No dia 5 de outubro, um domingo quente e seco em Porto Nacional, no coração do Tocantins, reuniu mais de duzentas pessoas entre produtores, técnicos e autoridades.

No recinto Padre Cícero, o martelo soou 106 vezes. E com ele, o primeiro Leilão de Touros da Nelore Enco, promovido pela Fazenda Encontro da Natureza, movimentou cerca de R$ 1,5 milhão.

A média de preços e o público expressivo coroaram não apenas um evento, mas a consolidação de uma trajetória de quase quatro décadas do empresário do setor de transportes e produtor Celso Guelfi no mundo da genética pecuarista.

“Eu faço hoje em torno de 20 grandes eventos por ano. São feiras de turismo onde vão 3 mil clientes, e as faço tranquilamente. Para o leilão, estou igual adolescente quando vai encontrar uma primeira namorada”, brinca o produtor, que conversou com o AgFeed dias antes do evento.

Os animais leiloados eram parte do plantel da fazenda localizada em Silvanópolis, a 90 quilômetros de Palmas, capital do Tocantins, reconhecida como uma das operações mais completas da pecuária do Estado.

O nome da propriedade mostra uma inspiração na música "Encantos da Natureza", de Tião Carreiro, e que reflete o estilo de gestão do empresário: produtivo e em harmonia com o bioma e com a terra que o acolheu há quase 40 anos.

O projeto começou no final dos anos 1980, com 40 bezerras e 41 alqueires, e hoje soma 35 mil hectares, espalhados por 11 núcleos produtivos que se conectam como peças de uma mesma engrenagem.

O rebanho é de ciclo completo: cria, recria e engorda e combina lavoura integrada, confinamento e uma rotina de dados. “No auge do ciclo completo chegamos a 23 mil cabeças, com 10 mil matrizes”, conta Guelfi.

O abate é precoce e mostra uma produtividade à frente da média nacional: animais abatidos com 20 meses e rendimento médio de 58% de carcaça, acima do patamar médio nacional de 50%, segundo dados da Scot Consultoria. A empresa fornece os animais para frigoríficos locais.

Guelfi disse ao longo da conversa que produtividade, antes de ser uma meta, é uma “consequência de método”. Para driblar um regime de chuvas irregular e escasso, além de um custo logístico maior do que no Centro-Sul, a fazenda segue um mantra que envolve reaproveitamento, energias limpas e integração.

“Não existe milagre na pecuária. O que existe é planejamento e paciência”, afirma Guelfi. A fazenda ainda conta com uma área de confinamento para os bois, que, segundo ele, nasceu não como fim, mas como ferramenta para otimizar o ciclo e garantir abate regular mesmo na época de seca.

Essa performance é sustentada por uma engenharia de manejo e genética. Guelfi é hoje um dos principais criadores de Nelore PO (puro de origem) do Tocantins.

O foco começou com o gado de cria e evoluiu, com 35 anos de seleção, para um modelo que combina genética nacional com tecnologias de reprodução. A técnica de Guelfi combina vacas doadoras de linhagens premiadas, inseminação artificial, fertilização in vitro e avaliação genômica.

“Antes, eu precisava de 500 vacas PO para gerar 400 bezerros. Hoje, com as doadoras e receptoras, alcanço o mesmo resultado com muito menos. Tenho 500 vacas Angus só para recepção de embriões”, conta.

Esse avanço técnico foi uma construção lenta, bancada com o próprio bolso e o olhar de quem passou a vida fazendo contas. No início, Guelfi comprava bois de genética em Uberaba e os trazia em caminhões fretados junto a outros criadores, numa espécie de caravana do melhoramento. “O frete comia o lucro, então decidi produzir a genética aqui”, lembra.

A base do plantel veio da antiga Mata Velha, de Jonas Barcellos, um dos criadores de elite de maior reputação do País, e serviu de ponto de partida para o programa de seleção que mantém há 35 anos. O que antes exigia longas viagens e rateio de transporte entre fazendeiros hoje é rotina dentro da própria fazenda.

“No começo, comprar um boi PO era uma festa. Hoje, é o nosso dia a dia”, resume o produtor, que há 12 anos passou a comercializar genética própria no Tocantins.

A fazenda também virou vitrine de integração lavoura-pecuária. São quatro mil hectares de cultivo de grãos, entre soja e milho, sendo que 20% a 25% da área recebe plantio de safrinha com braquiária.

“Em um quarto da fazenda faço três safras: uma de soja, uma de milho com capim e ainda faço de três a quatro meses de pastejo. Nas outras, faço duas: soja e boi”, explica.

Mesmo em um clima de 1,2 mil milímetros anuais de chuva e sete meses de seca, o sistema se mantém produtivo graças à rotação e ao controle de pastagens.

Nada é desperdiçado. O confinamento gera dejetos que se transformam em biofertilizantes com cem pontos de fósforo por tonelada. O processo é todo feito na fazenda, que se tornou autossuficiente nesse nutriente e ainda gera excedente.

“O melhor negócio da fazenda foi o negócio de merda”, brinca. “Cada boi do confinamento planta dez hectares de soja”, estimou.

O material passa por compostagem, vira bioativo e volta à lavoura, reduzindo em 46% o custo de compra de fósforo e devolvendo matéria orgânica ao solo, em seus cálculos.

A verticalização da operação ainda se estende para uma fábrica de ração própria, com capacidade para 108 toneladas por dia, que abastece tanto a parte confinada quanto fazendas vizinhas, além de um armazém com secador de grãos.

A energia da fazenda ainda conta com painéis solares que sustentam as estruturas de todos os núcleos produtivos. O rotacionamento de pastagens, com 7 a 8 cabeças por hectare, multiplica a lotação por área e mantém a fazenda com três anos de desmatamento zero.

O resultado é um ciclo de produtividade crescente e de menor impacto ambiental. “Genética, nutrição e manejo formam o tripé do sucesso. Um sem o outro não anda”, resume.

A Fazenda Encontro da Natureza também foi reconhecida como ponto de referência técnica. Por dois anos consecutivos, foi escolhida pela ABCZ e pela Associação dos Criadores de Nelore do Tocantins (ACNT) como sede das provas de ganho de peso, avaliações que antes exigiam o envio dos animais a Uberaba.

Da verdura ao transporte, do transporte ao agro

O agro não foi o primeiro setor que Celso Guelfi se aventurou, mas sempre fez parte de sua vida de uma forma ou de outra. Neto de produtores rurais, nasceu em uma cidade do interior de São Paulo chamada Tabapuã, próxima de São José do Rio Preto.

O curioso é que o nome do município de origem também é a denominação de uma raça brasileira de bovinos, fruto de um cruzamento entre o gado mocho nacional e animais de origem indiana.

Nas duas primeiras décadas de vida, Guelfi foi vendedor de rua. Primeiro de gás, e depois, foi “verdureiro”.

“Aproveitei a clientela do gás e vendia alguns legumes e verduras que plantava, como também comprava em Ceasas do interior outros tipos que não produzia. Fiz isso até meus 28 anos de idade e me formei em duas faculdades vendendo verdura”, conta. Os principais produtos eram tomate e pepino.

Nessa altura da vida, formado em Administração de Empresas e Ciências Econômicas, chegou a dar aula em faculdades locais, até que uma chuva de granizo danificou sua horta, encerrando a primeira jornada de Guelfi no agro.

Foi nessa época que recebeu o convite para se mudar para o Rio de Janeiro e se tornar vendedor em uma transportadora de origem australiana. “Conhecia um pouco de logística, então a adaptação foi fácil. Em poucos meses fui para supervisão e, em alguns anos, para gerência e direção”, diz.

Depois, passou alguns anos trabalhando na Itapemirim, onde conta que teve uma “carreira próspera”. “Eu ganhava razoavelmente bem, e um amigo - que acabou virando meu sogro -, prestava serviço para um pessoal do Pará, pegando gado debandado no estado e levando para uma fazenda em Goiás. Curioso, me interessei pelo setor e vi oportunidade”, conta.

Relembrando a experiência do avô com a pequena propriedade no interior paulista, que não foi levada em frente pelo seu pai, reacendeu a chama de “mexer com gado”. Começou, então, a investir em bois e em terras.

Ele conta que, na época, comprava-se “muito com pouco dinheiro”. “Um alqueire de terra lá no norte de Goiás (hoje Tocantins), era equivalente a 4,8 hectares. Pelo preço, vendia-se um alqueire de terra em São Paulo e comprava 15 aqui, só que o alqueire paulista era equivalente a 2,2 hectares, então virava 30 alqueires”, diz.

“Era uma fase boa para quem veio e teve paciência. Muitos vieram e não tiveram essa paciência”.

Celso Guelfi conta que chegou a vender duas linhas de telefone que possuía no Sudeste e comprou 150 alqueires de terra no Tocantins (equivalente a 720 hectares), que até então ainda era considerado o norte goiano.

Ao comprar as primeiras terras no início dos anos 1980, passou a investir parte de sua renda para se transformar também em produtor rural, levando gado de Uberaba, terra referência na criação e melhoramento das raças zebuínas.

Ao decorrer da década, em meio a uma carreira já consolidada como executivo do setor de transportes, resolveu se arriscar e empreender.

Quando estava na Itapemirim, onde cuidava de uma operação que misturava transporte de cargas e de pessoas, foi até o Peru para acompanhar um lançamento de um novo ônibus da Mercedes que conseguia subir serras íngremes. Foi ali que descobriu um novo mercado dentro do mundo dos transportes: o turismo.

Na própria Itapemirim, desenvolveu um projeto social que levava estudantes para conhecer pontos turísticos do Rio e, com essa expertise, foi convidado por uma empresa alemã de seguros de viagem a abrir um braço no Brasil.

Foi quase em 1990 que abandonou um salário de US$ 15 mil (algo em torno de R$ 75 mil hoje) para criar a GTA (Global Travel Assistance). “O começo foi difícil porque a empresa tinha eu, o filho da minha mãe, o filho do meu pai e um cara parecido comigo, que eram todos eu mesmo, eu sozinho”, brinca.

Na época, passava o dia na rua vendendo pacotes de seguro de viagem como seguro para malas, assistência médica e programas de reembolsos.

“Eu checava os recebimentos no final do dia e emitia o voucher para a viagem dos clientes. A cada 10 dias eu ligava, com sotaque argentino, para realizar a cobrança sem que soubessem que eu era o único funcionário da empresa”, conta Guelfi.

Hoje a empresa é uma das maiores companhias do setor de seguro de viagens do País, com 1,5 mil funcionários, 45 escritórios espalhados pelo mundo, 27 no Brasil e uma média superior aos 70 mil passageiros segurados por dia.

Guelfi continua como presidente atuante, assim como na Fazenda Encontro da Natureza, e por isso se divide entre viagens pelo Brasil por conta da GTA e também ao Tocantins para tocar os negócios rurais. “É difícil dormir 3 noites seguidas na mesma cama”, conta.

Em comum, ele vê nos dois negócios o mesmo tripé: eficiência, pessoas e paciência de longo prazo. “Enquanto muitos querem resultado no mês seguinte, eu aprendi que o agro é um jogo de décadas”, comenta.

O produtor é categórico e apaixonado ao falar de Tocantins e chegou a dizer que “não conhece lugar melhor para cria”. “Clima favorável, topografia boa e água na medida certa. Quem tem paciência e faz direito, prospera”.

O leilão, diz ele, foi apenas o começo. “Entendendo que o leilão vai ser sucesso, e a qualidade dos touros está muito boa. Tenho uma região que só eu tenho boi PO e isso abre caminho para crescer ainda mais”.

Resumo

  • Primeiro Leilão de Touros da Nelore Enco, de Celso Guelfi, movimentou R$ 1,5 milhão e marcou a consolidação de quase 40 anos de trabalho em genética bovina
  • Fazenda Encontro da Natureza tem 35 mil hectares e rebanho de 23 mil cabeças, com ciclo completo, lavoura integrada, confinamento e fábrica de ração
  • Dono também da GTA, gigante do setor de seguros de viagem, o empresário agora mira expandir a produção de touros PO no Tocantins