Está em apreciação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), ainda sem previsão de conclusão, um processo que pode abrir uma nova e polêmica fronteira agrícola no Brasil: o cultivo legal de Cannabis para servir como insumo para fins medicinais e industriais.

Em função do clima e da abundância de solos, o País é apontado como um dos que tem maior potencial para a produção da planta, cuja utilização para uso médico e até recreativo tem ganhado espaço e gerado controvérsias ao redor do mundo.

A mais recente manifestação da corte sobre o tema aconteceu em março passado, quando a ministra Regina Helena Costa lançou mão de um instrumento jurídico conhecido como “incidente de assunção de competência”. Com isso, ela indicou que fica a cargo do SJT decidir sobre a legitimidade da importação de sementes e do cultivo da planta.

Ainda não há dados locais sobre o potencial de negócios que podem ser gerados por essa liberação no campo. Em outros países em que o plantio já foi liberado, no entanto, os números impressionam.

Estudo realizado pelo instituto Leafly nos Estados Unidos – onde o cultivo é legal em 15 estados – aponta que em 2021 havia mais de 13 mil propriedades rurais dedicadas à atividade, gerando cerca de US$ 5 bilhões em receita para os produtores. De acordo com o estudo, a cultura só perde, nesse quesito, para a produção de milho, soja, feno, trigo e algodão.

“Ter esta parte da cadeia que hoje não está no Brasil facilitaria muito a operação em toda a produção, ajudaria na queda dos preços, aumentaria o controle dos medicamentos, além de resultar na criação de mais empregos no setor”, afirma Gustavo Palhares, CEO do Ease Labs.

O laboratório é especializado na utilização do canabidiol (CBD, substância extraída da cannabis para a produção de medicamentos, e tem um produto autorizado pela Anvisa nas prateleiras de 1.500 farmácias brasileiras.

Atualmente, todo o insumo utilizado pela indústria é importado – e em volumes cada vez maiores. A empresa, que iniciou a importação d em 2017 já ampliou a estrutura para duas indústrias em Belo Horizonte (MG), além de uma unidade na Colômbia para a verificação de qualidade do insumo enviado para a produção no Brasil.

“Temos mais produtos protocolados na Anvisa que devem sair este ano. A nossa meta em 2023 é ter, no mínimo, 30% do market share de um mercado estimado em R$ 700 milhões por ano no país. Nosso faturamento cresceu cinco vezes de 2021 para 2022 e, este ano, queremos crescer mais seis vezes”, afirma o CEO.

O advogado Rodrigo Mesquita, membro da Comissão de Assuntos Regulatórios da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que discute a legalização do uso e produção da Cannabis Sativa no país, acredita que a liberação do cultivo traria uma concorrência saudável aos atuais laboratórios autorizados.

“É certo que há uma demanda de consumo que não está sendo suprida pelos produtos regulados. Por isso, fica a pergunta: é uma falha de mercado ou de governo?”, questiona Mesquita.

Embora lentos, alguns avanços legais têm impulsionado a indústria voltada ao uso medicinal do derivado da cannabis. E mesmo nos países em que esses avanços foram mais rápidos há questões não resolvidas.

Em solo norte-americano, o governo permitiu, nos últimos anos, que os investimentos se antecipassem à regulação do produto – seja para saúde ou alimentação –, o que vem causando frustração em muitos empreendedores que tinham a expectativa de facilitação progressiva do comércio CBD no país.

“Quando você tem regras diferentes de estado para estado, sem uma regulamentação federal, há um desafio claro em relação ao mercado financeiro em que grandes fundos de investimentos têm dificuldade de colocar capital. Ainda há o problema crônico da operação com a grande dificuldade de transporte da matéria-prima entre estados para fazer o processamento”, explica Palhares, do Ease Labs.

Há ainda um problema de fiscalização dos produtos norte-americanos. Segundo especialistas, as regras para a produção da Cannabis naquele país se assemelham mais às de controle de suplementos alimentares do que de medicamentos.

“O uso indiscriminado e sem controle leva ao consumo de produtos com alto teor de THC”, alerta a anestesiologista especialista em dor Maria Teresa Rolim Jalbut Jacob. O THC é o componente psicoativo da planta.

“A gente usa produtos com THC para tratamento médico, mas é ele que dá o barato, aquelas viagens e a complicação cardiovascular. Passa a ser perigoso”.

Aqui no Brasil, os avanços foram apenas na liberação para o uso medicinal do CBD e ocorrem em ritmo mais vagaroso não só na comparação com os EUA, mas também em relação aos vizinhos Uruguai, Argentina e Chile.

Uma decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2015 permitiu a importação de medicamentos à base de canabidiol por meio de prescrição médica.

Em 2017, a agência aprovou o registro pioneiro no país de medicamento à base de Cannabis e, entre 2019 e 2020, autorizou o primeiro produto de CBD para venda em farmácias.

As liberações da Anvisa permitiram também a produção de cannabis sintética, o que é feito, no momento, por um laboratório brasileiro.

Houve ainda a formação de associações de pacientes que reúnem assistências jurídica e médica para facilitar o acesso aos remédios de CBD.

Atualmente, são 23 associações que atuam no Brasil. A maioria tem autorização especial da justiça para o cultivo da cannabis e a extração do óleo como alternativa aos medicamentos de farmácia produzidos por quatro laboratórios autorizados pela Anvisa. Algumas associações também buscam a importação da planta ou dos remédios.

O valor de um medicamento produzido por associação representa um terço do preço do remédio de laboratório na farmácia que custa, em média, R$ 600,00 na quantidade de 30 ml necessária, geralmente, para um mês de tratamento.

A brutal diferença de preços divide opiniões. A urgência de pacientes com epilepsia ou autismo com necessidade de tratamentos à base do CBD acelerou a atuação das associações brasileiras.

Por outro lado, há médicos que confiam apenas nos medicamentos vendidos em drogarias, por conta da tecnologia de produção.

No Congresso, tramita desde 2015 o Projeto de Lei 399 com o objetivo de dar amparo legal aos usuários do canabidiol para fins medicinais. O texto, no entanto, não prevê o auto cultivo da planta.

Fora da área de fármacos, poucas iniciativas de indústrias de cosméticos e de alimentos no Brasil levaram ao uso do Canabidiol Active System (CBA), uma junção de vários óleos com origem na floresta amazônica que produz efeitos parecidos ao do CBD.

Embora as substâncias não tenham relação – e por isso o uso do CBA é autorizado à indústria brasileira em geral - o marketing dos produtos busca estratégias para associá-lo ao CBD com o uso da cor verde e de folhas que sugerem as da Cannabis Sativa nas embalagens e materiais publicitários.

Mas a liberação do CDB para uso não medicinal está longe de ser cogitada ou mesmo defendida por especialistas aqui no Brasil. E isso não parece decepcionar o mercado.

Apenas a demanda reprimida do canabidiol para uso médico - estimada em mais de 13 milhões de pessoas – já é suficiente para dar tração ao setor.