Esta safra tem sido marcada por volatilidade dos preços das commodities, condições climáticas adversas e a crescente pressão dos custos operacionais. São questões que têm levado muitos produtores rurais a buscarem a recuperação judicial como uma solução geral e genérica à reorganização do endividamento.

Conforme dados da Serasa Experian, o número de produtores rurais que ingressaram na Justiça com pedidos de recuperação judicial no primeiro trimestre deste ano foi 6 vezes maior do que o registrado no mesmo período de 2023.

O indicador destaca que, de janeiro a março de 2024, foram protocolados 106 pedidos, quase o mesmo montante registrado no ano passado inteiro, com 127 solicitações.

Nesse mesmo contexto, decisões judiciais oscilantes têm trazido insegurança aos agentes econômicos que atuam em toda Cadeia de Produção Agroindustrial (CAI).

Recentemente uma decisão em Sinop/MT Grosso, trouxe importante discussão no âmbito do mercado financeiro de capitais. A decisão tem por objeto a questão da essencialidade ligada a bens dados em garantia (alienação fiduciária) de uma operação de Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA).

A crise de liquidez e baixas margens das operações de grãos no Centro-Oeste, assim como os precedentes nos processos de recuperação judiciais que envolvem produtores rurais, ligam-se a uma mudança de paradigma das políticas agrícolas, no incentivo ao maior desenvolvimento do mercado de crédito privado.

Até aqui adotamos um sistema misto de crédito rural com recursos oferecidos pelo mercado financeiro, mas com mecanismos de controle e subsídio estatal. No contexto atual, entretanto, há esgotamento do atual modelo de direcionamento obrigatório (exigibilidades e equalização de taxas).

Esse novo sistema vem sendo consolidado, por meio da emissão e circulação junto ao público investidor em títulos de crédito destinados ao financiamento das diversas etapas produtivas, como um novo passo rumo à desintermediação do financiamento das atividades agropecuárias (“monetização de safras”).

Após a criação da Cédula de Produto Rural em 1994 (Lei n. 8.929) foi criado o que temos chamado de Sistema Privado de Financiamento do Agronegócio.

Assim, entre 2011 e os dias atuais, uma esteira regulatória veio confirmar essa mudança de paradigma para o financiamento rural.

Podemos citar, principalmente, a criação dos Títulos de Crédito do Agronegócio (Lei n. 11.076), Regulamentação do CRA (ICVM 600), Lei do Agro I (n. 13.986), Lei do Agro II (n.14.421) e FIAGRO (Lei n. 14.130 e resolução CVM 39) e CRA com variação cambial (CMN n. 4.947).

Na direção da bioeconomia foi reforçado o apoio aos programas de agricultura sustentável, seguindo a criação da CPR Verde (Decreto n. 10.828) e da implantação da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA Lei n. 14.119).

Os casos de insolvência no setor tiveram repercussão com recente alteração de regime legal. A Lei n. 14.112/2020 legitimou o produtor rural a ajuizar pedido de Recuperação Judicial, conforme atualmente previsto no artigo 48 da Lei 11.101/2005 (“Lei de Recuperação e Falência”).

Este entendimento havia sido firmado no STJ, possibilitando ao produtor rural pessoa física se valer da Recuperação Judicial, mesmo sem registro na Junta Comercial pelo período mínimo de 2 anos, desde que estivesse no Registro Público de Empresas Mercantis no momento do pedido e apresentasse documentação que comprovasse a prática de atividade agrícola em caráter empresarial pelo período de dois anos.

Da análise prática dos casos de recuperação judicial ajuizados entre o período de 2018/2020, ficou evidente que a documentação apresentada pelos produtores era demasiadamente esparsa e que muitos não possuíam a estrutura contábil base fiscalmente exigida.

Assim, a documentação necessária para ingresso com pedido de recuperação judicial pelo empresário rural individual passou a ser prevista em rol taxativo, introduzido à LRF pela Lei 14.112/2020. O empreendedor rural deverá comprovar a crise de insolvência, caracterizada pela insuficiência de recursos financeiros ou patrimoniais com liquidez suficiente para saldar suas dívidas.

Contudo, mesmo sob novo quadro regulatório, já se nota certa flexibilização pelos tribunais estaduais, que têm deferido o processamento mesmo nos casos em que não é apresentada a documentação completa.

As decisões são pouco analíticas e não costumam adentrar no exame detalhado dos documentos apresentados, se atendo ao fato de o empresário rural não estar inscrito na Junta Comercial pelo período mínimo de dois anos.

Diante do cenário de recuperação judicial do empresário rural, os credores fiduciários não raramente encontram dificuldades na efetiva recuperação do crédito detido, já que os bens objetos da garantia são considerados como bens de capital essenciais e sua venda/retirada do estabelecimento do devedor é negada.

Em análise dos julgados nos mais diversos tribunais estaduais, nota-se uma tendência pela interpretação ampliada do conceito de “bem de capital”.

A fidúcia guarda a noção de uma convecção pela qual uma das partes (fiduciário), recebendo da outra (fiduciante) a propriedade fiduciária de um bem, assume a obrigação de dar-lhe destinação, no caso, responder de maneira específica a um inadimplemento.

Concluída a formalização, o fiduciário passa a ser titular pleno do bem incorporando ao seu patrimônio, e assim, o bem passa a constituir garantia do crédito. Através desse conceito e características a obtenção do financiamento ocorre em melhores condições gerais e menores taxas de juros.

Somam-se a isso vícios na formação do negócio em garantia. Uma conduta comissiva ou omissiva do tomador de recursos - que maliciosamente leva outro a fazer negócio jurídico que lhe é prejudicial e que o mesmo não seria realizado ou ocorreria em outras condições, caso a verdadeira base negocial fosse revelada.

A concessão livre de uma garantia fiduciária e posterior declaração de essencialidade formam uma estratégia e viciam o negócio no afastamento da boa-fé contratual.

Os fundamentos econômicos, ainda, reforçam um contexto de mudança que não permite mais ao produtor rural negligenciar a gestão de risco do seu negócio, diga-se, atividade econômica organizada.

O produtor rural interage com o mercado através de contratos na compra de insumos, comercialização e financiamento, e que tratam dos riscos da atividade entre os agentes econômicos da cadeia de produção.

Esses instrumentos devem ter relação com a criação de incentivos econômicos para que os agentes tomem um comportamento esperado e permita a aplicação de remédios jurídicos adequados, de forma a evitar majoração dos custos de transação na adoção, por vezes, de comportamentos oportunistas.

Renato Buranello é presidente do IBDA e sócio do VBSO Advogados