Ao longo da última década, os Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs) se firmaram como uma das principais ferramentas de crédito rural, tanto na Faria Lima quanto no campo.
Agora, o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, prepara a estreia de um “novo tipo” de CRA, que não fica tão distante assim dos instrumentos já conhecidos do mercado financeiro tanto na sigla quanto no público-alvo.
Tratam-se das Cotas de Reserva Ambiental, um instrumento de compensação de áreas de Reserva Legal a ser utilizado pelos produtores rurais.
Previstas no Código Florestal desde sua criação, em 2012, essas cotas nunca haviam sido implementadas desde então devido a entraves regulatórios, dificuldades internas do SFB e disputas judiciais.
Agora, superados esses obstáculos, o SFB se prepara para a emissão das primeiras CRAs no próximo mês de novembro, em um projeto-piloto numa área de 160 hectares em Nova Friburgo (RJ).
As CRAs são títulos que representam uma área com vegetação nativa preservada que excede os limites mínimos exigidos por lei para a Reserva Legal em uma propriedade rural – na Amazônia Legal, por exemplo, o limite mínimo equivale a 80% da propriedade em área de florestas, 35% em área de cerrado e 20% em campos gerais.
O principal objetivo deste mecanismo é permitir que produtores com déficit de reserva legal possam compensar esse passivo ambiental adquirindo CRAs de quem tem excedentes de reserva legal, em vez de terem que restaurar suas áreas produtivas.
“É como se fosse uma “moeda verde”, a ser utilizada para compensar a área de reserva legal dos imóveis que têm passivo", exemplifica Gabriel Henrique Lui, coordenador-geral de estratégias e instrumentos do SFB, em entrevista ao AgFeed.
Em uma lógica parecida com a dos créditos de carbono, cada CRA deve equivaler a um hectare de área preservada ou em processo de recuperação. "Se o produtor tiver 50 hectares de passivo, por exemplo, ele vai comprar 50 cotas”, explica Lui.
O Código Florestal determina que a compensação das áreas de reserva legal deve ocorrer sempre dentro do mesmo bioma.
“Se tenho passivo na Mata Atlântica, eu compro 50 cotas na Mata Atlântica. Posso ter uma cota do norte do estado, do sul do estado, do litoral, do interior, não importa de onde. Só precisa ser apenas do mesmo bioma", diz Lui.
Os proprietários das terras precisarão escolher três alternativas para conseguir emitir as CRAs: (1) expandir sua área de Reserva Legal; (2) criar uma servidão ambiental; ou (3) criar uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN).
No primeiro caso, Lui diz que o dono do imóvel precisa aumentar a área de Reserva Legal no papel. “Ou seja, ao invés de 20%, eu vou ter 50% ou 80%. Isso significa também que vou ter de retificar o CAR [Cadastro Ambiental Rural], e dizer que a Reserva Legal é maior que 20%”, explica.
O segundo caso, o da servidão ambiental, consiste na renúncia voluntária do proprietário rural ao direito de uso, exploração ou supressão dos recursos naturais existentes em uma determinada área da sua propriedade.
No terceiro caso, o dono do imóvel cria uma RPPN, que é uma unidade de conservação de domínio privado, gravada com perpetuidade na matrícula do imóvel, com o objetivo de conservar a diversidade biológica. A criação da unidade de conservação não afeta a titularidade do imóvel, que continua privado.
Em quaisquer dessas alternativas, o imóvel precisa ter o seu Cadastro Ambiental Rural (CAR) analisado e um laudo comprobatório emitido pelos órgãos ambientais estaduais para seguir adiante na emissão de CRAs.
Hoje, apenas 3,3% de um universo de 7,65 milhões de cadastros tiveram sua análise concluída desde a implementação do CAR, em 2012, segundo relatório do Climate Policy Initiative (CPI), da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
“Se na análise, o órgão ambiental estadual percebeu que esse imóvel pode ser passível de emissão de cota, ele volta com uma notificação para o proprietário, via esse CAR, de que aquele imóvel tem um ativo, e o proprietário poderá indicar, dentro da área do ativo do imóvel, qual é a área que ele quer emitir cota. É sempre uma decisão do proprietário”, diz.
