Por Renato Buranello e Bárbara Breda
O agronegócio brasileiro percorreu uma série de evoluções legislativas e movimentos de mercado que criaram o ambiente dual de crédito em que vivemos.
A convivência entre o financiamento público e o privado remete ao início dos anos 1990, quando a demanda por mais recursos impulsionou a geração do primeiro dos títulos do agro brasileiro, a Cédula de Produto Rural (CPR), por meio da Lei n. 8.929/1994. Vocacionada ao investimento direto na produção, a CPR testou as águas para que, dez anos depois, fossem desenvolvidos os demais títulos do agro brasileiro.
A boa experiência tida com o uso do título de financiamento à produção, acrescida da pressão orçamentária – o Plano Safra 2004/2005 destinava R$ 39,45 bilhões em crédito rural para a agricultura comercial, ao mesmo tempo em que o Valor Bruto da Produção (VBP) alcançava R$ 172 bilhões – levou à criação da Lei n. 11.076/2004, a Lei dos Títulos do Agro.
O descompasso de recursos e a necessidade de investimento nos demais elos da cadeia impulsionaram a criação dos Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), Certificados de Depósito Agropecuário (CDA), dos Warrants Agropecuários (WA), Certificados de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA) e das Letras de Crédito do Agronegócio (LCA).
Anos se passaram, alterações pontuais nas normas-matrizes foram feitas e regulações infralegais surgiram, até que, em 2020, fosse promovida verdadeira reestruturação do sistema de financiamento privado do agronegócio, com a edição da Lei n. 13.986/2020, a Lei do Agro.
Em substancial modernização dos títulos, a Lei direcionou os olhares do setor ao investimento em atividades formalmente descobertas – como as atividades de matriz ambiental –, a uma maior inserção no mercado global – emissão de títulos em moeda estrangeira – e a uma maior segurança jurídica – mecanismos de registro, escrituração e depósito centralizado.
Além disso, criou a Cédula Imobiliária Rural (CIR), o Fundo Garantidor Solidário (FGS) e o Patrimônio Rural em Afetação (PRA).
Em alusão à rápida mudança que as novas diretrizes globais impõem, apenas dois anos após a Lei do Agro I tivemos a edição da Lei n. 14.421/2022, conhecida como Lei do Agro II, que visa aparar pontos de debate.
Nesse meio tempo foi criada a norma que, aqui, merece destaque: a Lei n. 14.130/2021, criadora dos Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais, os Fiagros, que vêm sendo, com sucesso, implementados no país, nos trazendo muito aprendizado e demonstrando melhorias a serem incrementadas.
Valendo-se da urgência de mecanismos alternativos ao financiamento da atividade produtiva, o regulador, visando dar agilidade à constituição desses Fundos, aplicou normas já existentes que levaram à criação de suas modalidades Imobiliária, Direitos Creditórios e Participações.
Mesmo na ausência de normativa regulatória própria, os Fiagros desenvolveram indústria de valor ao agro, que já supera a marca de R$ 13 bilhões.
Os Fundos, porém, em muito se concentram na modalidade imobiliária, cujo ativo principal é a aquisição de imóveis rurais, no que reside seu atrativo: tradicionalmente, a terra é a maior riqueza do produtor rural e, ao mesmo tempo, é a mais segura garantia de todo o ordenamento jurídico brasileiro.
A terra não sai de seu lugar, não se movimenta ou desaparece. Pelo contrário, nos últimos anos, vemos que essas enriquecem, se valorizam. Dos Fiagros Imobiliários extraímos a movimentação de mais de R$ 10 bilhões.
Na sequência, vemos os Fiagros Direitos Creditórios, com emissão total em torno de R$ 1 bilhão. Baseado na regulação dos FIDCs, essa modalidade de Fiagro investe em recebíveis das Cadeias Agroindustriais e em títulos de dívida emitidos por integrantes da cadeia.
Portanto, é mecanismo que se vale de instrumentos já conhecidos ao setor, como os títulos de crédito CRA, CPR e CDCA, além dos mais antigos mecanismos de financiamento, duplicatas e debêntures.
Sua grande relevância está na possibilidade de reorganização de dívidas do produtor, garantindo fluxo de capital durante todo o ano, o que não é verificado em atividade pautada na periodicidade das safras.
Ao mesmo tempo, permite ao investidor uma remuneração decorrente de títulos de dívida emitidos por integrantes da Cadeia Agroindustrial ou pela aquisição de descontos de recebíveis.
A nova norma dos FIDCs, agora, abre margem a que investidores de varejo acessem essa modalidade de Fiagro.
O agro, apenas mais recentemente, tem se afastado da dicotomia “grande x pequeno produtor” que, por muitos anos, limitou o acesso a mecanismos de mercado mais elaborados
A modalidade menos utilizada, por sua vez, é o Fiagro Participações. Sua primeira emissão ocorreu em 2023, em constituição de Fundo multiestratégia.
O Fiagro Participações admite a aquisição de participação societária em sociedades anônimas ou limitadas atuantes no agronegócio, desde que, vinculado ao investimento, venha o poder de influenciar no processo decisório da investida.
Daqui se extrai o principal motivo a justificar a ausência dessas modalidades de Fundos no mercado. O agro, apenas mais recentemente, tem se afastado da dicotomia “grande x pequeno produtor” que, por muitos anos, conferiu a tônica das transações e limitou o acesso a mecanismos de mercado mais elaborados àqueles que se enquadrassem na primeira categoria, o que também indica o necessário acompanhamento, por experientes profissionais, à constituição dessa modalidade dos Fundos.
A mudança geracional, a alavancagem do agro e a demanda por alimentos, fibras e bioenergia fez com que os negócios agroindustriais de variados tamanhos passassem a olhar com cautela para mecanismos de gestão, governança e formalização, necessários a que se constituam devidamente as sociedades.
Aqueles já previamente constituídos assumiram consolidação mercadológica, de forma que apenas a injeção de capital para expansão as impulsionará à próxima etapa.
Lembramos: a parcela do agro no mercado de capitais e na própria B3 ainda é pequena, em comparação direta à movimentação financeira e dependência econômica que o país tem do setor.
As safras brasileiras dos últimos anos têm sido marcadas por crescente instabilidade climática.
Desde 2021, oscilações na temperatura e no volume pluvial compõem camada de complexidade previsional, já afetada pela alternância do preço das commodities, elevado custo do crédito e dificuldade de obtenção de recursos públicos subsidiados ou equalizados, que passam a se direcionar ao pequeno produtor e à agricultura familiar.
A pressão nas margens do produtor rural aumenta. O dólar também se tornou mais caro, o que reflete no custo das matérias-primas utilizadas na produção, em boa parte, oriundas do exterior.
Em 2022, momentos antes da guerra entre Ucrânia e Rússia, vivíamos situação de dependência de 70% dos insumos agrícolas brasileiros do exterior, do que se destacavam adubos e fertilizantes.
O agronegócio brasileiro atua em regime de mercado global. Alterações conjunturais e mudanças na estrutura de comércio conhecidas impactam indiretamente o setor, de grande dolarização e diretamente afetado pela inflação – as principais commodities agrícolas, das quais o agro brasileiro é um dos, se não o maior produtor do mundo, são cotadas em bolsas internacionais.
É necessária a adequação do setor ao ingresso do capital privado direcionado ao financiamento da produção
O panorama traçado aponta ao que há anos reforçamos: é necessária a adequação do setor ao ingresso do capital privado direcionado ao financiamento da produção, pelo uso de mecanismos capazes de majorar o profissionalismo, acompanhado de desenvolvimento de meios de gestão de riscos e de controle financeiro.
A consequência é a maior inserção do país em cadeias de valor globais, sem reflexo negativo ao consumo interno.
Esperamos, agora, movimentos da CVM com direcionamento necessário ao setor e consequente regulação das normas dos Fundos do Agro.
Se a indústria de Fiagros, em dois anos, foi capaz de movimentar R$ 13 bilhões, esperamos ansiosamente para ver o que um ambiente normativo mais estável e a compreensão dos agentes de mercado sobre esses novos mecanismos e suas teses de investimento são capazes de ocasionar para o futuro.
Parafraseando o presidente da CVM, João Pedro Nascimento, “o mercado de capitais é lugar para o agro”, ousamos dizer que o mercado de capitais já é o lugar do agro.
Renato Buranello é presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDA)
Bárbara Breda é diretora-executiva do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDA)