Às vésperas do desenvolvimento de mais uma safra de soja, com a expectativa de melhoria nos volumes de produção e rendimento, os produtores gaúchos terão mais uma pedra no sapato – e que, em partes, está mais uma vez associada às condições climáticas.

É que a Justiça do Rio Grande do Sul proibiu nesta semana a utilização do herbicida 2,4-D nas lavouras gaúchas por estar trazendo prejuízos às plantações vizinhas de maçã e de uva há pelo menos uma década.

A decisão foi publicada na última segunda-feira, dia 1º de setembro, pela juíza Patrícia Antunes Laydner, da Vara Regional do Meio Ambiente, que determinou, em sentença, que fosse proibido o uso e a aplicação do herbicida em toda a região da Campanha Gaúcha, localizada na metade Sul do Rio Grande do Sul, hoje uma grande produtora de soja.

A proibição também passa a valer em outras regiões gaúchas, para propriedades distantes em até 50 metros de lavouras de uva e maçã.

Além disso, segundo a sentença, o governo estadual terá 120 dias para apresentar e iniciar a execução de um plano de monitoramento e fiscalização, além de definir as zonas de exclusão permanente. Caso o Executivo gaúcho não cumpra a decisão, a multa diária é de R$ 10 mil.

A sentença do processo, que transita em julgado e ainda cabe recurso, atende a uma ação civil pública ajuizada em 2020 pela Associação Gaúcha de Produtores de Maçã e pela Associação dos Produtores de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha contra o Estado do Rio Grande do Sul.

Na ocasião, os representantes dos produtores alegaram que sua produção vinha sofrendo, há anos, com a disseminação do herbicida 2,4-D, aplicado antes do plantio de soja para o controle da erva daninha buva, resistente ao glifosato, em suas lavouras.

Esse fenômeno é conhecido como deriva e é favorecido pela forte incidência de ventos que coincidem com a época de aplicação do herbicida na soja e no milho, que ocorre entre o fim do inverno e o início da primavera. Com a força do vento, o herbicida pode atingir até 30 quilômetros do local de aplicação, segundo a sentença.

A situação nas lavouras gaúchas foi piorando ao longo dos anos, relata a íntegra da decisão judicial, obtida pelo AgFeed.

De acordo com o texto, os primeiros registros de danos a culturas sensíveis ocorreram em 2015, em Jaguari (RS), e a partir de 2018, os casos se multiplicaram. Naquele ano, em análise feita pela Secretaria da Agricultura e Pecuária do governo gaúcho, 85,2% das 81 amostras estavam contaminadas pelo herbicida 2,4-D, inclusive em casos de propriedades que não eram vizinhas diretamente de lavouras de soja.

Em 2019, a quantidade de casos subiu, chegando a 108 registros, número que caiu para 72 em 2021 e 43 em 2022, mas voltou a subir em 2023, quando foram confirmados 85 casos.

A juíza destacou que, mesmo quando aplicado conforme as boas práticas agrícolas, o 2,4-D também apresenta alto potencial de deriva.

Laudos anexados ao processo apontaram índices de contaminação superiores a 80% em safras recentes, segundo a magistrada, "revelando que a simples adoção de programas de boas práticas, sem monitoramento efetivo e plano de amostragem sistemático, mostra-se insuficiente para evitar os grandes danos ambientais.”

Além disso, a sentença atentou para o fato de que a própria bula do produto alerta que os cuidados devem ser redobrados se o herbicida for aplicado próximo de culturas sensíveis, pelo alto potencial de contaminação por deriva.

A prescrição do produto também recomenda que o herbicida não seja aplicado quando a velocidade do vento estiver acima de 10 km/h, pela possibilidade de o produto ser deslocado para outras áreas com a força do evento.

Como há risco de deriva acima de 50% na maior parte do Rio Grande do Sul ao longo de todo o ano, segundo estudo da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), com base em dados meteorológicos do Instituto Nacional de Metereologia (Inmet) e relatos de testemunhas arroladas no processo, a aplicação segura do 2,4-D passou a representar um "desafio signficativo e de difícil controle", na avaliação da juíza Laydner.

Réu na ação, o governo gaúcho também se manifestou, dizendo que não tem competência para proibir ou suspender a utilização de defensivos em âmbito estadual, que já tinha um programa de controle, o Deriva Zero, que também já havia formado um grupo de trabalho para lidar com a questão e feito um acordo com fabricantes do produto para financiar ações de fiscalização e monitoramento.

