Quando perguntam para Soraya Leal Bertioli porque ela e o marido, David John Bertioli, dedicam a vida a pesquisar o amendoim, a especialista fica empolgada.

“Geralmente me questionam: ‘Mas amendoim? Por que justo amendoim?’ – até com um certo desdém”, diz a doutora em biologia molecular de microorganismos ao AgFeed. Ela se entusiasma e explica que o amendoim vai muito além de acompanhamento para uma cervejinha de sábado à tarde.

Riquíssimo em proteínas vegetais, fibras, vitaminas e minerais essenciais, ele é, no Brasil, de certa maneira subestimado. Não fossem os doces de festas juninas - e a porçãozinha servida nos bares - seria praticamente esquecido da alimentação diária do brasileiro.

Mas fora do Brasil o amendoim é um super grão que salva vidas. Cerca de 3,6 milhões de crianças escapam da morte todo ano graças ao grão, que é a base do “Ready-to-Use Supplementary Food (RUSF)”, um sachê com uma pasta rica em nutrientes que a Organização das Nações Unidas distribui, por exemplo, em Gaza, ou em outros lugares onde a populações estejam correndo perigo por desnutrição.

Nos Estados Unidos, a pasta de amendoim está para o americano no café da manhã como a manteiga está para o brasileiro. Entre os chineses, maiores produtores mundiais da commodity, ela é a fonte do óleo mais usado e tem papel de destaque na culinária, sendo usado no preparo de frangos, macarrão, carne de porco e lanches.

Na Índia, tudo leva amendoim: curries, chutneys, comida de rua, baguetes de casamento. Assim como a culinária brasileira usa farinha para engrossar caldos, por exemplo, lá essa função é do amendoim.

Ou seja, juntando esses três países, já temos pelo menos 40% da população mundial comendo amendoim diariamente.

Não foi isso, entretanto, encantou Soraya e David na virada da década de 1990 para o começo dos anos 2000. O casal se conheceu na Inglaterra, quando a pesquisadora, que é brasiliense, foi para lá fazer seu doutorado em controle biológico. David, que é botânico, estudava plantas transgênicas e a ciência uniu os dois, casados agora há 28 anos.

Quando Soraya voltou para Brasília, David veio junto e, entre a Universidade de Brasília (UnB) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), os dois foram se encantando com o amendoim.

“A Embrapa tem um dos bancos genéticos de sementes mais completos do mundo e ali fica o amendoim silvestre, uma espécie muito antiga, que originou o grão tradicional que temos hoje”, conta David.

A genética desse amendoim silvestre é impressionante. “Você contamina ele com centenas de fungos e vírus e ele não se abala”, explica Soraya. Por isso, o casal decidiu se dedicar a estudar a planta a fundo, inclusive a fazer seu sequenciamento genético.

Por falar em genética, é preciso esclarecer aqui que o amendoim não é japonês. Nem chinês. Ele é latino-americano.

“Existem quase 80 espécies nativas de amendoim, muitas brasileiras, mas também há argentinas, paraguaias e uruguaias. Aqui, ele era uma das sementes mais utilizadas pelos indígenas guaranis”, explica David.

“Por isso é uma grande injustiça com essa leguminosa que os brasileiros não aproveitem mais essa fonte de proteína”, se ressente Soraya.

É o que faz a gigante americana Mars. Para a fabricante dos M&Ms e da barrinha Snickers o amendoim é a fonte de tudo. A empresa americana de alimentos, que lançou os M&Ms de amendoim em 1954, compra mais de 136 milhões de quilos de amendoim por ano. Em cada barra de Snickers, por exemplo, vão 16 amendoins partidos sem casca.

O problema é que a cultura do amendoim tem um grande ralo: 30% do que se planta é perdido para vermes que comem a raíz da planta, pragas de folhas e outros males.

Para diminuir esse percentual, o casal foi convidado em 2013 a passar um ano na Universidade da Georgia, estado tradicional na produção de amendoins nos Estados Unidos. Lá, a pesquisa em torno da oleaginosa cresceu e foi se tornando global. E, por isso, o casal foi ficando – até hoje vive em Athens, cidade sede da universidade americana.

“Conseguimos uma bolsa de US$ 1 milhão da União Europeia e montamos uma equipe de pesquisa que tinha gente aqui, no Brasil, na África, em outros países -- um projeto realmente internacional”, conta Soraya.

O resultado foi um o desenvolvimento, em parcerias ao redor do mundo, de variedades de amendoins resistentes a fungos, que têm sido utilizado em diversos países.

A produção brasileira é a décima do mundo, com aproximadamente 875 milhões de quilos em 2023. Pode crescer para cerca de 1,18 milhão de toneladas, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) – principalmente porque a planta é usada numa rotação, entre uma safra da cana e outra, para devolver nitrogênio ao solo de canaviais.

“Ela, além de recuperar o solo, pode ser usada depois para alimentar gado”, explica Soraya.

As pesquisas de Soraya e David chamaram a atenção também de gigantes corporativos como a própria Mars e foram até parar nas páginas do The New York Times.

A Mars procura garantia de fornecimento para sua demanda por amendoins simetricamente perfeitos, com equilíbrio entre os sabores doce e amargo e com um teor de óleos dentro de especificações únicas. Hoje, segundo a companhia, menos de 1% da produção mundial é capaz de atender a esse padrão e, com a maior imprevisibilidade climática e o avanço das doenças nas lavouras, esse percentual vem se reduzindo.

Recentemente, a companhia, preocupada com o futuro da produção da matéria-prima essencial ao seu negócio, aprovou aporte de US$ 3,5 milhões no Laboratório de Amendoim Selvagem da Universidade da Georgia, segundo o NYT.

“O objetivo é trazer a resistência do amendoim silvestre, aquele brasileiro, de 10 mil anos atrás, para as sementes atuais”, explica Soraya.

As ferramentas genômicas que ela e David criaram ajudou no desenvolvimento das variedades CB2 e CB7, que resistem a doenças de folhas. Também há grãos maiores, que produzem mais óleo e não deixam um gosto rançoso quando são degustados.

O desafio agora são os vermes. E vírus, como o Vira-Cabeça do Tomateiro, que também pega no amendoim e devasta a produção.

As mudanças climáticas também estão na mira da dupla de cientista, que vem desenvolvendo espécies capazes de se desenvolver em ambientes mais secos.

A chave para tudo isso está nas pequenas sementes de amendoim silvestre do passado. Ali, pode estar o segredo para dobrar a produtividade com a mesma área cultivada, para a redução de insumos, para o amendoim perfeito.

Quanto mais simples for o plantio e mais resilientes a intempéries forem as sementes, maior a chance de pequenos agricultores de todo o mundo cultivarem a leguminosa e, assim, garantirem o fornecimento à indústria, por um lado, e, de outro. mitigarem a fome em vários.

É isso o que a Mars quer também. Por isso, as descobertas do “Wild Peanut Lab” são para todos – não há royalties para o uso das descobertas. Então, quando alguém perguntar a Soraya e David por que os dois dedicam suas vidas há 25 anos ao amendoim, eles podem responder, simplesmente, que estão salvando vidas.

Resumo

  • Soraya e David Bertioli lideram pesquisas nos EUA para criar variedades de amendoim mais resistentes a pragas e mudanças climáticas
  • Projeto financiado pela Mars com US$ 3,5 milhões utiliza genética de amendoim silvestre brasileiro de 10 mil anos
  • Iniciativa pode dobrar produtividade, reduzir perdas e fortalecer a segurança alimentar mundial sem cobrança de royalties

Amostras de amendoim desenvolvido laboratório

Soraya Bertioli em campo de testes de suas pesquisas

David Bertioli