A discussão sobre o Marco Temporal, ponto de destaque no que se refere à titularidade de terras rurais no País, há anos é foco de análise. Sustentado na tese de fixação de uma data limite às “terras tradicionalmente ocupadas”, o Marco Temporal visa assegurar ser de direito dos indígenas a parcela territorial efetivamente ocupada ou em conflito sobre a posse devidamente comprovado, até a data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988.

O tema foi objeto de recentes manifestações do STF e do Congresso Nacional, em sentidos opostos. Assim, em 23 de setembro, o Supremo Tribunal Federal decidiu pelo afastamento da tese, por 9 votos a 2, pela percepção de que o direito dos povos indígenas supera a limitação temporal, abrangendo variados territórios indiferentes à posse na promulgação da Constituição.

Além de afastar a aplicação temporal, a decisão ainda fixou 13 novas condicionantes ao regime de demarcação de terras indígenas no País.

De caráter polêmico, a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) tem alguns pontos centrais que podemos destacar: instabilidade sobre ato jurídico perfeito e direito de propriedade, queda de investimentos estrangeiros, possível e provável comprometimento da produção rural, destino de famílias desalojadas e falta de orçamento público para pagamento das indenizações.

O julgamento cuidou de distinguir posse tradicional indígena de posse civil, de forma que a posse desses povos consiste na ocupação de terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e à sua reprodução física e cultural.

O procedimento de demarcação, ainda, passa a assumir caráter meramente declaratório, formalidade a direito já pré-existente.

À indenização, por sua vez, incide regime relativo às benfeitorias úteis e necessárias. Ausente ocupação tradicional ou disputa sobre a área no momento da promulgação da Constituição, serão válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, atos e negócios jurídicos perfeitos e coisa julgada relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional.

Uma vez inviável o reassentamento dos particulares, cabe a esses indenização (com direito de regresso ao ente federativo que titulou a área) correspondente ao valor da terra, paga em dinheiro ou em títulos de dívida agrária. Essa indenização não se aplica a casos de terras já reconhecidas e declaradas como indígenas, salvo casos judicializados e em andamento.

Ainda impôs o STF que a constituição de reservas indígenas assume caráter subsidiário, incidente apenas quando impossível a demarcação. Uma vez comprovado erro grave, é possível o redimensionamento da terra demarcada, não sendo o prazo de 5 anos aplicável a casos de ações judiciais em curso e pedidos de revisão já instaurados até a data de conclusão do julgamento.

O reconhecimento da tradicionalidade da terra tem como ponto focal laudo antropológico, de forma às terras de ocupação tradicional deterem direito de posse permanente às comunidades indígenas, com usufruto exclusivo e com direitos indisponíveis, inalienáveis e imprescritíveis.

Por fim, a decisão ressalta a capacidade civil dos povos indígenas, assumindo caráter de parte legítima nos processos em que discutidos seus interesses, sem prejuízo da legitimidade concorrente da Funai e da intervenção do Ministério Público como fiscal da Lei.

A decisão do STF repercutiu e gerou preocupação quanto à segurança jurídica aos proprietários e possuidores de terras, especialmente utilizadas para a produção, levando à rápida ação do Senado Federal brasileiro.

Dessa forma, em 27 de setembro, foi aprovado o Projeto de Lei n. 2.903/2023, por 43 votos a 21, que estabelece legislativamente o reconhecimento do Marco Temporal à demarcação de terras indígenas. A proposta, que visa proporcionar maior estabilidade jurídica, segue agora à sanção do Presidente da República.

O Projeto considera como terras indígenas as tradicionalmente ocupadas, as áreas reservadas, consideradas as destinadas pela União a esses povos, bem como as áreas adquiridas pelas comunidades indígenas pelos meios admissíveis pela legislação, tais como a compra e venda e a doação.

Caracterizando as áreas tradicionalmente ocupadas, o texto as prevê como aquelas que, na data da promulgação da Constituição Federal (CF) eram, simultaneamente por esses povos, habitadas em caráter permanente, utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Ao contrário da decisão do STF, temos na medida do Senado uma ação positiva ao desenvolvimento econômico nacional

A ausência da comunidade indígena em 05 de outubro de 1988 na área pretendida descaracteriza, portanto, seu enquadramento de titularidade, salvo em casos de conflito devidamente comprovado –, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data de promulgação da CF.

A demarcação fica condicionada à participação dos Estados e dos Municípios em que se localize a área pretendida, bem como a participação das comunidades diretamente interessadas, sendo franqueada a manifestação de interessados e de entidades da sociedade civil desde o início do processo administrativo demarcatório, a partir da reivindicação das comunidades indígenas.

Aqui, uma vez verificada existência de justo título de propriedade ou de posse em área considerada necessária à reprodução sociocultural da comunidade indígena, a desocupação dessa será indenizável, por erro do Estado.

Ficam reconhecidas como áreas indígenas reservadas as destinadas pela União à posse e à ocupação por comunidades indígenas. As áreas são de propriedade da União e sua gestão fica a cargo da comunidade indígena, sob a supervisão da Funai.

De outra forma, são consideradas áreas adquiridas pela comunidade indígena mediante qualquer forma de aquisição admitida pela Lei civil, nas quais se aplica o regime jurídico da propriedade privada, não podendo ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que elimine a posse direta.

A posição tomada no Congresso é objeto de comemoração pelo setor produtivo, de forma geral, à medida em que fixa critério temporal e caracterizador das terras indígenas passíveis de reivindicação.

Ao contrário da decisão do STF, portanto, temos na medida do Senado uma ação positiva ao desenvolvimento econômico nacional, que depende de segurança à ordem econômica.

Reconhecer o Marco Temporal como tese válida em nenhuma medida impõe afastar o direito e a relevância que a população indígena originária teve e tem na história e sociedade brasileira, mas é reconhecer a todos os cidadãos o direito pacífico da propriedade privada.

Renato Buranello é presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDA)