A notícia do surto de febre aftosa na Alemanha, no início de janeiro, gerou apreensão entre os brasileiros ligados à pecuária. E não é para menos. O ecossistema brasileiro é muito mais propenso à reintrodução do vírus do que a realidade alemã, que não registrava um caso há 39 anos.

O surto identificado em um rebanho de búfalos foi contido, embora os alemães continuem preocupados com o risco de disseminação para outras espécies, especialmente suínos.

O Brasil, depois de anos de esforços envolvendo o setor público e privado, atingiu o status de país livre de febre aftosa sem vacinação, fato comemorado no início de maio de 2024. A confirmação pela Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA) está prevista para maio de 2025, após 12 meses da retirada da vacina e, claro, sem a ocorrência de casos. Por ora, o status é auto declaratório.

O processo de combate à doença foi muito bem conduzido ao longo dos anos, alicerçado no Programa Nacional de Erradicação e Prevenção da Febre Aftosa – PNEFA, elaborado e coordenado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

No entanto, à medida que o fim das vacinações se aproximava, houve uma mobilização de parte das lideranças do setor produtivo, que se colocou contrária à retirada da vacinação.

Em 2019, a pedido da Sociedade Rural de Maringá e Sociedade Rural do Paraná, a Athenagro analisou o cronograma do PNEFA e os possíveis impactos e benefícios com a retirada da vacinação. Na ocasião, os contratantes autorizaram a divulgação do estudo, tornando-o disponível a qualquer interessado (clique aqui para acessar).

Nas conclusões do estudo, deixamos claro que a qualidade e o nível de detalhamento do programa eram incontestáveis, embora nossa posição fosse contrária à sua implementação.

Também foi ressaltado que essa posição não era motivada por uma visão retrógrada ou contrária ao avanço no status sanitário no Brasil, mas sim pela necessidade de adaptação à realidade brasileira. E grande parte do embasamento das conclusões está contida no próprio documento do programa (PNEFA), ora como relato histórico do combate à febre aftosa, ora como pontos de atenção durante a execução do programa.

Um dos pontos questionados no estudo foi a tese que a retirada da vacinação abriria mercados mais exigentes para o Brasil.

Analisando as proporções exportadas de carne suína, os preços médios e os mercados acessados, foi possível demonstrar que o Paraná foi mais eficiente em atingir os mercados, supostamente mais restritivos em relação à vacinação, do que o estado de Santa Catarina. Na época, o Paraná seguia vacinando, enquanto Santa Catarina comemorava 12 anos como região livre de aftosa sem vacinação.

E as exportações de carne bovina brasileira vêm confirmando o que era esperado. Entre 2018 e 2024, as exportações aumentaram 75%, atingindo 2,87 milhões de toneladas métricas no último ano.

Os Estados Unidos, considerados restritivos em relação ao uso da vacinação contra febre aftosa, aumentaram as importações de carne brasileira em 613% no período, passando das 32,2 mil toneladas métricas em 2018 para 229,6 mil toneladas métricas em 2024.

A carne brasileira tem acessado e/ou ampliado novos mercados, o que pode ser comprovado pela participação da China nas exportações. Em 2024, a China foi o país que mais aumentou a compra de carne exportada pelo Brasil. Foram 164,6 mil toneladas a mais em relação ao total de 2023.

No entanto, as compras dos demais mercados somados cresceram 456,4 mil toneladas, fazendo com que a participação da China caísse de 52,2% para 46% do total.

Em 2022, em sua participação mais alta, a China representou 54,7% do destino das exportações brasileiras de carne bovina.

O aumento das exportações é explicado pela soma de competências que começa na produção das fazendas e vai até o trabalho coordenado entre a iniciativa privada e governo. Essa coordenação profissionalizou as vendas da carne brasileira.

Para 2025, a expectativa da Abiec é que o setor aumente as exportações em até 12%, garantindo os mercados conquistados e acessando novos destinos.

Portanto, não é a retirada da vacina que abrirá mercados. O sucesso é mérito dos esforços e dos ganhos de produtividade e qualidade na cadeia de produção.

Ainda no embasamento do estudo sobre os impactos do cronograma da retirada da vacinação, foram usados dados de duas edições do Rally da Pecuária, nas quais produtores e técnicos de campo foram questionados sobre o assunto.

