Em novembro de 2024, o Parlamento Europeu adiou em um ano a vigência da lei antidesmatamento (EUDR), cedendo à pressões brasileiras e de outros países que exportam commodities agrícolas para países da Europa. Ao mesmo tempo, fez esses exportadores respirarem aliviados.

Porém, parece que o alívio foi grande até demais. Agora, a sete meses do novo prazo para a lei entrar em vigor de fato, ainda pairam dúvidas sobre as empresas, entidades representativas e órgãos oficiais sobre como atender aos requisitos europeus.

A EUDR prevê que importadores europeus provem que as cadeias fornecedoras de produtos, de commodities agrícolas e de derivados não desmatam, sob pena de multas de até 4% sobre a receita.

Acontece que a comprovação de certas práticas pode encontrar burocracias, divergências de metodologias e também diferenciações importantes entre portes de produtores e até mesmo nas regiões produtivas.

A adequação às regras está prevista para se iniciar no primeiro dia de 2026 para as médias e grandes empresas e a partir de julho do mesmo ano para as pequenas.

Nesta terça-feira, 27 de maio, a consultoria Agroicone divulgou, em parceria com a europeia Concito, documentos com reflexões sobre os principais desafios para implementação da EUDR nas cadeias de carne e soja, duas das principais culturas agrícolas do País.

O lançamento se deu em meio a um webinar, que contou com a participação de Rodrigo Lima, sócio-diretor da Agroicone, André Nassar, presidente-executivo da Abiove, Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Abiec, e Simone Hojte, conselheira sênior da Concito.

Lima considera que além de toda adaptação das cadeias produtivas à nova regulamentação europeia, é importante estar atento aos possíveis efeitos sobre comunidades locais, povos originários e pequenos produtores.

“Pra atingir esse objetivo de cadeias livres de desmatamento é preciso definir e trazer informações ao longo da cadeia para que o navio que desembarca no país importador tenha as garantias de que os produtos não estejam associados a desmatamento”, disse Lima.

Só neste ponto, já existe uma grande divergência entre a EUDR e a legislação brasileira. A lei europeia prevê a não compra de produtos que venham de áreas desmatadas a partir de 2020, só que as entidades europeias não diferenciam, como o Brasil, o que chamamos de desmatamento legal e desmatamento ilegal.

Para colocar mais molho ainda nessa discussão, a União Europeia publicou na semana passada uma classificação de risco por país no âmbito do EUDR.

O Brasil, conforme previsto, foi enquadrado na categoria de risco médio. Lima, da Agroicone, considera que esse risco poderia ter sido regionalizado dentro do País, seja por região, cultura ou estado.

“Não é possível afirmar que toda área de desmatamento no Brasil acontece por conta da agricultura, pois não é o que se vê na realidade. O risco poderia ter sido definido por região, e como não foi num primeiro momento, é importante aprimorar esse risco”, disse.

Quais as dificuldades na carne?

Fernando Sampaio, da Abiec, acredita que essa classificação pode redirecionar as compras europeias para países de baixo risco. André Nassar, da Abiove, fez coro ao colega e relembrou que, no mercado de farelo de soja, o Brasil acompanha a Argentina no risco médio, ou padrão, enquanto os Estados Unidos foram considerados com risco baixo.

“As penalidades da legislação são muito altas para esses operadores. Para a Europa, faz sentido mudar o fornecimento”, disse Nassar.

No caso da carne bovina, o diretor da Abiec acredita que, se esse risco fosse regionalizado, alguns estados do País se enquadrariam na classificação de baixo risco, que está relacionada com a quantidade de desmatamento anual.

“Se olhar as regiões em que estão as fazendas que exportam carnes para a União Europeia, grande parte dela estaria enquadrada como baixo risco”, acrescentou.

Sampaio ainda relembra que, por mais que hoje a Europa seja pequena no bolo de importações de carne brasileira, com 4% do total, esse é um mercado que recebe os cortes mais caros e que esse “preço europeu” não é atingido em outros países.

Na pecuária, contudo, Sampaio vê um setor mais avançado nas discussões sobre rastreabilidade e comprovação de origem. Ele acredita que, há pelo menos uma década, as companhias privadas já lidam com compradores que exigem zero desmatamento.

“Sempre trabalhamos numa lógica de exclusão. Tem desmatamento ou não tem documento que comprove, não é comprado. E isso vai criando uma cadeia segregada”, acrescentou.

Nos últimos anos, ele ainda cita que políticas públicas, como o lançamento de plataformas, aceleraram as discussões de rastreabilidade. De acordo com Fernando Sampaio, os animais que fornecem a carne exportada para a Europa já possuem identificação individual. Além disso, o País é capaz de rastrear por lote e, assim, pode fazer a rastreabilidade chegar em sua plenitude nas fazendas.

“Por aqui, o boi passa em duas ou três fazendas antes do abate. Desde 2019, quando os frigoríficos fizeram um acordo com o governo para ver a legalidade da originação, as indústrias cruzam imagens de satélite com CAR e bancos de dados para fazer checagem. É algo já estabelecido na indústria”, garantiu o diretor.

E na soja

A discussão agora, segundo ele, é definir qual legislação nacional é relevante para o EUDR. Do lado da soja, a discussão ainda está alguns andares mais para baixo.

André Nassar, da Abiove, cita que a cadeia da oleaginosa tem o elemento da segregação. Na prática, empresas que exportam deverão criar corredores de exportação para separar cargas que vão ao mercado europeu.

Por mais que o Velho Continente não seja um grande comprador da soja em grãos, é um destino importante do farelo de soja.

“46% do farelo que exportamos vai para lá, enquanto o volume de grãos é menor, cerca de 5%. Como o Brasil está estimulando o mercado de biocombustíveis, vamos demandar mais processamento de oleaginosas e isso vai gerar um coproduto super importante que é o farelo”, ressaltou Nassar.

Com a tendência de ver a oferta de farelo crescendo, o executivo vê riscos em como colocar essa segregação em prática.

Nassar disse, durante o webinar, que a segregação exige a dedicação exclusiva de armazéns, fábricas de esmagamento, ou de linhas dentro delas, para atender a União Europeia, no ano todo ou pelo menos por algum período dedicado.

Depois da fábrica ou do armazém, a logística ainda precisa ser coordenada nos trens e caminhões e, nos terminais portuários, estruturas precisam ser exclusivas para o modelo.

“Tem empresas dispostas a fazer isso, pois já estão estruturadas, mas outras ainda precisam investir. E esse investimento precisa ser feito agora para atender a legislação que entra em vigor no ano que vem, tempo que não é suficiente para avaliar se o desembolso vai se pagar para atender a Europa”, afirmou André Nassar.

Outro ponto destacado por Nassar foi a comprovação de cumprimento legal das propriedades rurais que vendem essa soja para as indústrias.
Segundo ele, a comprovação é feita em dois níveis: na verificação dos documentos que precisam ser anexados e numa espécie de “precaução europeia”.

No primeiro elemento, ele cita que é preciso entender o que é necessário ser enviado para comprovar que os fornecedores atendem a EUDR.

“A lei exige regularidade fiscal e que não haja corrupção na empresa. Como comprovar isso? Será exigindo do produtor uma certificação negativa de débtidos? Acontece que aqui temos a certidão positiva e a negativa, mas mesmo a negativa não garante que ele não esteja inadimplente”, disse, indagando qual será o comportamento da autoridade europeia em relação a esses temas.

Nassar defende uma discussão entre os órgãos públicos, a fim de uma sinalização clara para o setor privado, definindo os documentos e criando um protocolo orientativo. “Se não, o setor vai definir por si só e isso pode gerar incerteza de quem está fazendo a análise na Europa”, disse.

Outro ponto que deixa dúvidas em Nassar é o comportamento das entidades europeias caso haja denúncias, como, por exemplo, uma notícia que cita que uma empresa do setor de soja comprou a oleaginosa de uma região de conflitos com comunidades tradicionais.

Nassar acredita que é preciso um procedimento claro para esses casos e que isso dificilmente será definido pelo Governo Federal.

Na Abiove, ele cita que é discutido um modelo e uma sistemática de avaliação de risco nesses casos, avaliando regiões que há mais chances de ocorrer essas denúncias.

Os temas ligados a conflitos com comunidades tradicionais são os mais prováveis, segundo ele.

“A Europa pode tomar um princípio de precaução. No Brasil, a legislação define que se há um ente privado produzindo em uma área reclamada como indígena, esse ente só deixa a área no momento em que a reserva indígena é homologada, no fim do processo”, exemplificou.

“É possível que a autoridade europeia queira uma avaliação de risco em relação a isso, portanto precisamos buscar soluções mais simples. Se for complexo, pode gerar um aumento de custo grande e tirar a competitividade do Brasil. Vamos descobrir isso na medida que autoridades europeias recebam documentação, mas entendo que já deveríamos ter esse procedimento com as variáveis”, finalizou Nassar.

Resumo

  • Apesar do adiamento da EUDR para 2026, ainda há muita incerteza sobre como empresas brasileiras devem comprovar que não há desmatamento nas cadeias de carne e soja
  • A União Europeia classificou o Brasil como país de risco médio, o que pode prejudicar a competitividade frente a exportadores considerados de baixo risco
  • Faltam protocolos claros e são necessários investimentos urgentes para atender às exigências europeias