No entanto, conforme a sentença, um servidor da própria Secretaria de Agricultura e Pecuária, ouvido como testemunha, reconheceu as dificuldades do estado no controle da deriva e que a fiscalização ocorre majoritariamente por denúncias, "o que sugere uma atuação estatal reativa, e não preventiva", avaliou a juíza Laydner.

Assim, na avaliação da magistrada, as medidas adotadas até o momento são insuficientes para garantir a proteção ambiental e a sustentabilidade da produção em diferentes regiões do Rio Grande do Sul, especialmente na Campanha Gaúcha.

Laydner também avaliou que o estado tem autonomia para proibir o uso de defensivos em seu território, ao contrário do que a defesa do governo havia alegado.

A decisão vem dias após a aprovação de um relatório sobre o tema pela Comissão de Agricultura, Pesca e Cooperativismo da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. O documento sugere a criação de zonas de exclusão, amortecimento e definição de vazio sanitário, o estabelecimento de um Fundo Estadual de Indenização por Deriva e a responsabilização técnica pelo uso do produto.

“Vamos construir uma proposta de projeto de lei para reforçar a fiscalização e assegurar regras claras sobre o uso de herbicidas hormonais no Rio Grande do Sul. Não podemos conviver com uma tecnologia que inviabiliza outras culturas, prejudica a economia e ainda traz riscos à saúde da população”, prometeu o deputado estadual Zé Nunes, presidente da comissão.

Para o vice-presidente da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Domingos Velho Lopes, a questão não pode ser generalizada a todos os produtores.

“Existe o problema. É fato. E tem que ser muito bem trabalhado. Agora, este é um universo, não é a realidade do produtor rural. A maioria realiza aplicações corretas. Não podemos penalizar todo o setor por falhas pontuais”, disse Velho Lopes em evento durante a 48ª edição da Expointer, feira agropecuária realizada em Esteio (RS) nesta semana, segundo informações do jornal Zero Hora.

Já o produtor Valter José Pötter, ex-presidente da Associação dos Produtores de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha e proprietário da vinícola Guatambu, de Dom Pedrito (RS), disse que estava emocionado com a decisão e que espera que a medida se estenda para outras regiões do Rio Grande do Sul.

“Não restam dúvidas da importante e grandiosa decisão de proibição do 2,4-D. Estamos confiantes que o Estado não irá, de forma alguma, contestar e querer anular uma decisão da justiça em prol do desenvolvimento socioeconômico”, afirmou, também segundo o Zero Hora.

A Associação Gaúcha de Produtores de Maçã, uma das autoras da ação civil pública, informou à reportagem que o tema esta sendo analisado no momento pelo seu diretor jurídico e que, por enquanto, não iria se manifestar sobre a sentença.

O AgFeed entrou em contato com a entidade que representa a indústria de defensivos, a CropLife Brasil, que divulgou um posicionamento sobre o tema.

A entidade afirma que "a recente decisão da justiça do RS, que determinou a suspensão do uso e aplicação de 2,4-D em determinadas áreas, trouxe grande preocupação ao setor, uma vez que já estão em prática diversas alternativas e medidas concretas para enfrentar essa situação sensível, simplificando uma questão complexa que exige debate contínuo e soluções equilibradas".

A CropLife diz reconhecer "os desafios de regiões de produção agrícola diversificada, como o Rio Grande do Sul, e tem participado ativamente de discussões para a elaboração de um plano que fortaleça iniciativas de
capacitação em Boas Práticas Agrícolas, assegurando a correta aplicação das tecnologias e o cumprimento das orientações regulatórias".

Segundo o texto, "essa agenda tem demandado grande esforço não apenas da entidade, mas de todo o setor, na construção de soluções conjuntas com o Poder Legislativo e a Secretaria de Agricultura do estado gaúcho.

A nota também destaca que o setor estruturou, em parceria com instituições públicas e privadas, uma força-tarefa baseada em ações de educação e sensibilização, incentivo a tecnologias e boas práticas, assistência técnica em áreas críticas, além de integração e transparência entre os atores envolvidos.

O AgFeed também procurou a Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Sul, que não respondeu à solicitação até o fechamento desta reportagem.

Resumo

  • A Justiça do RS proibiu o uso do herbicida 2,4-D em regiões do estado, após constatar danos às lavouras de uva e maçã provocados pela deriva do produto
  • Decisão obriga o governo estadual a apresentar em 120 dias um plano de monitoramento, fiscalização e delimitação de zonas de exclusão permanente
  • Produtores de uvas e maçãs vinham questionando falta de controle sobre aplicação do produto há anos; prejuízos vem sendo registrados há uma década