Apenas 6,9% dos produtores acreditavam que o Brasil estaria preparado para retirar a vacina. Os que discordaram em retirar a vacina, a qualquer momento, somaram 20% do total.

Todos os demais sugeriram prazos maiores e informações mais detalhadas sobre a viabilidade de garantir o país livre de aftosa sem vacinação. Uma das frases mais mencionadas, entre os produtores, era que “a vacina é o seguro mais barato que conhecem”.

A maioria dos produtores e técnicos era claramente contrária à retirada da vacinação dentro do prazo executado. A mencionada economia de R$500 milhões ao ano com a retirada da vacina não representa nem 0,25% do orçamento anual da pecuária brasileira, somando corte e leite. Risco grande para pouco benefício.

A pesquisa também identificou que 75% dos produtores dependiam, em algum grau, das campanhas de vacinação para administrar os demais protocolos sanitários. E, dentro da amostra pesquisada, a porcentagem dos que tratam os animais apenas durante as campanhas aumenta entre os menores pecuaristas.

A partir dessa constatação, o estudo apontava que a retirada da vacinação poderia impactar, negativamente, a qualidade sanitária do rebanho por redução das aplicações de outros produtos de saúde animal. E parece que isso também está sendo confirmado.

Representantes da indústria de saúde animal relataram a queda de 20% na venda de endectocidas (medicamentos antiparasitários) em 2024, primeiro ano sem campanha de vacinação do rebanho.

E ainda há outra questão relevante, identificada no estudo. O sucesso do plano estratégico do PNEFA depende da mobilização de todos os envolvidos no caso de algum foco da doença.

De acordo com o último censo agropecuário divulgado pelo IBGE, os estabelecimentos com menos de 50 cabeças somam 79% do total e mantém apenas 16,5% do rebanho. Os 83,5% restantes do rebanho estão distribuídos em 20% dos estabelecimentos com mais de 50 cabeças.

Para conter um eventual foco, como ocorrido agora na Alemanha, seria preciso contar com a conscientização dos produtores e técnicos para garantir agilidade no diagnóstico, rápida comunicação e velocidade na resposta dos agentes de estado.

Em 2019, parecia pouco provável que, em cinco anos, a mobilização necessária elevaria todos a essa condição desejada. Em 2025, essa capacidade de mobilização ainda não se mostra presente.

O surgimento de um foco no Brasil pode encontrar o setor totalmente despreparado para responder em tempo hábil. E pior: a indústria produtora de vacinas contra aftosa, que chegou a ofertar mais de 300 milhões de doses por ano, está praticamente desmontada.

E o risco no Brasil é considerável. De acordo com a Embrapa Territorial, o Brasil possui 66,3% do território coberto com vegetação nativa original, ainda preservada. Só nas fazendas brasileiras (ou mundo rural, usando a terminologia da Embrapa), a área preservada soma quase 283 milhões de hectares ou 33,2% do país.

A área de florestas nas fazendas é até mesmo maior do que a área dedicada à produção, que totaliza 242 milhões de hectares, já descontando os pastos em estágio avançado de degradação e, portanto, sem condições de manter rebanho.

Essa flora riquíssima sustenta uma fauna igualmente rica. E nela existem nove grupos de espécies, presentes em todo o território, suscetíveis e classificadas como de importância epidemiológica para febre aftosa. Constam nessa lista as capivaras, javalis, cervos, antas, gambás, tatu-galinhas e todas as espécies de porcos do mato.

Porcos do mato e “javaporcos” são cada vez mais presentes na rotina das propriedades e já representam um problema sério até mesmo para a segurança nas fazendas.

Subestimar os riscos de um evento no Brasil é contar com a sorte.

E os impactos podem atingir proporções maiores do que aparentam. De acordo com o monitoramento do PIB da Pecuária de Corte feito pela Athenagro para o Beef Report anual da Abiec/Apex, para cada R$1 de faturamento com o abate de bovinos, outros R$5,00 a R$6,00 são movimentados nos demais elos da cadeia produtiva.

É essencial que o país use o exemplo da Alemanha para redobrar a atenção e se preparar de acordo com o que foi desenhado no próprio plano de erradicação da febre aftosa.

Cumprir o cronograma sem garantir que todas as ações previstas tenham sido realizadas não é, exatamente, a implementação adequada do plano.

Maurício Palma Nogueira é engenheiro agrônomo, diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária