Os primeiros relatos de fraude no setor do etanol combustível remontam há ao menos duas décadas e apontavam para o elo central da cadeia. Lideranças da área produtiva do biocombustível sempre lamentaram e denunciaram distribuidoras criadas e fechadas rapidamente. Essas empresas sonegavam tributos e entregavam a postos combustíveis baratos e de qualidade suspeita.

As mesmas lideranças ouvidas pelo AgFeed nesta quinta-feira, 28 de agosto, apontam que essa foi a origem do esquema criminoso multibilionário revelado hoje pela megaoperação de polícias, ministérios públicos e órgãos de controle contra 350 alvos em oito estados.

Com o controle do crime organizado, o esquema precisou se verticalizar para “não deixar rastro”, segundo relato de um executivo do setor produtivo de etanol. E foi assim que aconteceu.

Desde a campanha política ao governo de São Paulo até depois de assumir o cargo, o governador Tarcísio de Freitas sempre falou abertamente que o Primeiro Comando da Capital (PCC) controlava usinas de produção de etanol no Estado.

Esse segundo elo da cadeia produtiva foi tomado pelo crime organizado a partir da percepção de uma fragilidade meio que recorrente no setor. Seguidas crises e má gestão levaram usinas a passar por dificuldades financeiras, que as transformaram em alvos perfeitos para aquisição e posterior uso em atividades ilícitas.

As denúncias divulgadas nesta quinta-feira pela Receita Federal, Ministério Público de São Paulo e o Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado de São Paulo (Gaeco) listam pelo menos nove destas usinas como focos da investigação da Operação Carbono Oculto. Várias delas frequentaram o noticiário econômico e judicial nos últimos anos protagonizando processos de recuperação judicial ou de busca de compradores.

O principal exemplo, entre os listados, é o do Grupo Virgolino de Oliveira (GVO), companhia com operações no interior de São Paulo que há mais de uma década enfrenta crises financeiras.

O ápice dessas crises veio com o pedido de recuperação judicial, em 2021, com dívidas relatadas de R$ 7 bilhões. Mais recentemente, no ano passado, a justiça autorizou a venda de seus ativos, avaliados em R$ 2,5 bilhões – a começar por três usinas com capacidade de moagem de 10 milhões de toneladas de cana por ano, e mais 6,7 mil hectares de terra.

As usinas devem ir a leilão, mas antes disso, segundo o Gaeco, o empresário Mohamad Hussein Mourad, apontado como peça-chave no esquema, teria tentado adquiri-las. Ele teria, de acordo com a denúncia, adquirido créditos bancários da GVO com garantias reais para se colocar como credor do grupo.

Isso teria sido feito através do fundo Mabruk II, administrado pela gestora Reag, um dos alvos das operações deflagradas nesta quinta.

Em nota, os advogados do GVO informaram que a empresa não é alvo da investigação, “contribui com as autoridades e que suas operações financeiras foram informadas e aprovadas pelo Poder Judiciário”

Segundo a nota, a companhia atua “de maneira ética e profissional, gerando centenas de empregos, diretos e indiretos, e receitas ao Estado e União. Ademais, contratações e recebimentos de valores foram e são devidamente declarados às autoridades competentes, de acordo com a legislação vigente”.

Ministério Público, Receita e a polícia apontam que, no interior de São Paulo e em Goiás, companhias endividadas foram compradas - diretamente ou em processos de recuperação judicial - muitas vezes por laranjas e fundos de investimentos.

O próprio Mourad é apontado como comprador de outras usinas em dificuldades. Também através do fundo Mabruk II, teria adquirido a Itajobi. Já para comprar a Carolo, teria utilizado um fiagro exclusivo, o Participation. O uso de fundos visava a ocultar a verdadeira propriedade dos negócios.

“Eles assumiam as usinas, mandavam todos os funcionários embora e muitos, com medo de represália, não questionavam e nem recorriam à Justiça para terem seus direitos”, disse um representante do setor.

“Com os novos donos, essas usinas se tornaram inadimplentes e saíam de todas as associações de classe. E ninguém tinha coragem de ir cobrá-los”.

Segundo as investigações da força-tarefa, fundos compradores de usinas eram suportados pelo dinheiro vindo de fintechs, as quais eram abastecidas por postos de combustíveis, os elos financeiro e do varejo da cadeia verticalizada.

Outros elos intermediários eram a importação de nafta e metanol pelo Porto de Paranaguá. O destino seria a produção de produtos químicos, mas a utilização de fato era na adulteração de gasolina e etanol vendidos em cerca de 2,5 mil postos de combustíveis da rede investigada.

“No caso do metanol, no nosso contato direto com consumidor há uma crítica muito grande sobre a qualidade do etanol combustível e tenho certeza que é por essa causa. O setor que trabalha corretamente, paga impostos e tem a imagem manchada em função dessa fraude”, afirmou o presidente da Bioenergia Brasil, Mário Campos, entidade que reúne 15 associações de classe e 214 unidades industriais.

A Bioenergia Brasil e outras representantes do setor produtivo e de distribuição divulgaram nota conjunta na qual “reiteram seu apoio irrestrito às autoridades responsáveis pela Operação Carbono Oculto, a mais ampla já deflagrada no Brasil contra a atuação do crime organizado no setor de combustíveis”

Na nota, assinada pela Bioenergia Brasil, o Instituto Combustível Legal (ICL), o Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes (Sindicom) e a União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica), as associações avaliam que “o combate às práticas ilícitas é fundamental para proteger consumidores, garantir a arrecadação de tributos, fortalecer a confiança dos investidores e assegurar um ambiente de negócios transparente, que valorize empresas idôneas e inovadoras”.

Ameaças nas fazendas

A organização criminosa chegou até o elo inicial da cadeia sucroenergética. Na produção de cana-de-açúcar para garantir a produção do etanol, a atuação vinha em três frentes. A primeira era a compra de fazendas, muitas delas por meio de ameaças a proprietários que não tinham opção a não ser de desfazerem dos bens.

A outra frente era o arrendamento de propriedades e na compra de cana para a moagem, com uma característica em comum. Os preços pagos no aluguel das áreas e na matéria-prima para a produção eram muito acima do praticado no mercado.

Voltando às distribuidoras, apontadas com a origem do esquema criminoso, as empresas investigadas nas operações também foram citadas em mais um novo tipo de fraude por representantes do setor produtivo: o descumprimento das regras do Programa Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio) na compra de Créditos de Descarbonização (CBios).

Os CBios são emitidos pelos produtores de biocombustíveis, que sequestram carbono, e são necessariamente comprados por distribuidoras para compensar a venda de combustíveis fósseis, que são emissores de carbono.

Mas muitas distribuidoras não cumpriram as regras e foram multadas pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. O perfil das empresas é o mesmo das que, no passado, iniciaram o esquema de sonegação fiscal, aproveitando a alta carga tributária do setor.

Um esquema conhecido e conhecido até mesmo pelo governador do Estado mais rico do País, que avançou para fraudes e lavagem de dinheiro, e ganhou outros elos, envolveu o crime organizado e se verticalizou.

Do campo até a Faria Lima

A investigação conduzida pelas autoridades não se restringiu apenas à compra de usinas e à atuação em postos de combustíveis. Um dos eixos da apuração envolve o uso do mercado financeiro e de fintechs para estruturar e dar aparência de legalidade a bens e recursos ligados ao grupo investigado.

Nesse contexto, a lista do MP cita administradoras, gestoras e até fundos de casas como a Reag, Banco Genial, Trustee e Altinvest, que figuram entre as citadas na operação.

No caso da última, além da gestora em si, documentos disponíveis na CVM sobre os fundos sob sua administração envolvidos na operação apontam que eles têm participação em ativos de empresas relacionadas a pessoas mencionadas na investigação.

O Participation Fiagro, com patrimônio líquido de cerca de R$ 70 milhões, detém ações da MC3 Agropecuária, empresa que é de Marcelo Carolo, da fampilia fundadora da Usina Carolo.

Outro fundo citado na denúncia é o Celebration FIP Multiestratégia, também da Altinvest. O veículo, com mais de R$ 430 milhões em patrimônio líquido, concentra investimentos na Usina Itajobi, incluindo ações, debêntures e notas comerciais.

A criação de fundos fechados, sejam relacionados ao agro ou não, é algo comum no mercado. Empresas e investidores usam esses investimentos para organizar patrimônio e captar recursos.

A questão – e suspeita das investigações – é que essas mesmas estruturas podem ser usadas para blindar ativos e dificultar o rastreamento da origem dos recursos.

A Receita Federal calculou pelo menos 40 fundos de investimentos, com patrimônio somado de R$ 30 bilhões nesta investigação. O que está sob análise das autoridades é se estruturas como essas foram utilizadas para movimentar recursos ilícitos associados ao PCC. Esses fundos são fechados e, em sua maioria, com um único cotista.

Em nota, a Reag citou que foi de fato alvo de uma busca e apreensão na Operação Carbono Oculto, e que está colaborando com as autoridades competentes. Também em posicionamento oficial, a Genial manifestou “surpresa e indignação ao ver seu nome mencionado em notícias relacionadas à operação”.

“A instituição tomou conhecimento do assunto unicamente pela imprensa e, até o presente momento, não recebeu qualquer notificação oficial sobre a existência de procedimentos investigativos que a envolvam, seja direta ou indiretamente”, disse.

Além disso, afirmou que o banco sempre conduziu atividades com elevados padrões de governança, ética e compliance, e que está à disposição das autoridades para esclarecimentos.

O AgFeed procurou a Altinvest, que até o momento não retornou o pedido de posicionamento. A reportagem segue à disposição para esse recebimento.

Resumo

  • Crime organizado se infiltrou no setor sucroenergético comprando usinas em crise, e criando um modelo verticalizado que controla da produção de cana até os postos
  • Esquema envolvia fraudes fiscais, adulteração de combustíveis e manipulação do RenovaBio, gerando prejuízos bilionários.
  • Investigações apontam uso de fintechs e fundos de investimento para lavagem de dinheiro e ocultação de ativos