Menos de 15 dias após a notificação de ocorrência da gripe aviária em granja comercial, o Brasil recebeu, em Paris, o reconhecimento de país livre de aftosa sem vacinação, concedido pela Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA). Isso ocorreu 12 meses após o mesmo reconhecimento feito pelo Governo brasileiro, em maio de 2024. A retirada da vacinação seguiu o cronograma estabelecido pelo Plano Nacional de Erradicação da Febre Aftosa (PNEFA).
O novo status reduz espaço para argumentações sempre usadas contra a carne brasileira, geralmente classificadas como barreiras não tarifárias. Outro bônus é a confirmação do desenvolvimento da pecuária e da seriedade do controle sanitário do país. Não há dúvidas de que ambos trazem benefícios ao setor, contribuindo para a ampliação do acesso a mercados e a valorização da carne bovina nas exportações.
No entanto, junto com o bônus, vem o ônus de redobrar os cuidados com a vigilância, responsabilidade que recai sobre todos os envolvidos na pecuária, do produtor até os funcionários responsáveis pela fiscalização e gestão dos dados referentes à movimentação de bovinos.
Caso a doença ocorra no país, como aconteceu recentemente em algumas regiões da Europa, encontrará um rebanho não imunizado e uma oferta limitada de vacinas diante da dimensão do rebanho brasileiro. O risco não pode ser ignorado.
O PNEFA, no entanto, prevê as medidas e ações que precisam ser adotadas diante de um caso. Há protocolos e há viabilidade técnica para executá-los. E, da mesma forma que ocorreu com o recente episódio de gripe aviária, há também protocolos internacionais. O sucesso almejado com a conquista do status depende da capacidade de executar, integralmente, as medidas previstas.
Até o momento, o setor avícola deu um exemplo de sucesso na execução das ações preventivas e corretivas.
A ocorrência do primeiro caso de gripe aviária em granja comercial dois anos após o primeiro registro em aves silvestres no território é considerado um sucesso. Em outros países de elevada importância na avicultura, o vírus levou alguns dias entre o registro na fauna e a entrada em granjas comerciais. No Brasil, durante todo o período, foram registrados diversos casos em animais silvestres ou em criações de subsistência - aquelas aves criadas em quintais, na área urbana ou na rural.
Até o dia 4 de junho, o status do Brasil em relação à gripe aviária era de foco controlado. Há casos em investigação, mas é procedimento normal especialmente pelo estado de alerta estabelecido. Na eventualidade de nova ocorrência, não haverá relação com o foco do dia 15 de maio. Será outro evento.
Nessa data (04/06), o Brasil estava livre do vírus em granjas comerciais, aguardando o prazo até o dia 18 de junho para se declarar livre da gripe aviária, caso nenhum novo foco seja identificado em estabelecimentos comerciais. Diversos países já negociam a retomada de importações da carne brasileira de aves.
Além de cumprir todas as ações, agências competentes e o setor privado, em conjunto, foram extremamente hábeis em conter desinformações, sensacionalismo, especulações e garantir um exemplar nível de transparência durante todo o processo. Com isso, uma grande ameaça ao setor poderá ainda render maior reconhecimento pela habilidade em lidar com um problema que atingiu o mundo todo.
A pergunta é se a bovinocultura terá a mesma capacidade de executar os protocolos. Mas antes de discutir, é importante ressaltar que não se trata de um questionamento à competência do setor, mas sim sobre as diferenças entre ambas as situações.
É fato que as aves silvestres infectadas voam e pousam em qualquer lugar, facilitando o fluxo do vírus pelo território. Por outro lado, o sistema de produção de aves, tanto carne como ovos, ocorre em ambiente fechado e controlado. As exceções são os projetos de produção que preconizam áreas livres e mais generosas às aves, embora representem muito pouco em relação ao total.
Outro ponto que favorece a avicultura é a ausência de relacionamento entre as produções consideradas de subsistência e as produções comerciais. Não há fluxo de ovos ou pintainhos de sistemas mais precários para a produção comercial.
Na bovinocultura, o vírus só pode circular por terra, sendo que as maiores ameaças ocorrem na extensa área de fronteira terrestre com outros países ou através da fauna, onde não há certeza sobre a circulação de vírus que possam reintroduzir a doença em um rebanho não vacinado.
Outro problema é a constante interação entre os rebanhos comerciais e aqueles que poderiam ser considerados como de subsistência. Bovinos são animais de elevado valor comercial, o que torna frequente o fluxo de lotes oriundos de sistemas precários para os modelos mais modernos de produção.
A dificuldade de controlar esse fluxo, além do risco de alterar as regras vigentes, tem constantemente colocado a agenda ambiental em conflito com a gestão sanitária, no que diz respeito às Guias de Trânsito Animal, documento que possibilita identificar e controlar qualquer evento sanitário que ocorra no rebanho.
Embora não seja foco da discussão, é importante lembrar um ponto relevante em debate. Se as propostas de controle dos fornecedores indiretos na pecuária de corte forem debatidas com seriedade técnica e respeito ao conhecimento acumulado pelo setor produtivo, as soluções serão estabelecidas com maior efetividade. Isso porque o maior interessado em garantir a transparência na origem dos animais é o próprio pecuarista, mesmo que não saiba disso.
Esse debate é um dos grandes exemplos de como a soberba em discutir um assunto sem escutar os que trabalham diretamente, e com experiência no tema, pode atrasar a implementação de uma solução tão importante.
Estimativas da Athenagro, com base em 12 anos de pesquisa a campo com o Rally da Pecuária e dados censitários, apontam algo entre 30 e 40 milhões de cabeças de bovinos em sistemas próximos da subsistência, mantidos em cerca de 60 milhões de hectares distribuídos em praticamente todos os municípios do Brasil. É essa realidade que levanta as preocupações, não a competência do setor.
A dificuldade de mobilização na bovinocultura é muito mais desafiadora do que na avicultura e na suinocultura, mesmo considerando a preocupante infestação de “javaporcos” pelo país, no caso dos suínos.
O assunto sobre o preparo do Brasil para conter um eventual foco foi discutido aqui nessa coluna, em janeiro, no artigo “O fantasma que ainda assombra a pecuária brasileira”. O texto discorreu sobre as conclusões de um estudo conduzido em 2019 pela equipe da Athenagro. Uma das conclusões do estudo é que o cronograma foi implementado sem que que todas as ações previstas no próprio plano tivessem sido integralmente cumpridas.
É importante reforçar que o objetivo de colocar os assuntos em discussão não é denunciar ou “ser contra” a conquista do status livre de aftosa sem vacinação. Tampouco era essa a intenção com o texto escrito e publicado em janeiro.
Trazer esses pontos para discussão é de extrema relevância para que a bovinocultura não faça o inverso do que fez a avicultura, transformando uma oportunidade, diante de uma conquista, em ameaça.
O atual status, cujo reconhecimento foi celebrado no último 29 de maio, foi conquistado com muito esforço e competência do setor.
Ainda assim, as críticas e os pontos de preocupação levantados a partir de vasto estudo e consulta realizada durante dois anos entrevistando produtores e técnicos de campo, devem ser consideradas para corrigir as eventuais falhas que possam deixar o setor vulnerável.
Diante de um eventual foco de aftosa, o futuro da pecuária brasileira será determinado pela capacidade de reação do setor privado e dos órgãos competentes.
Recomendamos fortemente que as empresas e instituições que interagem com produtores coloquem a discussão sobre os protocolos previstos no PNEFA como pauta em suas políticas de comunicação. É o preparo que fará a diferença diante de uma potencial catástrofe sanitário-mercadológica.
O reconhecimento do país como livre de aftosa sem vacinação é sim uma conquista que deve ser celebrada. Mesmo para aqueles que criticam o cronograma de implementação, como eu, é necessário reconhecer os avanços.
A decisão foi tomada e, independentemente das opiniões sobre riscos, prazos e ações, cabe a todos os profissionais da pecuária garantirem o êxito do novo status.
Para aqueles que ainda têm dúvidas, vale lembrar o exemplo de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá. Questionado sobre por que defendia as decisões de Dom Pedro II perante interlocutores internacionais, apesar de suas críticas conhecidas, ele respondeu que as divergências devem ser resolvidas internamente. Para o exterior, é essencial demonstrar harmonia e coesão.
Nesse caso, é preciso mostrar apoio e garantir a execução das ações que permitam a manutenção do status livre sem vacinação. Só não se deve abaixar a guarda.
Maurício Palma Nogueira é engenheiro agrônomo, diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária