Faz tempo que a compra e venda de gado deixou de ser totalmente presencial. Ainda no final dos anos 1990, o surgimento de emissoras especializadas no agro e da TV paga via satélite trouxe junto os leilões transmitidos ao vivo, na televisão.
Dessa forma, compradores e vendedores conseguiam fazer negócios mesmo a mais de mil quilômetros de distância.
Mas o processo, de qualquer forma, seguiu analógico por bastante tempo, pois exigia que o comprador ficasse na frente da TV esperando a melhor oportunidade para dar seu lance.
Uma startup de Mato Grosso, a Gado Certo, quer contribuir para a modernização desse sistema de compra e venda de animais.
A empresa vem crescendo nos últimos anos ao digitalizar todo o processo, saindo de apenas 528 cabeças vendidas no ano em que foi fundada, em 2019, para uma previsão de 70 mil cabeças comercializadas no fim de 2024, incluindo clientes gigantes como SLC Agrícola e Amaggi.
Neste ano, a agtech recebeu um aporte de R$ 4,5 milhões das gestoras de venture capital Bossa Invest e KPTL. Anteriormente, a startup já havia recebido outros dois aportes da Bossa Invest.
A dinâmica da tecnologia da Gado Certo funciona de forma simples, semelhante a aplicativos como Airbnb, Booking ou Quinto Andar, conectando compradores e vendedores de gado.
O pecuarista envia um vídeo para a Gado Certo, a equipe da startup faz a edição, verifica as informações e faz o upload do anúncio de compra ou venda na plataforma, que funciona no computador e no celular, em sistemas como iOS e Android.
Na plataforma, é possível filtrar lotes por sexo, categorias (garrote, boi, bezerro, etc), peso, idade, quantidade de cabeças, raça e por proximidade espacial.
Não há um botão de "compra". Farah explica que a ideia é que o pecuarista fique interessado e entre em contato com a equipe da Gado Certo.
"Ele pode sim escrever uma proposta no site ou no aplicativo, mas, geralmente, o que ele faz é entrar em contato no WhatsApp, e o nosso vendedor vai dar todas as informações que ele quer sobre o lote, o preço, e vai fazer a negociação para ele", afirma Farah.
Ao apresentar o preço, o sistema consegue calcular o frete e a comissão, segundo ele. “É tipo uma experiência do Mercado Livre”, resume Farah.
“Você nem precisa ir atrás de transportador ou de nada, compra e já entrega na tua fazenda do gado. Isso traz uma diferença enorme para o pecuarista porque ele precisa comprar hoje, precisa ir atrás de carreta, precisa ver quem vai carregar, toda a documentação”, afirma.
Já na hora de vender, o pecuarista envia uma mensagem dentro da plataforma para a Gado Certo, que entra em contato, faz o anúncio e conecta compradores e vendedores.
O ticket médio de cada transação é de R$ 300 mil. A Gado Certo é remunerada com comissões de 2% em cima da venda e da compra. “É metade que é a taxa do leilão, que cobra 4% dos dois lados. A gente cobra 2% porque não temos custo de TV e temos uma estrutura mais enxuta”, afirma Farah.
No último ano, 622 clientes ativos fizeram negócios na plataforma e a meta é chegar a 1 mil. A chegada de clientes pode vir de forma espontânea, via redes sociais ou pelo site da startup, mas Farah diz que existe também prospecção ativa via representantes de vendas.
A Gado Certo mira grandes grupos em sua estratégia comercial, de olho em empresas que ainda estão botando seus pés na pecuária.
Focamos em pecuaristas de integração lavoura-pecuária, que só produziam grãos, estão entrando na pecuária e não sabem muito bem como é que comercializa, e também miramos o pecuarista que é empresário, mas que tem outro negócio que é o foco dele, e precisa de mais auxílio na parte de comercialização do gado”, diz Farah.
Os primeiros passos
Filho de produtores de Mato Grosso, Eduardo Farah estudou Administração de Empresas no Paraná e na Alemanha e, ao voltar para a fazenda de recria e engorda de sua família, em 2015, percebeu que a comercialização de gado ainda funcionava de forma muito arcaica.
