Nas últimas semanas, produtores rurais e entidades do setor agropecuário do Rio Grande do Sul têm intensificado os esforços para achar uma saída para resolver o crescente endividamento das dívidas dos agricultores gaúcho, que enfrentam dificuldades financeiras, após prejuízos causados por enchentes consecutivas entre 2023 e 2024 e sucessivas perdas de safra nos últimos anos.

De um lado, estão os principais representantes do setor produtivo e o governo gaúcho, que defendem a securitização das dívidas ou uma solução alternativa para resolver a questão. De outro, está o governo federal, com dificuldades de encontrar espaços dentro do orçamento já contigenciado.

Só as dívidas com vencimento neste ano devem chegar à R$ 27,7 bilhões. Mas o montante total de débitos dos agricultores gaúchos, considerando aqueles com vencimento em diferentes anos, é bem maior, chegando a R$ 72,8 bilhões. As perdas dos produtores como um todo já ultrapassam R$ 106 bilhões. Os dados são da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul).

Uma medida paliativa foi anunciada no fim de maio pelo governo federal após várias manifestações do setor produtivo, que colocaram seus tratores na rua e paralisaram diversas estradas de todo o Rio Grande do Sul como forma de protesto.

No fim de maio, o governo federal anunciou que iria prorrogar o prazo de pagamento de financiamentos para custeio e investimentos firmadas por agricultores gaúchos utilizando os recursos equializados do Plano Safra. A decisão foi divulgada em resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN), de nº 5.220, de 29 de maio.

Nas operações de custeio do Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp), a prorrogação foi de até três anos. Já nas linhas de investimentos, o prazo para pagamento foi esticado em 12 meses. As linhas do Pronaf já permitiam renegociação.

A prorrogação ficou limitada a até 8% da carteira dos bancos de operações de custeio e investimento e as instituições financeiras precisarão atestar a necessidade de prolongamento dos prazos e a capacidade de pagamento do devedor.

Diante de um contigenciamento de despesas promovido pelo Ministério da Fazenda, o Executivo teve dificuldades para acomodar a medida dentro espaço no Orçamento, uma vez que o custo da prrogoração aos cofres públicos será de pelo menos R$ 136 milhões neste ano, podendo chegar a R$ 385 milhões se considerado todo o período, segundo informações do jornal Zero Hora.

O governo do Rio Grande do Sul chegou a propor que o estado arcasse sozinho com os encargos, utilizando recursos próprios, vindos do Funrigs, o fundo de reconstrução do estado, mas o Executivo federal optou por um caminho próprio.

Os produtores gaúchos, no entanto, avaliam que a medida é insuficiente para resolver as dificuldades financeiras do setor produtivo local. Como reconheceu o próprio ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, a medida tem efeito paliativo: “Precisamos estruturar um fundo de aval, com presença do Estado, como foi feito na pandemia”, afirmou ao site Globo Rural.

A crise vivida pelos produtores é mais profunda e vai além dos extremos climático do ano passado, resultado de safras ruins nos últimos anos. A mais recente temporada da soja, por exemplo, terminou com quebra de produção de 17,4% em relação ao ciclo anterior, o que gerou prejuízo de R$ 13,5 bilhões, segundo dados da Emater/RS.

Uma das vozes mais ativas sobre o assunto é a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), que chegou até mesmo a inserir na semana passada em sua sede, em Porto Alegre, uma grande faixa em favor da securitização das dívidas dos produtores.

O economista-chefe da Farsul, Antonio da Luz, criticou, em entrevista ao AgFeed, a iniciativa do governo federal: “A prorrogação não é boa porque só dura três anos e porque ela não mexeu no percentual da carteira dos agentes financeiros que pode ser feita a prorrogação, continuando os 8%”.

Da Luz fez críticas também ao fato de a iniciativa do governo ter deixado a encargo dos agentes financeiros a decisão de o produtor pode acessar ou não a prorrogação.

“E ao invés de usar os instrumentos clássicos, decretos de emergência, decretos de calamidade pública, laudo técnico agronômico, aí é o banco que tem que dizer. E além do mais, ele passa para o banco uma tarefa também muito dura, que é provar a capacidade de pagamento do produtor”, afirmou. “Nós achamos que esse não é um caminho correto. Então ela não atende na plenitude do que a gente precisa.”

No último dia 12 de junho, a Farsul fez um pedido ao governo para que fosse decretada a prorrogação dos pagamentos por 90 dias de todas as operações, incluindo as inadimplentes, com recursos livres e Cédulas de Produto Rural (CPR).

