No dia 3 de maio de 2024, o terceiro de isolamento na casa de parentes, Ivone Riboldi Bellé caminhou seis quilômetros e algumas horas a pé. “Quando cheguei na propriedade para tratar os bichinhos, meu parreiral praticamente tinha ido inteiro para o rio”.
Do único hectare que a produtora de Bento Gonçalves (RS) tinha para o cultivo de uvas, 70% tinham desaparecido com a tragédia que atingiu o Rio Grande do Sul. O restante precisou ser erradicado, ou porque o trato se tornara impossível ou por não compensar financeiramente.
Naquele mesmo dia do início de maio, o também vitivinicultor Michel Postal deixou sua propriedade para procurar parentes. Por causa do dilúvio, perdera o contato com seu avô e outros familiares.
No caminho, encontrou uma de suas parentes distantes de sangue, mas vizinha de lavouras. “Eu e meu irmão encontramos a Ivone ali mesmo na estrada”, contou o produtor, apontando para uma via que passa em frente a sua propriedade de 25 hectares no município gaúcho, 14 hectares deles cultivados com uva.
“E eu ainda ajudei a socorrer a sogra dela no meio da tragédia”, completou Postal. Ele quase não teve danos nas suas lavouras, mas foi um dos últimos a ver a sogra de Ivone com vida. Com 100 anos à época, ela não resistiu e faleceu durante a operação de socorro.
A três quilômetros da propriedade de Postal, Maicon Roman não pensou duas vezes. Após a primeira estiagem em dois dias de dilúvio, o produtor pegou seu quadriciclo, utilizado para os afazeres na lavoura, e partiu para a ajuda aos vizinhos.
“Eu não fui atingido, mas teve muito desmoronamento de terra por aqui e ajudei no socorro dos vizinhos e amigos”, contou Roman. Sua propriedade tem 13 hectares e, assim como a de Postal, é considerada média e grande entre as de 600 famílias e 1.100 produtores ligados à Cooperativa Vinícola Aurora.
Roman é um dos poucos produtores locais com colheita mecânica de uva. Novidade até mesmo na região centenária no cultivo da fruta, a prática está presente em apenas 3% dos parreirais.
Os motivos não são nem os R$ 200 mil investidos na colheitadeira, mas a necessidade de reconstrução e conversão total dos parreirais para adaptá-los à mecanização. A condução dos galhos nos parreirais no método tradicional precisa ser totalmente refeita, o que leva tempo.
Na colheita mecânica o período entre a colheita e a entrega para o processamento não pode passar de 8 horas, pois a fruta pode começar a fermentação - na colheita manual pode demorar um dia e até mais. Mas Roman garante que o investimento compensou.
A mão-de-obra escassa, um dos maiores problemas de algumas lavouras, é ainda mais crítico nas vitivinicultura. Como a colheita ocorre em um período de, no máximo, 30 dias, é cada vez mais difícil encontrar trabalhadores para serem contratados e registrados para curtos períodos.
Cada máquina como a de Roman é capaz de colher 2 mil quilos por hora, ou 16 mil quilos de uva por dia. Cada trabalhador rural colhe, em média, 1 mil quilos por hora. Ou seja, cada máquina substitui 16 trabalhadores.
Assim como Roman, Postal também precisou se readaptar e também foi beneficiado. Com a pulverização dos parreirais com tratores, o produtor sofria com crises alérgicas aos defensivos mesmo com o uso de Equipamentos de Proteção Individuais (EPIs) nas aplicações.
A opção, segundo ele, era comprar um trator com cabine para mitigar a ação dos produtos químicos. Mas escolheu investir os mesmos R$ 200 mil que o vizinho gastou na colheitadeira em um drone daqueles grandes.
Não poderia ter feito melhor escolha, segundo ele. O tempo na aplicação diminuiu consideravelmente e os sobrevoos não dependem de condições de solo, que impedem o uso de veículos em épocas de chuvas como aquelas posteriores ao desastre de 2024. A alergia de Roman agradece.
“Eu me desesperei. E vou te contar que a vida me deu bastante rasteiras”. Foi como Ivone Bellé resumiu seus primeiros 15 dias após perder sua lavoura desmoronada e também sua sogra para o dilúvio.
Há mais de 20 anos tocando a pequena propriedade rural, mais de uma década sozinha após a doença e morte do marido, Ivone ligou para Jonas Panisson, engenheiro agrônomo da Cooperativa Vinícola Aurora e cravou: “Vou reconstruir tudo”, disse.
Na última quinta-feira, 15 de maio, as últimas máquinas deixaram sua propriedade. Na reconstrução, o hectare perdido para as chuvas se transformou em 2,5 hectares. A variedade Isabel, própria para o suco, será substituída pela variedade precoce da mesma uva.
“Toda propriedade foi reestruturada, com nivelamentos e um novo plantio que deve ser feito entre agosto e setembro”, explicou Panisson.
Os mesmos R$ 200 mil que os vizinhos investiram em tecnologia serão gastos por Ivone para redesenhar cada hectare da propriedade de Ivone. O custo total deve ficar em R$ 500 mil.
Os recursos virão de financiamento público, auxílios liberados pelo governo e suporte técnico da Aurora e de programas do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) e do Serviço Brasileiro de Apoio à Pequena e Média Empresa (Sebrae).
Entre a tragédia de maio de 2024 e o início da produção das novas lavouras, serão três ou quatro anos sem entregar sua uva para a cooperativa. Até 2027 ou 2028, Ivone sobreviverá com sua aposentadoria, a pensão mensal deixada pelo marido e o trabalho na lavoura.
Sim, ela segue na lavoura. Outra fonte de recursos vem, segundo ela, do cultivo e colheita de um parreiral que arrendou, juntamente com um parceiro, ou meeiro, na região. “Eu nasci nesse meio e trabalho há mais de 20 anos. É o que sei fazer”.
Mas, quando a produção recomeçar, Ivone espera compensar o volume não entregue. Os 70 mil a 80 mil quilos entregues anualmente à cooperativa vão superar 100 mil quilos com a retomada na produção.
Segundo a Aurora, Ivone faz parte de uma pequena parte dos cooperados que tiveram perdas em suas lavouras há pouco mais de um ano.
Das 600 famílias cooperadas, 86 sofreram algum tipo de danos. Foram 71 hectares perdidos dos 3 mil hectares cultivados com uvas pelos cooperados em 11 municípios do Rio Grande do Sul. Apenas um decidiu não seguir com o cultivo.
Ivone Bellé, Michael Postal e Maicon Roman foram três dos milhões de personagens do desastre do Rio Grande do Sul.
Vizinhos, se cruzaram naqueles dias marcados pelo socorro e solidariedade como se encontraram nesta sexta-feira, 16 de maio, para contar suas histórias.
Histórias que, de uma forma ou de outra, estão ligadas à reconstrução nos vinhedos da região da Serra Gaúcha, uma das maiores produtoras de uva e vinho do País.
Resumo
- Um ano após a destruição pelas chuvas, vinicultores da regiao de Bento Gonçalves ainda se recuperam de suas perdas
- Com recursos do estado e auxílio da Coopertaiva Vinícola Aurora, eles investem na renovação dos parreirais e em tecnologia
- Muitos só voltarão a entregar uvas à coopertiva em 2027 ou 2028