"As opções eram: ou você pega o carro ou a caminhonete e dirige 300, 400 quilômetros até uma outra fazenda para ver um lote para comprar, ou você tem um corretor, que é uma pessoa física, bem informal, na base da confiança, ou a opção do leilão, que o cara precisa parar para ver o lote", recorda.
Diante do universo de 12 milhões de cabeças somente em Mato Grosso, Farah e o irmão, Emil, que havia estudado no Vale do Silício, resolveram se juntar para criar uma startup que resolvesse o problema da comercialização, a Gado Direto, em 2019.
A operação começou muito pequena com investimento da família e pessoas. No primeiro ano, foram comercializadas apena 528 cabeças para três clientes. Ainda não havia plataforma. A venda funcionava via WhatsApp, com os irmãos Farah fazendo um pouco de tudo.
"Fomos na fazenda de um conhecido nosso, filmamos o lote no celular, fizemos ali uma landing page para colocar o lote e enviamos o link para alguns pecuaristas conhecidos. Saiu o primeiro negócio, a gente viu que funcionava e aí começamos a aumentar um pouco a equipe", recorda Eduardo Farah.
A opção de começar de forma artesanal, sem criar de uma plataforma logo de cara, foi proposital, segundo Farah.
A ideia foi primeiro construir uma base de clientes no boca-a-boca, entender a dinâmica do negócio e estabelecer confiança para depois digitalizar o processo.
"Nós entendemos que, como um marketplace em um setor que é muito tradicional, se nós fizéssemos um aplicativo e começássemos a falar para o vendedor filmar o lote, e para o comprador acessar e comprar, não ia dar certo, porque a gente está falando de um público tradicional e de um ticket médio de 300 mil reais de apenas um lote de gado", afirma.
Ainda assim, por mais que tenha de fazer um trabalho de convencimento, Farah também acredita que a startup nasceu em um bom momento, de transição geracional no campo.
“Muitas vezes, o novo pecuarista não tem como passar o fim de semana assistindo oferta em casa, na TV, ele já cresceu acostumado a comprar na internet”.
Em 2020, a startup começou a contratar profissionais de campo para se deslocar a regiões mais distantes e tornar a marca mais conhecida. Ao fim daquele ano, já eram 3,3 mil cabeças de gado comercializadas pela empresa.
No ano seguinte, veio o primeiro aporte de um investidor de fora, a Bossa Invest, que deu um cheque de R$ 300 mil. Foi nesse momento que a Gado Direto começou a desenvolver sua plataforma, ao contratar um desenvolvedor.
Ao fim daquele ano, já eram 11 mil cabeças comercializadas pela startup e a Bossa Invest fez um novo aporte, dessa vez de R$ 600 mil. A startup pôde dobrar sua equipe, passando de cinco para doze pessoas e concentrando seus esforços na criação do aplicativo.
"Mesmo assim, ainda em 2022, 90% dos negócios eram feitos pelo WhatsApp. O que a gente começou a fazer foi: ao invés de mandar um vídeo no WhatsApp, mandavámos um link para o pecuarista acessar o aplicativo e ver o lote", recorda Farah.
A startup foi dobrando seu volume de comercialização desde então: em 2022, foram comercializadas 21 mil cabeças, em 2023, 40 mil; e para este ano, a previsão é de que tenham sido comercializadas 60 mil cabeças.
Farah prefere não informar o faturamento, mas afirma que tem acompanhado o ritmo de expansão da comercialização. “O preço é variável e, claro, impacta na comissão, mas a melhor notícia é que, nos últimos três anos, nós tivemos a pior baixa de ciclo pecuário desde 1994 e sobrevivemos, e agora estamos já começando a voltar a surfar uma alta”, afirma Farah.
A ideia é chegar ao fim de 2025 com100 mil cabeças comercializadas. Por enquanto, a maioria dos negócios são feitos no Mato Grosso, ainda que a plataforma tenha clientes de São Paulo e Mato Grosso do Sul.
“A gente não fica tão preocupado em ir para outros estados tão rápido, porque só aqui no Mato Grosso, a gente pode crescer dez vezes e ainda não vamos ter nem 2% da pecuária de todo o Estado”, afirma ele.