“Negócios são pragmáticos”. A frase fica mais forte quando sai da boca de Nicolay Gorbachov, presidente da Ukrainian Grain Association (UGA), a associação que reúne os produtores de grãos da Ucrânia. Ele comentava, na CNN International, a decisão russa de suspender o chamado Grain Deal, acordo com a ONU que permitia o uso de portos no mar Negro para escoamento da safra do país do Leste Europeu.
Dias depois, na última terça-feira, a Rússia efetuou um ataque contra instalações graneleiras no terminal portuário de Chornomorsk, na região de Odessa. Mísseis destruíram ou danificaram armazéns, silos e elevadores de grãos de grandes empresas, como a traders Viterra e CMA CGM Grouo e a ucraniana Kernel, maior grupo agroindustrial daquele país.
Cerca de 60 mil toneladas de grãos foram perdidas no ataque, mais um entre tantos que custaram vidas e prejuízos bilionários à produção agrícola da Ucrânia, um dos maiores produtores mundiais de commodities como girassol, trigo, soja e milho.
Em nota, a Kernel indicou que pode demorar até um ano para recuperar as instalações atingidas. Não é a primeira e, infelizmente, não deve ser a última vez que ativos da empresa sofrem ataques. E também não será dessa vez que ela se renderá.
Pragmática, a Kernel continua produzindo e buscando soluções para manter contratos com clientes internos e externos. Com ações negociadas na bolsa de valores de Varsóvia, na Polônia, a empresa viu seu valor de mercado cair mais de 27% apenas este ano.
O balanço do primeiro trimestre indica lucro líquido de US$ 69 milhões, uma notável recuperação sobre o prejuízo de US$ 103 milhões registrado no mesmo período em 2022, quando a invasão russa foi deflagrada.
As receitas caíram 51%, para US$ 825 millhões, numa combinação de queda de volumes e preços de commodities.
A guerra já havia deixado marcas nas demonstrações financeiras de 2022, que trouxeram prejuízo líquido de US$ 41 milhões e receitas de US$ 5,3 bilhões. A resiliência da companhia fez com que o volume de vendas caísse apenas 5%.
Mas o impacto geral foi amplamente negativo: em 2021, a Kernel havia lucrado mais de US$ 500 milhões.
Quem acompanha a Kernel além dos números enxerga uma empresa buscando mesmo ser pragmática e manter as operações. Os comunicados e as postagens da companhia ucraniana nas redes sociais alternam duras constatações sobre os efeitos do conflito com tentativas de encontrar alternativas e mostrar normalidade.
Na quarta-feira, após os ataques a Chornomorsk, por exemplo, o comunicado transmitia certo lamento junto ao relato objetivo dos estragos.
“Houve significativos danos à capacidade de armazenamento e movimentação de grãos. Felizmente, não houve vítimas”, informava. A Kernel comunicou que o ataque provocou um incêndio que destruiu 60 mil toneladas de grãos, carga que deveria ter sido embarcada no graneleiro de alta capacidade Alexis e destinada à China.
“Mais uma vez o mundo foi privado dos produtos agrícolas da Ucrânia em virtude da sabotagem e dos atrasos causados pelas autoridades russas”, afirmou a empresa.
No mesmo comunicado, a Kernel estimou que os seguidos ataques a portos e complexos industriais e a impossibilidade de usar as rotas marinhas para escoamento da produção devem elevar os preços de grãos como milho e trigo em algo entre 30% e 40%, além de aumentos de 30% nas sementes e 25% no óleo de girassol.
Uma semana antes, em 12 de julho, a comunicação da Kernel buscava aparentar otimismo. Uma postagem informava a assinatura de um acordo com o grupo polonês Unimot para driblar os bloqueios impostos pela guerra e encontrar rotas alternativas para o suprimento de combustíveis para suas operações. “Vamos também colaborar no campo da energia solar e em projetos de descarbonização”, dizia.
No dia anterior, o CEO da Kernel, Yevgen Osypov, participou de um encontro com a mídia em Kiev e indicou que o grupo estava disposto a fazer investimentos de US$ 100 milhões na melhoria de seus ativos, sobretudo no esforço logístico para exportação. “A segurança alimentar mundial é impossível sem a Ucrânia. Mesmo no estado de guerra, somos capazes de contribuir”, afirmou em sua conta no Twitter.
No dia 29 de junho, a mesma conta relatava a participação de Marta Trofimova, gerente de Desenvolvimento Sustentável da empresa, na conferência “Caminhos para Paris”, sobre finanças sustentáveis.
A data do evento foi marcada pela destruição da barrage de Nova Kahovka, no rio Dnipro, que resultou no alagamento de grandes áreas cultivadas da Ucrânia. “Marta enfatizou o dano causado ao meio ambiente. Nós lidamos diariamente com as consequências dos crimes de guerra do agressor”, dizia a postagem.
“A Ucrânia pode entregar resultados significativos na luta contra as mudanças climáticas. Mas antes temos de preservar a agricultura e vencer o inimigo”, completou.
Em 27 de junho, as redes sociais da Kernel já tratavam dos riscos de fechamento unilateral, pela Rússia, do “corredor” que permitia, ainda que parcialmente, o escoamento marítimo dos grãos ucranianos.
Nas semanas anteriores, a empresa mostrava como vinha atuando para buscar alternativas caso isso ocorresse – como de fato ocorreu. Em 22 de junho, a empresa anunciou que, em maio, havia conseguido atingir a meta de exportar 10 mil toneladas de óleos comestíveis por meio ferroviário para a Polônia, de onde eram encaminhadas para a Holanda “com a colaboração de nossos parceiros da Eslováquia”.
A média anterior era em torno de 2 mil toneladas. A postagem indicava também que o mesmo caminho serviria para levar grãos para Romênia, Lituânia e Alemanha.
Também as rotas fluviais, sobretudo a do rio Danúbio, a partir do porto de Reni, onde foram investidos US$ 10 milhões para elevar a capacidade de transporte para 600 mil toneladas anuais. Essa alternativa apereceu em postagens do dia 9 de junho e 5 de maio.
Outro tema recorrente nas redes sociais da empresa nos últimos meses foi a construção da unidade de processamento de óleos vegetais em Starokostiantyniv, “uma das mais poderosas plantas de extração de óleo na Europa”, segundo a Kernel. A unidade tem capacidade para processar 1 milhão de toneladas de sementes de girassol anualmente.
Em 1º de junho, em um evento em Kiev, o CEO da empresa ressaltou que a Kernel investiu, nos últimos anos, US$ 800 milhões na Ucrânia. “Através de contínuo crescimento e inovação, a Ucrânia se tornará mais próspera e seus cidadão experimentarão uma melhor qualidade de vida”, dizia a postagem publicada na ocasião.
O tom era institucional e esperançoso, como se pode esperar de uma empresa resistindo, pragmaticamente, em um país em conflito.