Na sucessão de capítulos sobre a crise financeira do Grupo Safras, conglomerado agroindustrial do Mato Grosso afundado em dívidas próximas dos R$ 2 bilhões, novos personagens e guinadas no roteiro continuam a surgir com uma frequência muitas vezes até difícil de acompanhar.

A nova protagonista do caso é a desembargadora Marilsen Andrade Addario, da Segunda Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Mato Grosso. Uma decisão cautelar tomada por ela há uma semana colocou novamente em suspense credores, sócios e funcionários do grupo em torno de quem será o responsável por administrá-lo e em que condições.

A magistrada deferiu, no dia 4 de setembro passado, um pedido de embargo contra outra decisão do próprio TJ relacionada ao Safras: a que aceitava o pedido de recuperação judicial do Grupo Randon, que tem como sócios a ex-mulher e os filhos de Dilceu Rossato, fundador do Safras ao lado de Pedro de Moraes Filho.

Na decisão, além de determinar suspensa essa decisão, ela considerou que os dados e documentos apresentados pelos requerentes do embargo – o advogado Julio da Silva Ribeiro e a empresa Bertuol Indústria de Fertilizantes, credora do Safras – indicavam um conjunto de ações que poderiam configurar fraudes graves no grupo.

E, por isso, entendeu ser necessário o afastamento dos sócios e administradores das atividades do Safras, pelo menos durante a apuração desses fatos. E determinou a intervenção na empresa, com a nomeação de um administrador judicial.

“Considerando a gravidade das alegações, não há dúvida de que estão presentes os requisitos para a concessão da tutela cautelar requerida pelo agravante e pela terceira interessada”, decretou a desembargadora.

“O afastamento dos administradores e sócios controladores das sociedades do Grupo Safras, bem como dos produtores rurais empresários individuais, encontra fundamento no art. 64 da Lei nº 11.101/2005, que autoriza tal medida sempre que houver fundados indícios de prática de atos fraudulentos ou de gestão temerária”, prosseguiu.

“Nesse contexto, a nomeação de um interventor judicial é medida necessária para assumir a administração integral das empresas recuperandas e das atividades agrícolas desenvolvidas pelos produtores rurais, a fim de apurar a real situação patrimonial e financeira, sustar operações simuladas, gerir receitas e despesas correntes, e resguardar ativos estratégicos em favor do juízo universal”.

Marilsen Addario chegou a indicar um interventor, o economista Jorge Luiz de Campos, de São Paulo. Mas há dois dias ele informou, dentro do processo, que não aceitaria a missão. Ao AgFeed, Campos afirmou que recusou em função de compromissos familiares.

Com isso, era esperada uma nova nomeação, enquanto se configura um limbo decisório na gestão da empresa, que há cinco meses busca proteção judicial para tentar renegocias seu passivo bilionário.

O Safras chegou a ter seu pedido de recuperação judicial acatado pela Vara Cível de Sinop, no Mato Grosso, em abril. Mas a decisão foi depois derrubada pelo TJ-MT e um recurso ao STJ também foi frustrado.

No início de julho, Rossato e Moraes sofreram novo revés, quando fundo FIP AGRI Brazil, estruturado pela empresa AM Agro, de São Paulo, anunciou ter assumido o controle do grupo após adquirir os direitos sobre uma opção de compra de 60% do Safras dos fundos axioma e Alcateia, conforme previsto em um contrato assinado em agosto de 2024.

Poucos dias depois, o AGRI Brazil pediu o encerramento do processo de RJ e disse ter retomado as operações da empresa, afastando os dois fundadores da gestão. Mas a confusão jurídica não deixava totalmente transparente quem estaria no comando e de que forma andariam as negociações com os credores em torno da dívida de mais de R$ 1,7 bilhão.

A desembargadora Marilsen Addario também não especifica quem seriam os gestores afastados – sua peça sequer cita o fundo AGRI ou a AM Agro, embora se refira à administração do Safras.

A explicação para isso pode ser encontrada em uma nota enviada ao AgFeed pela assessoria de imprensa do AGRI nesta quinta-feira. Segundo o texto, “o afastamento determinado pela 2ª Câmara de Direito Privado do TJMT atinge exclusivamente os antigos administradores do Grupo Safras, os fundadores Dilceu Rossato e Pedro de Moraes Filho, e não a atual gestão, conduzida pelo fundo AGRI Brazil”.

“Importante destacar, portanto, que a 2ª Câmara não tratou e não tinha conhecimento sobre o fundo AGRI Brazil”, prossegue.

A disputa entre o fundo e os sócios fundadores do Safra, que contestam a mudança de controle, tem como foro a cidade de São Paulo, e não o Mato Grosso. Nesse terreno, de acordo com o comunicado, “a 2ª Vara Empresarial de São Paulo também indeferiu liminar pedida pelos ex-controladores, reconhecendo que não havia fundamento jurídico para suspender a transferência de controle, realizada conforme contrato firmado e validado”.

Na seguna-feira, 8 de setembro, eles fizeram nvoa tentativa de retomar o controle, desta vez na justiça do Mato Grosso. Alegam ter sofrido coação econômica do AGRI Brazil e admitem até a manutenção da intervenção judicial no grupo, caso seja indicado novo nome.

