusto - e funciona.

“Tivemos um exemplo da eficiência desse setor há alguns dias, quando surgiram as suspeitas de casos de influenza aviária em rebanhos de aves comerciais. Rapidamente as autoridades fitossanitárias isolaram as regiões, testaram os animais e o Brasil voluntariamente suspendeu os embarques como prova de confiança em seu sistema”, avalia.

Para ele, a mudança no status reforça a mensagem para o mercado internacional de que o Brasil não é o maior exportador de carne bovina por acaso, já que desenvolve um trabalho consistente para garantir a fitossanidade do rebanho. Prova disso é que os últimos casos de febre aftosa no Brasil aconteceram em 2005.

De lá para cá a produção de carne bovina brasileira cresceu exponencialmente. Com um rebanho de 194 milhões de cabeças, em 2024, segundo dados da Abiec, o Brasil exportou 2,9 milhões de toneladas de carne bovina para 157 países, o que gerou receita de US$ 12,8 bilhões. Para esse ano, a perspectiva é de que tanto a receita quanto o volume cresçam 12% em relação ao ano passado.

O especialista ainda pondera que o reconhecimento chega no momento em que o rebanho bovino dos Estados Unidos reduziu de tamanho, principalmente por conta do abate das matrizes. Com isso, a oferta de carne produzida no país diminuiu, influenciando os preços.

“Com a carne bovina dos Estados Unidos mais cara, os países compradores tendem a buscar alternativas para abastecer seus mercados, isso também pode ter contribuído para a decisão de reconhecer o status do Brasil”, avalia.

Mais riscos do que oportunidades?

Para outra fonte do setor com vasta experiência na área técnica, o reconhecimento do Brasil como país livre de aftosa sem vacinação oferece mais riscos sanitários do que oportunidades comerciais.

“O benefício atrelado à não-vacinação é muito menor se comparado ao risco que isso representa para o rebanho. Caso no futuro tenhamos um único animal com a doença, o Brasil todo pode ter suas exportações suspensas, prejudicando outras regiões”.

Outro aspecto destacado pela fonte é o fato de a vacinação funcionar como um censo para dimensionar o tamanho do rebanho brasileiro.

“Nós não temos a rastreabilidade e a contagem de doses de vacinas aplicadas funcionava para levantar o tamanho do rebanho de cada região. Até agora não temos outro mecanismo previsto para esse levantamento”, pondera.

Além disso, ela afirma que a questão mercadológica defendida por muitos não tem relação direta com a questão da vacinação. “O Japão e a Coreia, por exemplo, compram carne do Uruguai, um país que vacina seu rebanho”, pondera.

Outro ponto de atenção destacado é o efeito cascata na vacinação do rebanho em relação a outras doenças e patógenos.

“Com o avanço no número de estados livres de aftosa sem vacinação, já tivemos redução na demanda por vacinas que previnem outras doenças, o que pode aumentar ainda mais a partir de agora, ampliando os riscos sanitários para o rebanho brasileiro”.

Histórico da doença

O primeiro foco de febre aftosa no mundo foi registrado na Itália em 1514, tendo chegado ao Brasil em 1895 no triângulo mineiro, em razão da importação de gado da Europa.

Somente em 1951, com o avanço da doença no continente sul-americano, foi criado Centro Pan Americano de Febre Aftosa, sediado no Brasil.

Em 1992 o Brasil criou o Programa Nacional de Erradicação da Febre Aftosa (PNEFA) com a estruturação de estratégias para o combate à doença, incluindo a ampla vacinação do rebanho de bovinos e búfalos.

Os dois últimos casos da doença foram registrados no Brasil em 2005 nos estados de Mato Grosso do Sul e Paraná.

Dois anos mais tarde, Santa Catarina foi reconhecido internacionalmente como o primeiro estado brasileiro livre de aftosa sem vacinação. O reconhecimento para Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Acre, Rondônia, partes do Amazonas e do Mato Grosso viria em 2021.

Somente em 2017 o PNEFA começou a trabalhar com o intuito de viabilizar a suspensão completa da vacinação contra a aftosa no Brasil, com meta de tornar o país com o status reconhecido internacionalmente como livre de aftosa sem vacinação até 2023. No entanto, a meta foi revista e o prazo redefinido para 2026.

Em 2018, o Brasil teve seu status reconhecido pela OIE como livre de aftosa com vacinação.

Resumo

  • Organização Mundial de Saúde Animal reconheceu o Brasil como país livre de aftosa sem vacinação, comndição que buscava há duas décadas
  • Novo status pode ajudar a destravar negpciações com países como Japão, Turquia e Coreia do Sul, mais exigentes mas que pagam mais pela carne
  • Há, entretanto, quem veja um potencial risco: com menor rigor sanitário, um único caso pode gerar um bloqueio das exportações de todo o País