Na próxima quarta-feira, 19 de junho, um novo capítulo pode ser escrito em uma das mais longas e mais emblemáticas batalhas jurídicas do agronegócio brasileiro.

Em uma assembleia online, com a participação prevista de dezenas de grandes grupos do setor e realizada após decisão da justiça do Mato Grosso, credores do produtor José Pupin – que no estado chegou a ser conhecido, no início da década passada, como “rei do algodão” – decidirão se aceitam uma nova versão “aditivada” do plano de recuperação judicial do empresário rural, que pode dar uma solução definitiva a um processo que já dura quase uma década.

Além da longevidade e de um passivo avaliado, na época de seu início, em mais de R$ 1, 3 bilhão, o caso de Pupim tem uma relevância histórica no capítulo das renegociações de dívidas de agricultores e pecuaristas no País.

Em sua longa tramitação entre diferentes cortes, de diversas instâncias, foi a partir dele que o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu, em 2019, a jurisprudência que consolidou a tese de que produtores rurais têm o direito de incluir todas as suas dívidas, mesmo as contraídas quando seus negócios eram realizados como pessoas físicas, nos processos de recuperação judicial.

A decisão contribuiu inclusive para que, em 2020, essa tese fosse abarcada pela legislação que rege as RJs.

“A RJ de José Pupin foi o que chamamos de leading case, cujos efeitos ajudam a pacificar uma matéria e extinguir dúvidas que chegavam em diferentes processos”, afirma Camila Somadossi, advogada responsável pelo caso e sócia do escritório paulista Finocchio & Ustra, que representa o produtor ao longo de todo o processo.

Procurado pelo AgFeed, José Pupin preferiu não comentar o caso, dizendo que só se manifesta através dos avogados.

Suas dificuldades vêm se acumulando há mais de uma década, depois de anos de investimento e crescimento, que o transformaram em um dos maiores produtores de algodão do País, com mais de 100 mil hectares cultivados, além de atuar na produção de grãos, pecuária e bioenergia.

Antes mesmo de recorrer à RJ pela primeira vez, em 2014 o empresário já havia tido uma de suas fazendas – uma área com 45 mil hectares no município de Paranatinga (MT), tomada na execução de garantias de um empréstimo de US$ 100 milhões.

No ano seguinte, em 2015, o produtor entrou com o primeiro pedido de recuperação judicial junto à comarca de Campo Verde, no Mato Grosso. Feito poucos dias depois da constituição da José Pupin Agropecuária, o pedido foi deferido, mas depois suspenso pelo Tribunal de Justiça do estado, sob a alegação de que só poderiam recorrer ao instrumento empresas com mais de dois anos de inscrição na junta comercial.

Diante do impasse, os credores buscaram formas de receber os valores devidos pelo produtor e, em 2016, outra área sua, com cerca de 3,7 mil hectares na região metropolitana de Cuiabá, foi a leilão, arrematada por R$ 73,5 milhões.

Os capítulos da saga jurídica foram se sucedendo. Somente um ano depois, em 2017, atendendo a nova solicitação dos advogados de Pupin, o processo foi redistribuído para a 1ª Vara Cível de Campo Verde, que autorizou a inclusão de todos os débitos existentes no quadro geral de credores.

A decisão deu origem, então, a nova discussão em torno das dívidas contraídas antes da constituição da empresa. Até 2015, Pupin e a esposa, Vera Lúcia, exerciam a atividade agropecuária como pessoa física – o que é permitido por lei e prática comum entre produtores rurais brasileiros. Quase a totalidade do passivo bilionário acumulado por eles vem desse período.

Alguns dos principais credores apresentaram recurso, acatado no Tribunal de Justiça de Mato Grosso, que determinou a exclusão das dívidas anteriores à formalização da empresa.

“O TJ havia desconsiderado o fato de que o patrimônio do empresário individual, como era o caso, confunde-se com o patrimônio da própria empresa” afirma a advogada.

Vitória sem paz

O embate jurídico escalou instâncias até chegar ao STJ, que, em novembro de 2019, acatou a tese dos advogados de Pupin. “O fato de o produtor atuar como pessoa física não significa que ele não seja empresário”, afirmou, na ocasião, José Luis Finnochio Junior, sócio da firma.

A vitória não garantiu, entretanto, paz e prosperidade ao produtor. Nos dois anos em que a disputa se arrastou nos tribunais, alguns de seus principais credores conseguiram acessar bens de Pupin através de efeitos suspensivos obtidos dentro do processo de recuperação judicial.

“Neste interim, o desenvolvimento das atividades de José Pupin foi severamente prejudicado pela instabilidade processual enfrentada” relata Camila. As demandas dos credores levaram à perda de algumas propriedades e de safras.

“E, principalmente, à necessidade de tomada de novos créditos a altos juros para enfrentar os frequentes acessos ao caixa pelos credores e, assim, garantir a continuidade da atividade empresarial”, prossegue a advogada.

Isso, paralelamente à discussão do Plano de Recuperação Judicial da empresa, aprovado por assembleia de credores em novembro de 2018.

Novos credores, novas dívidas, novo recurso

As dificuldades operacionais e a tomada de novos financiamentos a custos altos fizeram com que Pupin acumulasse novas dívidas e, nos últimos anos, deixasse de cumprir com parte dos compromissos assumidos nesse plano.

Os débitos desse período mais recente formaram uma nova lista de pendências judiciais, não sujeitas a recuperação judicial – tecnicamente chamadas de endividamento pós-concursal –, que já somam, segundo os próprios representantes de Pupin, valor superior a R$ 1 bilhão.

De acordo com Camila Somadossi, essas dívidas, somadas a “conjecturas de mercado turbulentas enfrentadas desde meados de 2023”, passaram a prejudicar ainda mais a capacidade financeira de Pupin, embora a empresa tenha preservada a sua capacidade produtiva.

Em função disso, nos últimos meses os representantes do produtor retomaram as negociações com credores em busca de uma solução para uma nova equalização das dívidas. O caminho encontrado foi a apresentação de um aditivo ao plano de recuperação judicial aprovado em 2018.

Apresentada à vara cível de Campo Verde, a proposta de que esse aditivo fosse apreciado por uma assembleia de credores foi indeferida. Mais uma vez Pupin recorreu ao TJ.

O AgFeed teve acesso ao acórdão da Quarta Câmara de Direito Privado do tribunal, datada de 25 de abril passado, que acolheu o requerimento da José Pupin Agropecuária e autorizou a realização da assembleia para votação da nova versão do plano.

Nele, o desembargador Guiomar Teodoro Borges, relator do caso, detalha os argumentos contrários de credores como os bancos John Deere, Votorantim e Banco do Brasil e a indústria de defensivos Adama, que defendem a impugnação do recurso por entenderem que o produtor não cumpriu o acordo original e não teria capacidade de assumir novos compromissos.

Em seu voto, no entanto, o magistrado preferiu não entrar no mérito da capacidade financeira do empresário, centrando a decisão na autonomia dos credores em deliberar sobre o caso.

“Ainda que haja notícia de que os recuperandos acham-se com alguma inadimplência pontual em relação a execução do plano originalmente aprovado, tal fato não constitui propriamente óbice suficiente a inibir a eventual proposta de realinhamento do plano se tal pedido vem secundado por parcela significativa dos credores”, diz o voto.

Desmobilização de ativos

Cerca de seis dezenas de credores receberam, no final de maio, um documento com o edital de convocação da assembleia da próxima sexta-feira.

No documento estão nomeados, entre pessoas físicas e grupos empresariais, representantes das diversas etapas do processo produtivo, demonstrando como a inadimplência do produtor rural impactou a cadeia do agronegócio.

Estão ali, entre outros, bancos (Votorantim, John Deere, Santander, Rabobank, ABC Brasil, Cargilll, BB e Eximbank USA), sementeiras (Girassol Agrícola e Nidera), tradings(Cargill), fabricantes de fertilizantes (Mosaic, ICL) e de defensivos (FMC, Iharabras, Bayer, Arysta, Adama e Syngenta).

O aditivo que será apreciado propõe incorporar as dívidas mais recentes ( extraconcursais) ao plano original. Segundo descrito no acórdão, os advogados de Pupin informam, no processo, que “o aditivo prevê a venda do patrimônio, bens rurais, imóveis urbanos, bens intangíveis e/ou direitos, até o limite necessário para que não haja o esvaziamento da atividade empresarial, a fim de que o produto da venda seja destinado a quitação dos débitos concursais ou não.”

A advogada Camila Somadossi confirma ao AgFeed que a proposta do grupo é promover uma “ampla desmobilização de ativos”.

Ou seja, a base do plano passará a será repactuar as dívidas, com rediscussão de deságios, e fazer uma proposta de pagamentos que utilize, em grande parte, os recursos obtidos com a venda de uma porção significativa do patrimônio de Pupin, que vive em permanente risco.

Ações de credores buscando receber seus créditos são frequentes. Há poucas semanas, por exemplo, três propriedades do grupo – as fazendas Lima, Marabá e Ouro Verde II – foram penhoradas pela 10ª Vara Cível de Cuiabá, para garantir o pagamento de R$ 16,4 milhões à Kripta Fundo de investimentos.

A penhora foi depois suspensa por outra decisão, essa da 3ª Vara Cível de Cuiabá, que entendeu que uma eventual penhora só poderia ser tomada no âmbito do processo de recuperação judicial.

Com base nas negociações feitas nos últimos meses, os representantes de Pupin dizem estar confiantes de que a votação aprovará o aditivo. Muitos dos credores, afirma Camila Somadossi, já teriam indicado aceitação ao novo plano, entendendo a importância de preservar as atividades da empresa.

Asim, ela espera que a assembleia se converta em “um ato solene para formalização dessa nova etapa".