Confusão patrimonial

O AGRI Brazil tem buscado na Justiça acesso a documentos da antiga gestão do Safras, buscando mais informações sobre o atual estado da companhia e suas dívidas, o que, de acordo com a nota, “trará transparência e facilitará as negociações com credores, real entendimento do passivo da empresa para a retomada da empresa”.Pedido nesse sentido foi acolhido na Justiça paulista e deve ser estendido aos tribunais do MT.

Esse ponto surge também na decisão da desembargadora Marilsen Addario. Ela baseia sua decisão na necessidade de preservar os ativos até que o cenário fique mais claro e se esclareçam pontos como a própria situação conjugal dos sócios fundadores, questionada por alguns credores desde os primeiros capítulos da novela da RJ.

No processo em questão, os requerentes alegam que o divórcio de Rosseto e sua ex-esposa Catia Regina Randon Rosseto, em agosto do ano passado, foi um forjado como instrumento dentro de um esquema de “gestão patrimonial” para tentar blindar bens das empresas do grupo Safras das execuções de suas dívidas.

Acatados pela desembargadora, os argumentos são respaldados por documentos que se acumulam em mais de 1,4 mil páginas de processo, obtido pelo AgFeed.

Parte deles é reproduzida nas 39 da decisão de Addario, sustentando sua posição. A desembargadora afirma que “os documentos e argumentos (...) agora lançam sérios e fundados indícios a denotar a confusão entre os patrimônios (de Dilceu e Catia Rossato), circunstância que altera substancialmente o rumo da análise das teses trazidas por ambos os grupos Safras e Randon”.

A decisão traz, por exemplo, as declarações de imposto de renda em que Dilceu Rossato e seu sócio Pedro de Moraes Filho informam serem cotistas, com cerca de R$ 25 milhões cada, do fundo Bravano FIDC, “o qual figura como maior credor extraconcursal da recuperação judicial”.

Para a magistrada, além de não demonstrarem a origem desses recursos, os empresários também demonstram se colocar, de forma indevida, tanto na ponta credora quanto na devedora do processo, o que configuraria uma irregularidade.

O fundo Bravano, que moveu ações de execução de dívidas contra o Safras somando mais de R$ 4,6 milhões em junho passado, e foi depois liquidado, em julho, de forma antecipada, tendo repassado os créditos e garantias a seus cotistas.

“Em outras palavras: os bens usados como palco do litígio passam, de forma direta, para as mãos dos cotistas - exatamente os mesmos que controlam, ao mesmo tempo, o credor e a devedora”, escreve a desembargadora.

A decisão também junta documentos que mostram que Rossato e a esposa teriam criado empresas, como a Agro Rossato Ltda., registrada em dezembro de 2023, com o objetivo, segundo a decisão. De servir como “verdadeiro repositório patrimonial da família, recebendo glebas inteiras integralizadas por Dilceu (Fazenda Joia, Fazenda Rio do Mel e diversos lotes “Carol”) além das terras aportadas por Caroline e Luiz Eduardo”, filhos do casal.

Nesse trecho da sua argumentação, a magistrada cita documentos com indícios de que, ao fazer a integralização dos documentos, Dilceu Rossato teria subvalorizado os imóveis, registrando-as por quantias bem abaixo das de referência de mercado.

Apenas uma das fazendas, por exemplo, teria sido integralizada por cerca de R$ 70 mil, mas um laudo de avaliação anexado ao processo indicaria um valor de mercado superior a R$ 86 milhões.

“Essa discrepância gritante entre o valor real dos imóveis e o valor atribuído na integralização do capital social sugere tentativa de ocultação de patrimônio e manipulação da participação societária, em prejuízo de credores, por si só já justificaria (...) uma intervenção excepcional e enérgica do Poder Judiciário”, diz a decisão.

“Esses documentos evidenciam uma confusão patrimonial entre os Grupos Randon e Safras, com garantias cruzadas e pagamento de dívidas de um grupo pelo outro, o que contradiz a alegação de autonomia e independência patrimonial entre eles”.

Com base nisso, a desembargadora determina não apenas o afastamento dos administradores e a intervenção no Safras – medidas que, se confirmada a transmissão do controle para o AGRI Brazil podem se tornar inócuas –, mas também a indisponibilidade cautelar sobre bens e ativos dos dois grupos e a expedição de ofício ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para a suspensão de execuções extraconcursais e à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para suspensão da liquidação antecipada do Bravano FIDC, como forma de “impedir a dispersão dos ativos fiduciariamente gravados”.

Os próximos capítulos devem trazer, certamente, mais elementos à trama. Em conversa com o AgFeed, um advogado de uma das partes envolvidas considerou positiva a decisão do TJ-MT na medida em que ajuda a colocar luz sobre uma série de aspectos nebulosos envolvendo a gestão do Safras. “A caixa de Pandora se abriu”, concluiu.

Resumo

  • TJ-MT determina intervenção no Grupo Safras, afastando sócios após indícios de fraudes e má gestão. Interventor indicado recusa nomeação
  • Decisão traz documentos com indícios claros de confusão patrimonial entre fundadores e empresas ligadas, com ocultação de bens.
  • Dívida do conglomerado supera R$ 1,7 bi e disputa pelo controle segue entre fundadores e fundo AGRI Brazil