O que começou como a curiosidade de um estudante francês pela Amazônia, há mais de uma década, se tornou um negócio que está levando o açaí brasileiro para a Europa.
Com sede na França e produção no Brasil, a foodtech Nossa! nasceu com o propósito de conectar a biodiversidade amazônica a consumidores europeus, com um discurso que mistura sustentabilidade e comércio justo.
Hoje, a “curiosidade” virou uma empresa que planeja faturar 3,5 milhões de euros neste ano, o que seriam R$ 21,5 milhões pela cotação atual.
A Nossa! exporta para países como França, Espanha, Bélgica e Irlanda e, nos próximos meses, se prepara para receber um aporte de R$ 15 milhões do Fundo de Biodiversidade Amazônia (ABF, na sigla em inglês).
O veículo é gerido pela consultoria Impact Earth, busca fomentar negócios sustentáveis na região amazônica e tem como investidores nomes conhecidos do mercado financeiro como o Soros Development Fund, braço da Open Society Foundations, rede de filantropia do bilionário George Soros, Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), entre outros.
Com esses recursos, a Nossa! começa a construir sua primeira fábrica própria, em Barcarena (PA), que deve ficar pronta até o ano que vem.
Esse é mais um capítulo na longa jornada da empresa, que já atravessou vários desafios e dificuldades desde sua criação, há mais de uma década, em 2012, quando o francês Damien Binois, criador da Nossa!, chegou ao Brasil.
Neto de agricultores do interior da França, Binois sempre manteve uma relação próxima com a natureza e era fascinado por florestas desde criança, especialmente pela Amazônia.
Mais tarde, já no ensino superior, cursando administração de empresas na França, Binois fez parte de sua graduação no Brasil, pois a universidade onde estudava tinha um acordo de dupla titulação com a Fundação Getúlio Vargas (FGV).
"A principal razão de ter vindo ao Brasil na primeira vez foi essa fascinação que eu tinha desde criança pela Amazônia", conta Binois, em entrevista ao AgFeed.
No Brasil, ele logo conheceu o açaí em uma viagem a uma praia em São Paulo e resolveu pesquisar mais sobre o fruto.
"Fiz, então, minha dissertação de mestrado sobre a cadeia do açaí. Foi uma das primeiras pesquisas em inglês sobre o assunto. Me apaixonei pela região, pelo povo amazônico, onde encontrei cooperativas, associações e ONGs", conta.
Ao estudar a cadeia do açaí, ele logo entendeu mais detalhes sobre as razões do desmatamento na Amazônia.
“Percebi que o desmatamento na Amazônia tem raízes socioeconômicas. Se a floresta não gera valor para a população local, ela acaba sendo derrubada”, relembra.
O açaí surgiu como resposta a essa equação: um fruto que movimenta a economia amazônica e, ao mesmo tempo, se alinha às tendências globais de alimentação saudável.
Na época, o consumo já crescia no Brasil e nos Estados Unidos, mas era quase inexistente na Europa, oportunidade que o jovem empreendedor decidiu explorar.
Mas o início foi lento e cheio de obstáculos. “No começo, tivemos problemas até com fornecedores que não tinham certificação para vender na França”, conta Binois.
A primeira venda de produtos veio apenas em 2014 e a expansão seguiu em ritmo gradual, até que, em 2018, o faturamento da empresa finalmente bateu 1 milhão de euros.
Só que a pandemia da Covid-19, entre 2020 e 2021, trouxe novas dificuldades para a Nossa!: os restaurantes, principal canal de vendas da empresa naquele momento, fecharam as portas, e o fundador ficou quase dois anos sem viajar ao Brasil. "Foi um período bem difícil para nós", recorda o empresário.
Superadas as dificuldades da pandemia, o próximo grande passo da Nossa! será a inauguração da nova fábrica de Barcarena, que vai consumir cerca de R$ 12 milhões dos R$ 15 milhões que serão aportados pelo ABF.
Hoje, a produção da Nossa! é terceirizada, o que limita a rastreabilidade dos produtos e a padronização da qualidade, dois pontos importantes para as atividades da empresa, segundo Binois.
Os produtos já têm selos de “comércio justo” e de produção de orgânicos, mas a forma de obtenção das matérias-primas ainda é um gargalo para a startup.
"A fábrica vai ser importante porque vamos poder comprar diretamente das nossas cooperativas parceiras e vamos eliminando os atravessadores para trazer mais valor ao produtor e ter mais certeza sobre a origem do fruto que estamos comprando", explica o criador.
