No casamento, celebração. Na separação, apenas as formalidades. Esse é o resumo do negócio que reuniu, há cerca de um ano e meio, duas gigantes internacionais em torno de uma empresa bilionária sediada no Brasil. E que agora foi desfeito, de forma discreta.

No centro da transação está a CJ Selecta, com sede em Uberlândia (MG), conhecida pela excelência de suas operações de processamento de soja e tida como a maior produtora mundial de exportadoras de concentrado proteico de soja (SPC, na sigla em inglês), um farelo de soja com alta concentração de proteína e alto valor agregado, vendido principalmente para Noruega e Chile, mercados que utilizam o produto na ração das fazendas de produção de salmão.

Do lado comprador estava a Bunge, megatrading global com sede comercial em Genebra, na Suíça. A vendedora era o CJ Cheiljedang, um dos dez maiores grupos econômicos da Coreia do Sul, que havia adquirido a brasileira Selecta em 2017.

Em outubro de 2023, as duas companhias celebraram um acordo que previa a aquisição do controle da CJ Selecta pela Bunge por uma quantia avaliada em R$ 1,7 bilhão (o valor declarado pelos coreanos é de 407 bilhões de won, o equivalente a US$ 302 milhões).

Há pouco menos de um mês, entretanto, o negócio foi oficialmente desfeito. Companhias listadas em bolsa de valores – a Bunge, na de Nova York, a CJ, em Seul – as duas empresas limitaram-se a comunicar o fato em documentos protocolados junto às autoridades mobiliárias locais.

Esses comunicados expressam que as duas partes já não falavam a mesma língua, com cada uma delas buscando indicar que teve a iniciativa no distrato.

Em fato relevante datado de 25 de abril passado, os coreanos afirmam ter sido a colocarem o fim na transação.

“Como a possibilidade de cumprimento das condições precedentes à transação não é clara, notificamos a contraparte (Bunge) sobre a rescisão do contrato para resolver essa incerteza e focar em atividades de gestão estáveis”, relata a holding coreana no documento, que não deixa claro quais as “condições precedentes” e nem a quem caberia cumpri-las.

Em nota encaminhada ao AgFeed, a Bunge informou ter sido ela quem exerceu o direito contratual de rescindir a transação. “A decisão levou em consideração o fato de a sua data limite ter expirado sem a obtenção das aprovações regulatórias e as circunstâncias relacionadas à condução dos negócios pela CJ”

A informação, segundo a Bunge, havia sido compartilhada com investidores durante a teleconferência de resultados do primeiro trimestre, em 7 de maio.

“As operações de ambas as empresas no Brasil permaneceram completamente independentes durante o período em que a transação estava sob avaliação regulatória”, completou a Bunge.

Procurada para se pronunciar além do fato relevante, a CJ Selecta informou que iria encaminhar os questionamentos da reportagem por e-mail à área de M&A da holding na Coreia, mas não deu respostas até a publicação deste texto (que pode ser atualizado à medida em que a empresa se manifeste).

Se não está claro de qual das duas empresas partiu a decisão de desfazer o negócio bilionário, o que fica aparente é que fatores de mercado podem ter sido determinantes para que a Bunge tenha perdido o interesse pela CJ Selecta.

O AgFeed apurou que entre o anúncio do acordo, em 2023, e o prazo previsto para a formalização, em 2025, a CJ Selecta teria perdido valor de mercado – o que seria explicado pela depreciação, como um todo, das commodities agrícolas no mercado global, o que reduziu receitas e ganhos de grande parte das empresas que atuam em cadeias como as da soja.

Próximo à finalização do negócio, a Bunge teria solicitado mais documentos para ter o “valuation” atualizado da companhia na tentativa de apurar o que teria mudado no período.

A CJ Cheiljedang Corporation, por sua vez, teria questionado a Bunge se esta estava desacreditando a empresa. Então, desistiu do negócio e divulgou, por meio do fato relevante, que optou por não finalizar a venda.

A transação entre Bunge e CJ chegou a ser apreciada e autorizada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômico (Cade), que deu sinal verde ao negócio em junho do ano passado.

Um mês antes, a Bunge tinha obtido aprovação do Cade em outro caso, o da aquisição da Viterra junto à suíça Glencore, por um valor estimado em US$ 18 bilhões. Esta transação ainda está pendente por conta da necessidade de avaliações em outros mercados relevantes.

A companhia conseguiu respostas positivas de Estados Unidos, Canadá (com condicionantes) e União Europeia, mas ainda esbarra na demora da apreciação do negócio pelas autoridades chinesas.

A avaliação de analistas é que o caso estaria sendo postergado em função das tensões comerciais entre Estados Unidos e China, que cresceram após a posse do presidente Donald Trump.

Empresa modelo

Se a CJ Selecta perdeu valor de mercado nos últimos dois anos, nos seis anos anteriores ao anúncio do acordo com a Bunge, a valorização foi expressiva.

Nascida em 1984 como uma trading de sementes de soja em Goiás, a Sementes Selecta inaugurou a planta de esmagamento em Araguari em 2009 e teve o controle vendido ao grupo chileno Corpesca em 2013.

Em agosto de 2017, a empresa foi adquirida pela CJ Cheiljedang Corporation. À época, o valor pago foi de R$ 450 milhões por 60% da fatia que pertencia à empresa chilena Corpesca, com opção de aquisição de mais 10% em dois anos, e outros 30% de acionistas minoritários.

A opção foi exercida em 2019, quando começaram as operações de fertilizantes na unidade industrial mineira. No ano seguinte, a unidade de etanol de melaço de soja entrou em operação.

Mas em 2023, com alto endividamento, a CJ Cheiljedang Corporation - com ramificações em vários segmentos econômicos, desde alimentar até mídia e entretenimento - enfrentou restrições de acionistas para manter investimentos no negócio de soja.

Decidiu negociá-lo com a Bunge por um valor quase quatro vezes maior do que pagou pelo negócio.

Com sede em Uberlândia (MG), unidade industrial de processamento e produção de etanol a partir do melaço de soja em Araguari (MG) e filiais em Catalão (GO), Rio Verde (GO), Unaí (MG) e Primavera do Leste (MT), a CJ Selecta se especializou na produção de proteínas vegetais de alto valor agregado, com linhas distintas para o processamento da oleaginosa transgênica e não-transgênica.

Por ser uma empresa de capital fechada, a CJ Selecta não divulga publicamente seus números. Na ocasião do anúncio do acordo para a venda para a Bunge, a informação divulgada falava da receita de 2022, que ficou em US$ 850 milhões (o equivalente na época, a R$ 3,4 bilhões).

Também naquele momento, a capacidade de processamento declarada era de 730 mil toneladas anuais. Em entrevista concedida ao AgFeed pouco antes do anúncio do negócio com a Bunge, o então CFO da CJ Selecta, Vinicius Melo, afirmou que a empresa já operava no seu limite e que possuía um plano de expansão de 20% aprovado pela matriz, na Coreia.

Entretanto, segundo Melo, esses planos ficaram represados, o que era interpretado pelo mercado como um indicativo de que grupo coreano estaria negociando a companhia, como de fato ocorreu.

A justificativa para a venda, então, foi de que o CJ Cheiljedang iria priorizar investimento em sua divisão de produtos biodegradáveis.

Agora, com o restabelecimento do controle, os coreanos devem rever seus planos para a CJ Selecta e provavelmente os tratará com a mesma discrição com que informou a dissolução do negócio com a Bunge.

Passado quase um mês da publicação do fato relevante na Coreia, até mesmo antigos fornecedores da CJ Selecta, ouvidos pelo AgFeed, afirmavam não saber do fim do acordo e estarem surpresos.

Um deles, que confirmou ter se relacionado com executivos indicados pela Bunge já atuando na companhia, não deixou de apontar um lado positivo na notícia. “Para nós, quanto menos concentração, melhor”.

Com reportagem de Gustavo Lustosa.

Resumo

  • Recisão do contrato, firmado entre as empresas em outubro de 2023, foi comunicado de forma discreta ás autoridades regulatórias
  • As duas empresas afirmam ter tido a iniciativa de exercer o direito de rescindir a transação
  • Sediada em Uberlândia (MG), CJ Selecta é a maior exportadora de concentrado proteico de soja, um farelo de soja com alta concentração de proteína e alto valor agregado