A federação também pediu ajustes nas prorrogações autorizadas pela resolução do CMN do fim de maio como uma elevação do teto das carteiras de 8% para 16%, a inclusão das cooperativas de crédito e a inserção de operações já vencidas relacionadas ao Pronamp e demais produtores.

Do estoque total de dívida dos produtores gaúchos, estimado pela Farsul em R$ 72,82 bilhões, uma fatia de R$ 32,04 bilhões corresponde a dívidas de grandes produtores. Outros R$ 24,36 bilhões, a dívidas de pequenos produtores que se enquadram no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), e R$ 16,41 bilhões, a dívidas do Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp), voltado à agricultores de médio porte.

Um ponto que chama a atenção é que uma parte do total – mais precisamente R$ 22,2 bilhões – já foi renegociada, mas uma soma significativa restante, de R$ 50,3 bilhões – ainda não.

Da Luz atenta para o nível de inadimplência, que pode estar inclusive subindo neste momento. A inadimplência entre os que já haviam renegociado suas dívidas era de 3,5% em março. Entre os que não haviam renegociado, estava em 1,1%. A inadimplência geral, considerando a média dos dois grupos, estava em 1,7%.

“No momento em que a gente fez a pesquisa com os bancos, eram cerca de R$ 2,5 bilhões que já estavam atrasados. O problema é que o grosso dos vencimentos acontece agora, entre os dias 15 de junho e 15 de julho.”

Em paralelo, o Congresso Nacional está analisando um projeto de lei do senador Luiz Carlos Heinze (PP-RS), apresentado em fevereiro passado, que prevê a securitização das dívidas dos produtores do estado.

A proposta busca transformar as dívidas em títulos lastreados pelo Tesouro Nacional, com um limite de até R$ 60 bilhões. Esses títulos de dívida incluiriam operações de custeio, investimento e comercialização contratadas até o próximo dia 30 de junho de 2025.

O teto para renegociação previsto pelo projeto de Heinze é de R$ 5 milhões por CPF, com carência de três anos e prazo de pagamento de até 20 anos.

As taxas de juros propostas variam de acordo com cada perfil de agricultor: 1% ao ano para produtores do Pronaf, 2% para os do Pronamp e 3% para os demais produtores.

Além disso, a proposta abrange operações de crédito rural, incluindo contratos com bancos públicos e privados, cooperativas, agroindústrias, cerealistas, fornecedores de insumos e dívidas contratadas por meio das Cédulas de Produto Rural (CPRs) e Cédulas de Crédito Rural (CCRs).

O texto prevê também a criação de uma de uma linha de crédito, com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), para recuperação de solo e investimentos em irrigação, com taxa de juros de até 5% ao ano. A ideia é que os produtores tenham acesso a recursos para melhorar suas condições produtivas e reduzir vulnerabilidades futuras.

Heinze também sugeriu a criação do Fundo Garantidor para a Securitização das Dívidas Rurais (FGSDR), composto por recursos dos Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO), Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE), Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste e Fundo de Defesa da Economia Cafeeira (Funcafé) e outras fontes a serem definidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

No Senado, a proposta foi aprovada pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária, sob relatoria do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), e, no último dia 12 de junho, foi apensada ao projeto de lei nº 5521/2023, da Câmara dos Deputados, de autoria do deputado Carlos Veras (PT-PE), e agora está sob relatoria do deputado Afonso Hamm (PP-RS).

“Já estamos mobilizados e trabalhando para que o governo federal se sensibilize pela importância de efetivar o alongamento das dívidas dos produtores rurais”, afirmou Hamm.

A securitização, no entanto, não é uma alternativa possível neste momento, na avaliação do ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira. Em entrevista no começo de maio ao jornal Zero Hora, Teixeira disse que queria afastar a securitização “como uma das possibilidades, porque eu acho que ela não condiz com a realidade brasileira, a realidade gaúcha.”

Enquanto a proposta de securitização enfrenta ressalvas, a Farsul tenta fazer avançar uma outra alternativa, que envolve a utilização de recursos do Fundo Social do Pré-Sal, veículo nutrido com os royalties provenientes da exploração de petróleo e gás natural.

A ideia, segundo Antonio da Luz, economista-chefe da Farsul, veio a partir da consciência de que o País atravessa dificuldades fiscais. “Entendemos que procurar dinheiro onde não tem é uma perda de tempo”, diz.

“Fomos, então, estudar fundo a fundo e encontramos no Fundo Social não só recursos, mas um meio de uso do recurso, porque uma das possibilidades do uso do fundo é justamente amenizar os efeitos das mudanças climáticas.”

Para resolver parte do problema, o economista-chefe da Farsul estima que R$ 15 bilhões vindos do fundo ainda neste ano seriam suficientes para mitigar a questão. “No ano que vem, provavelmente vai ser necessário um novo aporte”, afirma.

A ideia da Farsul é de que o Banco do Brasil atue fazendo o repasse das operações, a juros de 8,5%. “Propusemos esse percentual porque é a taxa Selic de longo prazo.”

A vantagem é que a transferência dos recursos não teria custos para o governo, segundo o economista-chefe da Farsul. “O dinheiro do fundo do Pré-Sal não é orçamentário, não é um dinheiro do Tesouro. E não tem equalização de juros”, explica.

A Farsul participa de um grupo de trabalho sobre a questão dos produtores gaúchos e já apresentou essa alternativa ao Executivo, que teria visto a solução como “factível”, ainda que Da Luz lembre que não seja tão simples viabilizar a ideia.

“Há uma disputa por esse dinheiro. Todo mundo quer botar a mão. O próprio governo já usou ele para outras coisas, como, por exemplo, o Minha Casa Minha Vida da classe média”, diz.

O economista-chefe da Farsul lembra também que a solução proposta pode transcorrer de forma mais rápida do que as propostas de Heinze e Hamm. “O Legislativo tem um rito, tem que passar por várias comissões, tem trâmites, tende a ter um andamento mais demorado. Já a proposta do Fundo do Pré-Sal, o governo resolve com uma medida provisória.”

O economista-chefe da Farsul diz, no entanto, que “não é apaixonado por teses”. “Se houver um outro caminho que seja melhor e mais rápido, a gente não tem nenhum problema com isso. Nós não queremos ter razão. Nós não queremos ter paternidade ou maternidade. Nós queremos resolver o problema.”

Governo apoia

Em uma carta-aberta divulgada no último dia 16 de junho pela Farsul, Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) e outras entidade representativas dos produtores, as organizações pediram uma medida provisória de emergência para a reconstrução do setor rural do Rio Grande do Sul.

No documento, dirigido ao governo federal, além das proposições da proposta de Heinze que tramita no Legislativo, a carta também pede que o governo faça ampliação emergencial dos limites do Proagro para R$ 500 mil por CPF, acelerando o pagamento de parcelas em atraso e dispensando vistorias presenciais em áreas com decreto de calamidade reconhecido em junho de 2025.

Também menciona a criação de uma linha de crédito emergencial com juros de 3% ao ano para custeio da safra 2025/2026, com limite de R$ 500 mil por produtor e carência de 12 meses, garantida pelo FGO em até 80%, para manter a liquidez do setor.

O governo gaúcho endossou publicamente a iniciativa das entidades do agro. No evento em que a Farsul, Famurs e outras entidades apresentaram a carta aberta, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, fez um desagravo aos produtores locais:

“Não se trata apenas da enchente do ano passado. Trata-se da recorrência de eventos climáticos que nos fizeram perder muito da nossa produtividade. Ao longo dos últimos seis anos, o Rio Grande perdeu safras que equivalem a 60% do PIB do Estado. Esse é o tamanho do impacto, algo que nenhum Estado brasileiro viveu. É completamente diferente, desproporcional com o que ocorre em relação a eventos climáticos em outras regiões do País”, afirmou Leite.

Uma medida prática foi tomada pelo governo na última quinta-feira, dia 19 de junho. O Banrisul, banco público do Rio Grande do Sul que é controlado pelo Executivo local, anunciou que iria suspender ao longo de 90 dias, a partir da próxima terça-feira, dia 24 de junho, a negativação e o protesto dos produtores com dívidas de crédito rural na instituição.

O financiamento dos produtores locais é importante para os negócios do Banrisul, que registrou uma carteira de crédito rural de R$ 13,7 bilhões no ano passado.

Resumo

  • Os produtores rurais do RS enfrentam dificuldades financeiras, com estoque de dívida estimado em R$ 72,8 bilhões e agravado por perdas consecutivas de safra
  • A resposta do governo federal para as demandas dos produtores gaúchos incluiu prorrogação limitada de prazos, considerada insuficiente
  • Principal demanda do setor é a securitização das dívidas; alternativa sugerida envolve uso de R$ 15 bilhões do Fundo Social do Pré-Sal