Embora a Nossa! priorize a atuação junto a comunidades remotas da Amazônia e pequenos produtores, a figura do atravessador ainda aparece em alguns pontos da cadeia.
Isso porque, sem uma fábrica própria, a empresa depende das indústrias locais, que por sua vez compram o açaí de cooperativas – e, em certos casos, também de intermediários, explica Binois.
A ideia, no futuro, é eliminar de vez os atravessadores que aparecem no meio da rota da produção do açaí. Apesar de a empresa procurar sempre trabalhar com comunidades localizadas em pontos remotos da Amazônia e pequenos produtores, a figura do atravessador ainda pode estar presente no processo produtivo. “Hoje, podem ter até três atravessadores entre o produtor e a fábrica”, estima Binois.
“Por isso, quando a fruta chega à fábrica, é muito difícil saber com certeza de onde vem o fruto, qual preço foi pago pelo produtor, se o sistema agroforestal é sustentável ou não, se houve políticas para verificar que não tem trabalho infantil”, emenda.
Por isso, a Nossa! pretende trabalhar apenas com cooperativas parceiras quando a fábrica estiver instalada. “A gente vai eliminando os atravessadores para trazer mais valor para o produtor e ter uma maior certeza sobre a origem do fruto”, diz.
Além de tirar os atravessadores do jogo, a Nossa! também quer fortalecer um modelo de compra que remunere de forma mais justa os produtores – e, por isso, já possui três funcionários no Brasil para fazer essa integração com as comunidades.
A ideia é que os contratos de compra tenham um prazo de pelo menos três anos de duração e também garanta um preço mínimo a ser cumprido pela Nossa. "Isso vai servir para que o produtor consiga sempre arcar com o custo mínimo de produção, pelo menos", afirma Binois.
Além de garantir um valor mínimo, a ideia da empresa é pagar preços acima do mercado. Para cada lata de açaí, a ideia é pagar R$ 2 a mais do que o preço de mercado. Desse valor, R$ 1 vai para o produtor e o outro R$ 1 vai para um "fundo de desenvolvimento".
"Esse valor vai acumulando nesse "fundo" e, no fim da safra, sentamos com o pessoal da cooperativa”, explicou. A ideia é dizer: "Temos R$ 15 mil nesse fundo, o que vamos financiar? 'Ah, precisa montar uma creche, precisa comprar computador..' Nosso objetivo também é financiar e incentivar o coletivo", pontuou Binois.
A proposta da Nossa! chamou a atenção do ABF. Segundo Maria Laura Florido, gerente de sustentabilidade do fundo, o que pesou na decisão de investimento não foi apenas o potencial de mercado do açaí no mundo, mas principalmente a postura do empreendedor.
“A gente percebeu no Damien uma intencionalidade de impacto muito forte. Mesmo quando comprava de terceiros, ele se preocupava em rastrear a origem, conversar com comunidades, pagar o valor premium pelo fruto. E começou a notar que esse adicional nem sempre voltava para os produtores”, relata.
Para Florido, o fato de Damien ter decidido investir em uma fábrica no Brasil reforça essa visão. “Ele não precisava ter essa fábrica. O negócio dele na França já estava indo super bem. Montar uma unidade produtiva na Amazônia é muito mais complexo. Mas a intencionalidade dele de impacto é genuína. Ele quis estar próximo das comunidades, estruturar a cadeia de forma justa e criar um modelo diferente”, afirma.
Outro aspecto destacado pela gestora é o comprometimento do francês com a cultura local. “Ele vem ao Brasil há muitos anos, chega a viajar cinco vezes por ano, fala português muito bem, e já contratou uma pessoa dedicada só a manter a relação com os produtores, mesmo antes de a fábrica estar pronta. Isso mostra senso de responsabilidade e visão de longo prazo”, avalia Florido.
Esse conjunto de fatores, somado ao fato de que a empresa já possui certa maturação no continente europeu, deu segurança ao fundo para fazer o investimento, que envolve emissão de dívida com juros abaixo da taxa Selic, hoje fixada em 15% pelo Banco Central.
“Ele já tinha mercado consolidado na Europa. Isso nos deu conforto para investir e acreditar que o projeto pode ser um divisor de águas, não só para a Nossa!, mas também para comunidades que ainda não têm acesso a certificações ou apoio técnico”, explica Florido.
A Nossa! é a nona investida do ABF, que já aportou R$ 164 milhões em startups da Amazônia, segundo Florido.
Por enquanto, açaí apenas no Velho Mundo
Um fato curioso é que, apesar de o açaí ser cultivado e produzido no Brasil, toda a produção da Nossa! é enviada para a Europa.
