“Visa ou Mastercard?” Quem nunca ouviu essa pergunta ao menos uma vez? Nas revendas de insumos e cooperativas agrícolas, entretanto, uma terceira opção começa a ser incluída quando se pergunta a bandeira do cartão de crédito do cliente.

Trata-se da E-ctare, desenvolvida por uma startup mineira de mesmo nome, criada há dez anos e que lançou, em março passado, um cartão de crédito com vencimento no prazo safra.

O cartão “safrado” é um produto que vem aparecendo nos últimos anos no mercado de meios de pagamento e funciona de forma simples: ao invés de pagar uma fatura todo mês, o produtor pode realizar o pagamento assim que colher sua produção.

"O produtor não tem fluxo de caixa mensal. Não adianta você parcelar uma compra de R$ 10 milhões em 12 vezes para ele, porque ele só vai ter o dinheiro para pagar quando for colher", afirma Marcell Salgado, criador e CEO da empresa.

"O arranjo de pagamento de cartões de crédito do varejo foi pensando no fluxo de caixa dos trabalhadores assalariados. Mas isso não casa com a realidade do agronegócio", defende ele.

Criada há uma década pelo pelo farmacêutico e empreendedor Salgado, a fintech ficou mais conhecida nos últimos anos por lançar uma plataforma, a E-ctare Pay, com a proposta de ser o "PicPay do agro", reunindo soluções de crédito rural, carteira digital e gestão de pagamentos em uma plataforma digital voltada para o agronegócio.

A empresa acumulou uma carteira de R$ 100 milhões e, no último ano, resolveu voltar suas atenções para o mercado de cartões. Esse movimento foi acelerado após a venda do Banco Alfa, que dava suporte às suas operações financeiras, para o Safra, concluída em outubro do ano passado.

A E-ctare não quer emitir cartão algum. O negócio da empresa é funcionar como uma bandeira de cartões de crédito, que faz os processamentos entre o emissor do cartão – no modelo convencional, seria um banco – e o cliente, fazendo o processamento dos pagamentos.

A startup adaptou essa realidade para o campo. Numa ponta, o produtor é o cliente; na outra, estão revendas de máquinas e insumos, fabricantes de insumos e cooperativas, que fazem a emissão dos cartões. "A gente faz o cartão com a cara da revenda, da cooperativa", diz Salgado.

Salgado percebeu que precisava trabalhar também com taxas de transação menores que as usualmente praticadas no mercado, dado que as margens dos lojistas são bastante apertadas.

“Suponhamos que o produtor chegue na cooperativa com uma compra de R$ 10 milhões de reais em NPK, que tem uma margem de 2%. Como é que você cobra 2% para passar o cartão?”, questiona Salgado.

“A cooperativa, por exemplo, vai se interessar pelo nosso cartão, porque ela paga hoje 2% de taxa e eu cobro 10% disso por cada operação.”

Além de diminuir o custo, a ideia, segundo Salgado, é melhorar o fluxo de caixa das revendas e cooperativas.

Muitas ainda trabalham com o sistema de crediário, mais arriscado em comparação aos cartões de crédito pelos custos da operação e possibilidade de inadimplência.

“A principal vantagem, em um primeiro momento, é justamente o emissor sair do crediário e ter mais liquidez. A ideia não é ganhar com o produto, com o cartão. ”

A necessidade de se criar uma bandeira de cartões própria para o agronegócio, explica Salgado, veio a partir de uma série de particularidades do setor, que exige regras próprias de funcionamento, em sua avaliação.

Um limite de R$ 5 mil, por exemplo, que pode ser considerado alto para uma boa fatia da população nos centros urbanos, soa irrisório quando se pensa no volume de recursos a serem investidos na aquisição de máquinas e insumos, segundo o fundador da E-ctare.

Para efeito de comparação, o ticket médio dos usuários do cartões da E-ctare é de R$ 400 mil, enquanto que a média de consumo dos cartões de crédito em geral no ano passado foi de apenas R$ 128, segundo dados divulgados pelo Banco Central.

"O produto não consegue plantar meio hectare com um limite de R$ 5 mil, só vai conseguir comprar botina. No varejo agrícola, um limite baixo até funciona, mas o produtor compra mesmo é no atacado, em valores muito altos", afirma Salgado.

Também há demandas específicas de quem emite, de acordo com Salgado: a cooperativa, por exemplo, não quer que o seu cartão seja aceito numa cooperativa vizinha ou na revenda concorrente.

"Mas quer que o cartão passe na farmácia, porque não é business concorrente", afirma.

"E o limite do cartão não pode ser único, tem que ser distribuído entre varejo, agrícola, máquinas, combustível. Fora a questão de segurança, não posso colocar um cartão com limite de R$ 1 milhão na mão do produtor, que depois pode ser sequestrado", afirma.

Até o momento, a empresa diz que foram emitidos 20 mil cartões. Salgado afirma que não há um foco específico de mercado, mas que a startup tem trabalhado com cooperativas de produção.

Entre os clientes estão a Cotribá, cooperativa mais antiga do Rio Grande do Sul, e a Minasul, cooperativa mineira de café baseada em Varginha.

Não há maquininhas físicas na hora de o produtor fazer as transações, que são realizadas via software. “Também tem a possibilidade de usar o cartão no celular que tem NFC”, diz Salgado.

Salgado diz que o seu cartão de crédito é o primeiro a trabalhar com o prazo safra no mercado.

Mas a reportagem do AgFeed verificou que outros produtos com a mesma proposta já estavam no mercado há mais tempo.

É o caso do cartão TentosCap, lançado em março do ano passado pelo braço financeiro da 3tentos, companhia gaúcha que comercializa insumos, grãos, farelo de soja e biodiesel, com bandeira Visa, que adaptou o modelo de cartão com prazo safra, já usado em outros países da América Latina, para o Brasil.

Há dois anos, a Masterbarter, uma empresa focada no modelo de contratos barter que se fundiu no ano passado com a plataforma americana GrainChain, também lançou um cartão com prazo safra, mas sob a bandeira Mastercard.

Mais recentemente, a Grão Direto, considerada a maior plataforma de comercialização digital de grãos da América Latina, foi outra a oferecer um cartão do tipo, com bandeira Mastercard.

E um gigante vai se somar à lista em breve: o BTG Pactual antecipou ao AgFeed que se prepara para colocar no mercado, nos próximos meses, o mesmo produto. O banco já havia lançado um cartão voltado para o agro, mas com vencimentos mensais.

“Não temos a expectativa de ser os únicos no mercado por muito tempo. Mas a gente fez o que eu acho que ninguém ainda construiu, que é um regulamento para operar no agro e uma bandeira exclusiva do agronegócio”, diz Salgado.

Novo momento

A E-ctare passa por um momento de transição de negócio. Criada em 2015, a empresa nasceu ofertando uma plataforma de cotação de preços de café em tempo real, que foi se desdobrando em outras funcionalidades, como serviços de corretagem digital, até trazer ao mercado soluções de financiamento.

Aproveitando o momento em que as CPRs (Cédula do Produto Rural) estavam sendo digitalizadas, a partir de 2020, a startup começou a fazer antecipação de recebíveis para pequenos e médios produtores de culturas como café, leite e pecuária de corte dentro de sua plataforma, a E-ctare Pay, que também trouxe outras funcionalidades

Para fazer a roda da operação girar, a startup começou a conversar com executivos do antigo Banco Alfa, da família Faria, comprado pelo Safra em 2022, e foi investida do programa de inovação aberta da instituição financeira, o Alfa Collab, em 2021.

Na época, a operação previa um investimento em funding de R$ 600 milhões em três anos.

Com o Alfa, a E-ctare emitiu dois CRAs no mercado - um de R$ 50 milhões, em 2022, e outro de R$ 54,5 milhões, no ano passado (já pela Alfa Corretora) – e fazia as originações de títulos de crédito para um FIDC criado pelo banco. Mas a startup acabou sendo pega de surpresa com a venda da instituição dos Faria para o Safra.

Como nessa altura a E-ctare já acumulava uma carteira de R$ 100 milhões, a startup entendeu que precisaria mudar seus planos, por perceber que não conseguiria ampliar mais o seu funding, segundo Salgado.

"Precisaríamos fazer uma captação de R$ 10 bilhões para ter alguma relevância no agro, porque o mercado de crédito no agro é de trilhão”, afirma ele.

“E a gente também estava com esse desafio do banco, o nosso grande suporte financeiro, e que agora exigiria toda uma reconstrução de relacionamento. Então achamos melhor repensar a estratégia. Nos voltamos para aquilo que éramos bons, os sistemas que já tínhamos e tentar criar algo totalmente diferente", acrescenta.

Para dar conta da nova realidade, a empresa está no meio de uma rodada de investimento aberta desde agosto do ano passado e já conversou com 42 investidores, segundo Salgado.

Ele prefere não revelar o prazo final de captação e os valores, mas diz que oito investidores, entre eles, firmas de venture capital do agro e agnósticos e corporates ventures se interessaram na rodada.

Inicialmente, a captação estava focada em financiar a infra-estrutura capaz de suportar altas quantidades de processamento de dados gerados pela operação de cartões de crédito. Mas Salgado percebeu que os planos iniciais estavam superdimensionados – e o valor da rodada, inflado.

“Não precisamos construir ferramentas para 80 milhões de usuários, com 1 bilhão de transações. Podemos construir ferramentas para centenas de milhares de pessoas, mas com um número de transações bem menor e um volume transacional grande”, afirma Salgado.

De qualquer forma, segundo o CEO da empresa, os aportes servirão para que a empresa esteja preparada para um volume maior de clientes. “Se esses caras chegarem todos de uma vez, como é que você aguenta o tranco? Por isso a rodada”, afirma ele.

Fruto da modernização

Salgado entrou no mundo das fintechs – e das agtechs – um pouco por acaso, mas também por influências familiares.

Sua família trabalha com café há várias gerações. Mas ele optou por um caminho diferente num primeiro momento. Formou-se em Farmácia nos anos 2000 e, logo depois, passou a trabalhar na área de logística de medicamentos.

Há 15 anos ele resolveu voltar às suas origens, atendendo a um pedido do pai, que tinha um armazém de café na cidade de São Sebastião do Paraíso (MG), na divisa entre Minas Gerais e São Paulo.

"Eu estava seguindo carreira como um profissional bem formado, com um histórico interessante", recorda ele. "Mas o meu pai me fez uma pergunta: ‘Se você está ajudando o negócio dos outros a crescer, por que que você não volta para fazer crescer o nosso?’"
Com vontade de empreender, resolveu topar a empreitada. Ele e o pai abriram uma filial na cidade mineira de Andradas, também perto da divisa com São Paulo, e o negócio logo cresceu.

"A filial saiu de uma movimentação de 20 mil sacas de café em 2011 para 100 mil sacas de café em 2015, enquanto que a matriz fazia 60 mil sacas", lembra ele.

Nesse meio tempo, ele foi percebendo uma mudança geracional no campo, com a chegada dos filhos de produtores rurais, que queriam experimentar novidades como operações de contrato futuro de café, contratos do tipo barter e vendas diretas para trading.

Há dez anos, Salgado resolveu modernizar as operações de seu armazém. "Meu pai controlava tudo no papel. A gente passou a controlar tudo digitalmente", afirma.

Só que os sistemas de grandes empresas desse mercado, como Totvs e SAP, eram caros demais para uma empresa pequena como a de Salgado. Por isso, ele resolveu se juntar a um amigo, Francisco Silva, para desenvolver um software próprio.

"Eu vi que eles tinham condições de desenvolver outras tecnologias, e eu falei: ‘E se a gente fizesse um aplicativo para o produtor que desse o preço do café em tempo real?’"

Foi assim que nasceu o primeiro aplicativo E-ctare, em 2015, que logo chamou a atenção de produtores e traders: "O pessoal dizia assim: 'O negócio é legal porque a conta que a gente tinha que fazer na mão, sai em tempo real, só mexendo nos atributos e em algumas variáveis'."

De olho no crescimento de outras startups, Salgado foi desdobrando outras funcionalidades, com a ideia de fazer também oferecer serviços de corretagem dentro da plataforma.

"A ideia era ter um sistema que enxerga cafés de produtores e vende isso a compradores, e tentava se monetizar através de comissão."

Só que os produtores não queriam digitalizar esse processo - e também os compradores não queriam embarcar na ideia.

"Eu tinha que fazer quase o mesmo trabalho de um corretor normal e ainda tinha que fazer muito mais força para convencer o cara a dar os clicks. Então, eles começaram a me dizer: ‘É mais fácil eu ligar para você e você fazer a operação por telefone, do que eu, espontaneamente, entrar aqui no meu aplicativo e querer vender’”, afirma.

Vendo que a solução não deslanchava pelo lado de monetização, Salgado resolveu optar por soluções de crédito, trabalhando com operações do tipo CDA/WA, que significam, respectivamente, Certificado de Depósito Agropecuário e Warrant Agropecuário.

"Essa operação já existia, só que às vezes levava 90 dias para a operação ser liberada, porque o produtor precisava levar a nota fiscal do depósito ao banco, que precisava se certificar se o produto existia", afirma.

Como Salgado conhecia todo o mercado do café, conseguia fazer essas verificações de forma mais rápida, via aplicativo e acelerar a liberação dos recursos.

"Só que a gente não estava familiarizado com o business de fintech e ficamos com medo de o produtor fazer a operação e não termos o cheque para pagar. Fomos atrás de investidores", afirma.

Em 2018, a E-ctare conseguiu seu primeiro cheque de investidores, de R$ 1 milhão, liderados por Paulo Mason, um dos fundadores da corretora Clear, vendida em 2014 para a XP Investimentos.

Mason conhecia um dos sócios da E-ctare e gostou do negócio. "Eles também trouxeram funding para essa operação, e aí a gente sai de uma carteira de zero para R$ 10 milhões. Desde então, nunca mais a gente parou.”