Os primeiros CRAs que serão emitidos no Rio de Janeiro são de uma área de RPPN de 160 hectares.
“Estamos começando pela RPPN para fazer os testes porque a gente tem mais segurança do dado, já tem uma RPPN criada, já tem um plano de manejo, essa área já foi certificada, seja pelo ICMBio ou pelo órgão ambiental estadual, e isso facilita a nossa vida para fazer esses primeiros testes”, afirma Lui.
O SFB agora está trabalhando para entender quantos hectares dessa reserva estão conservados e, portanto, aptos às emissões de CR. “É que não adianta ter só a RPPN. Ela também precisa estar conservada”, diz Lui.
Além de colocar o piloto em operação, a intenção do SFB é também levar os CRAs ao mercado financeiro, atendendo a uma determinação do texto do Código Florestal, que pede que as cotas sejam negociadas em sistemas de liquidação ou "bolsas de mercadorias de âmbito nacional".
"O que a lei está querendo dizer? Não adianta eu só emitir a cota e ela estar disponível como um ativo certificado no imóvel: também precisa ser negociada no mercado financeiro", diz Lui.
No lado vendedor, ele acredita que estariam produtores rurais que possuem áreas de vegetação nativa excedentes e que optaram por protegê-las voluntariamente.
Lui estima que o SFB já conseguiu identificar aproximadamente 3 milhões de hectares que seriam passíveis de emissão de cota por estarem com seus Cadastros Ambientais Rurais (CAR) analisados.
O passivo ambiental de Reserva Legal no país, no entanto, é bem maior, chegando a 33 milhões de hectares, também segundo Lui e estima-se que pelo menos 17 milhões de hectares poderiam ser alvo de compensação.
Já no lado comprador, o principal público seriam produtores rurais com déficit de Reserva Legal que buscam uma forma mais barata e eficiente de se regularizar, diz Lui.
"O que a gente ouviu, por exemplo, da equipe do CAR de São Paulo, foi que eles têm mais ou menos 150 mil hectares de demanda de regularização de Reserva Legal. Eles disseram: ‘Se vocês estivessem com a cota operando, eu coloco uma fila de produtor rural na porta de vocês para buscar essas cotas, porque as pessoas estão buscando regularização e não estão encontrando opções’”, relata Lui.
O coordenador-geral de estratégias e instrumentos do SFB acredita que a adesão deve acontecer por entender que a CRA oferece uma opção mais barata e efetiva de regularização ambiental, sem a necessidade de ter de transformar áreas produtivas.
“Um hipotético produtor de café de São Paulo ou de soja do Mato Grosso, que está com uma área de produção dentro da Reserva Legal, provavelmente nunca vai abrir mão dessa área produtiva, porque você tem que tirar a flora, começar um processo de recuperação, o que seria seria muito caro e muito pouco efetivo”, argumenta.
“Por isso, acreditamos que o produtor rural, principalmente os que estiverem conectados com as cadeias produtivas de commodities internacionais vão ter um mecanismo de regularização que vai ser mais barato, porque a cota vai custar menos do que você comprar terra ou fazer uma servidão ambiental para se regularizar.”
Além dos produtores rurais, Lui acredita que a comercialização dos CRAs pode atrair também empresas interessadas em cumprir metas relacionadas às temáticas de ESG e sustentabilidade.
“A Petrobras, por exemplo, complementarmente a fazer um projeto de compensação de emissões de carbono, eles podem comprar cota, porque é interessante para eles na perspectiva de ESG”, diz Lui. “A Itaipu pode comprar cotas para ajudar a conservar os mananciais, as áreas de ativo que estão em torno da bacia da hidrelétrica”
O preço de cada CRA será determinado pelo mercado, avalia Lui, assim como a liquidez, uma vez que o SFB ficará responsável apenas pela emissão dos títulos, sem controlar o mercado que pode se criar.
“Se a gente conseguir estimular que haja uma demanda grande de produtores rurais que tenham esse déficit de reserva legal, provavelmente o preço vai ser mais alto”, afirma Lui. “Mas se a gente tiver dificuldade dos produtores entenderem o mecanismo, sentir que não estão muito afim de comprar nesse momento, provavelmente o preço vai ser mais baixo.”
A expectativa do SFB é de que, no máximo, até o fim do primeiro semestre de 2026, a emissão de cotas esteja operacional, incluindo o lado financeiro.
“Nesse meio tempo, a gente vai emitindo cotas, porque aí a gente vai criar um banco para que na hora que o mecanismo financeiro estiver pronto, eu já consigo colocar uma quantidade grande no mercado”, diz Lui.
“O ganho de velocidade vai depender desse trabalho com os Estados, porque tem um trabalho de emissão da cota que depende da aprovação do órgão ambiental estadual, o laudo comprobatório. A gente precisa ganhar velocidade nesse trabalho, mas o sistema vai estar pronto para emitirmos milhões de cotas”, emenda.
Se, de um lado, há a necessidade de mobilizar os órgãos estaduais, de outro, o SFB já está avançado nas conversações com as instituições financeiras. A ideia é que os bancos se credenciem para fazer a operação de negociação dos CRAs, ligando compradores e vendedores do título.
Até o momento, Lui disse que a autarquia já conversou com instituições como Banco do Brasil, Santander, BTG Pactual e Itaú para entender como poderia ser a participação dos bancos no momento de viabilizar a financeirização do instrumento
“A gente vai fazer um chamamento, e os bancos vão se credenciar para operar a CRA e, a partir do momento, que a CRA estiver emitida pelo Serviço Florestal, o banco vai fazer um contato direto com o produtor rural para levar esse título para negociação. Ainda não temos todas as etapas finamente definidas, mas o desenho geral é esse”, diz Lui.
Especialistas ouvidos pelo AgFeed avaliam que a tentativa do SFB de acelerar as emissões de CRAs é positiva, sobretudo pela possibilidade de destravar a regularização ambiental das propriedades. Ainda assim, alertam para obstáculos operacionais que podem dificultar a implementação do instrumento.
Para Yuri Rugai Marinho, sócio-diretor da Eccon Soluções Ambientais e que acompanha as discussões sobre a CRA desde o início, a dependência da análise e validação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), processo ainda lento nos estados, é hoje um dos principais gargalos para a viabilidade do título.
Dessa forma, ele destaca que, para o mercado avançar, será necessário alinhar a atuação dos órgãos ambientais estaduais, do Ministério Público e do próprio Serviço Florestal Brasileiro.
“Sem esse alinhamento, o risco de insegurança jurídica é muito grande. E, sem segurança, o título perde a liquidez. Fica complicado alguém comprar uma cota sem a garantia de que o CAR estará regularizado”, afirma Marinho.
Apesar das dificuldades, ele acredita que a CRA pode se consolidar no futuro, desde que sejam criadas condições para dar confiança ao mercado.
“É um instrumento que usa tecnologia, se apoia na base de dados do SICAR e valoriza a floresta, o que é ótimo. Mas o desafio é acelerar a aprovação dos CARs, garantir segurança jurídica e criar vantagens para quem se regularizar. Caso contrário, muitos produtores vão olhar para esse cenário e concluir que é mais fácil continuar como estão do que enfrentar essa “pedreira””, complementa.
Antonio Malard, sócio da Alger Consultoria Socioambiental e ex-diretor-geral do Instituto Estadual de Florestas, órgão do Governo de Minas Gerais, avalia que os desafios só ficarão mais claros a partir da primeira emissão de CRAs.
“As coisas realmente vão ficar mais fáceis quando houver o primeiro título, porque ao menos se terá um fluxo definido de como tudo vai acontecer”, diz.
Ele lembra também que ainda há um grande volume de CARs pendentes de análise por parte dos Estados, e defende que haja prioridade para os casos que visem à emissão de cotas. “Esse proprietário rural não apenas cumpre o que precisa, mas vai além das obrigações. Teoricamente precisa ter prioridade”, afirma.
Resumo
- Serviço Florestal Brasileiro prepara a emissão das primeiras Cotas de Reserva Ambiental (CRAs) em novembro, em projeto-piloto
- Instrumento permite que produtores com déficit de Reserva Legal compensem esse passivo adquirindo cotas de quem tem excedente preservado
- Ideia é levar esses títulos ao mercado financeiro, com participação dos bancos nas operações