A startup vende o açaí amazônico principalmente para clientes da França, mas também Espanha, Bélgica e Irlanda. “Cerca de 30% do nosso faturamento fica na França e o restante é dividido entre os demais países”, explica o fundador da empresa.
O principal produto comercializado pela foodtech é a polpa de açaí. A Nossa! trabalha com B2B e B2C na hora de vender os produtos, sendo que 80% corresponde ao B2B (40% vindo de vendas para indústria e 40% para food service) e os 20% restantes ao varejo.
O foco em food service, especialmente, se explica pela forma como os europeus consomem o açaí. “Se você quer comer um açaí, é açaí na tigela e é no restaurante”, explica Binois.
Para as indústrias, por sua vez, a Nossa! fornece a polpa para ser utilizada em outros produtos, como sorvetes.
Já o varejo hoje é a operação de menor força comercial dentro da Nossa!. “O problema do varejo é que ele exige grande investimento de marketing para um produto novo como o açaí. E como a gente tem esse foco na cadeia de produção na Amazônia, está difícil para nós investir pesadamente em marketing agora”, explica.
Para o futuro, a ideia do fundador da Nossa é avançar para além da Europa, chegando a mercados como Ásia e Estados Unidos – e também ao Brasil.
A pretensão se justifica porque Binois avalia que o mercado europeu tem suas particularidades, que podem restringir o crescimento da empresa no futuro, e é por essa razão que a empresa pensa em expandir sua operação comercial para além do Velho Mundo.
“Perto do Brasil, a Europa parece pequena, só que engloba um monte de países pequenos e, além da dificuldade mais óbvia, que é o idioma, os países tem empresas de logísticas específicas e regras internas um pouco diferentes entre si. Apesar de ser um país ao lado do outro, não é tão fácil você expandir dentro do continente europeu”, explica Binois.
O fundador da Nossa! avalia que, além da logística, outra dificuldade enfrentada pela foodtech na expansão comercial é a dificuldade dos consumidores europeus em aceitarem novidades como o açaí, fruto consumido majotariamente no Brasil.
“O mercado europeu é bem conservador. O que é tendência nos Estados Unidos chega à Europa 10, 15 ou 20 anos depois, seja a kombucha, água de coco... há uma gama de produtos que, quando não fazem parte da dieta tradicional francesa, italiana, espanhola, sempre carregam esse ceticismo”, diz.
Em relação ao Brasil, Binois considera que o mercado local também traz desafios – apesar de 90% do consumo mundial de açaí no mundo estar concentrado aqui.
Binois avalia que o mercado de food service funciona ainda de modo “muito informal” no Brasil.
“Para nós, com os nossos custos, certificações internacionais de segurança alimentar, política de compra acima do mercado, vai ser difícil competir nesse mercado”, explica.
No varejo, a concorrência de marcas já conhecidas dos consumidores brasileiros, como a Frooty, representa mais um obstáculo para a Nossa!, avalia Binois. Resta, portanto, as indústrias, para quem a foodtech pode fornecer matéria-prima.
“Grandes marcas têm de ter políticas internas de sustentabilidade na cadeia delas, e com essa, sim, a gente acredita que tem como entrar com uma proposta de valor um pouco distinta do que existe por aí”, diz o criador da Nossa!.
O valor de produção de açaí no País ultrapassou a marca de R$ 1 bilhão no ano passado, segundo dados da pesquisa Produção da Extração Vegetal e da Silvicultura, divulgada nesta semana pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O montante foi de R$ 1,023 bilhão no ano passado, 19,9% superior aos números de 2023, segundo o IBGE. Esse número representa o valor bruto gerado pela atividade (quanto o açaí movimentou na origem).
A pesquisa também apontou que a produção de açaí também cresceu no ano passado, registrando alta de 3,6%, chegando a 247,5 mil toneladas. O Pará é o principal produtor de açaí no país, concentrando 68,1% do volume total produzido.
Resumo
- Startup francesa Nossa! nasceu do interesse do francês Damien Binois pela Amazônia e hoje exporta para a Europa, com previsão de faturar € 3,5 milhões em 2025.
- Empresa recebeu aporte de R$ 15 milhões do Fundo de Biodiversidade da Amazônia (ABF) e vai construir sua primeira fábrica em Barcarena (PA) para eliminar atravessadores.
- Com contratos de longo prazo, preços acima do mercado e um fundo coletivo para financiar demandas sociais, a Nossa! aposta em um modelo de impacto que chamou a atenção de investidores.