Junho foi um mês desafiador — repleto de eventos, viagens e diálogos nos mais diversos níveis. Passamos pela conferência SBSTA em Bonn, na Alemanha; pela Semana do Clima em Londres; por uma organizada e exemplar Vitória, no Espírito Santo; além das costumeiras reuniões em Brasília.
Mas nada se comparou à experiência de um dia vivido no Quilombo Boa Vista, em Rosário, interior do Maranhão. Foi como uma ponte aérea entre Londres e uma dura realidade: um salto entre a utopia dos fóruns internacionais e a distopia da vida cotidiana de muitos pelo mundo.
No retorno para casa, tentando encontrar boas músicas para suportar as mais de três horas de voo, me deparei com uma canção de 1981 que marcou profundamente minha juventude — e que, incrivelmente, dialoga com o que estamos vivendo em 2025: "Sal da Terra", de Beto Guedes.
A música começa com:
"Anda, quero te dizer nenhum segredo / Falo desse chão da nossa casa / Vem que está na hora de arrumar..."
Seja na Alemanha, em Londres ou no quilombo maranhense, todas as discussões partem de um mesmo ponto: a desordem mundial. Na política, na economia, nas mudanças climáticas e seus impactos sobre tudo e todos. Como bem resumiu o embaixador Antonio Patriota, “a desordem é a nova ordem mundial”. Então, sim: venham, porque está na hora de arrumar.
A canção continua:
"Tempo! Quero viver mais duzentos anos..."
Mas como? De 2024 para cá, assistimos a 61 conflitos armados em 33 países. Mais de US$ 7 trilhões foram destinados a subsídios para combustíveis fósseis. Outros US$ 4 trilhões foram gastos em subsídios perversos na agricultura. E, pior, US$ 4,3 trilhões investidos em defesa militar. Enquanto isso, os US$ 1,3 trilhões necessários para enfrentar as mudanças climáticas e seus impactos seguem fora do radar. Como, então, pensar em mais dois séculos de vida? Qual é a esperança?
E segue a letra:
"Vamos precisar de todo mundo / Pra banir do mundo a opressão / Para construir a vida nova / Vamos precisar de muito amor..."
Opressão também pode ser compreendida como medo — presente nas guerras e nas ameaças que enfrentamos hoje. Mas, segundo a teoria da metanóia, o antônimo do medo não é a coragem, e sim o amor. Amor que se traduz em respeito — base essencial para qualquer diálogo que deseje induzir uma transição real e necessária para o planeta. Especialmente neste ano da COP 30, que acontecerá no Brasil. Temos, agora, a obrigação de liderar uma nova agenda, transformadora, para o país e para o mundo.
"A felicidade mora ao lado / E quem não é tolo pode ver..."
Não deveria ser difícil enxergar, se abríssemos verdadeiramente os olhos para o real — se quebrássemos nossas barreiras cognitivas. No Quilombo Boa Vista, que visitei, só agora foi possível perfurar um poço artesiano. Em pleno 2025, ainda buscavam água em açudes, rios e riachos. E só recentemente receberam o título da terra que ocupam há quase 400 anos.
Ganharam também uma pequena agroindústria para evoluir do extrativismo para uma produção que fale com o mercado consumidor. A felicidade, sim, mora ao lado — e aparece em cada sorriso daqueles que, durante séculos, precisaram se esconder para sobreviver. Eles refletem a realidade de bilhões de pessoas no mundo.
"Terra, estão te maltratando por dinheiro / Tu que és a nave nossa irmã..."
Essa é a maior loucura que permeia os diálogos globais. A ciência já nos alertou sobre os rumos errados. A realidade escancara a fome, a seca, as enchentes, a desigualdade social e os extremos climáticos. Qual será, então, o sal da terra necessário para nos trazer juízo diante de tantos líderes psicopatas e narcisistas, disfarçados de estadistas, mas movidos por interesses próprios, de suas famílias e comparsas?
"Vamos precisar de todo mundo / Um mais um é sempre mais que dois / Para melhor juntar as nossas forças / É só repartir melhor o pão..."
O presidente da COP 30, embaixador André Corrêa do Lago propôs o “mutirão” como princípio norteador dos difíceis diálogos que se iniciam. Nestas mesas, especialmente no cenário amazônico de Belém, todos são convidados — principalmente os que pensam diferente — para sentar, ouvir mais do que falar, consentir mais do que exigir consenso.
Não é discurso. É sobrevivência. Ou aprendemos a dividir — recursos, poder, espaço, escuta — ou todos perderemos. O sal da terra não está nos grandes líderes, mas naqueles que, longe dos holofotes, continuam plantando esperança.
E talvez essa seja a maior lição de junho: os quilombolas do Maranhão têm mais a ensinar sobre futuro do planeta que os consultores de Londres.
"Deixar nascer, fluir, crescer, viver o amor."
Ser, verdadeiramente, sal da terra.
Marcello Brito é professor e Coordenador da FDC-Agroambiental.