Tudo começou em 2004, com apenas 5 mil pares de tênis. Em três dias, 3,5 mil modelos foram vendidos, apenas na base do boca a boca. Hoje, são mais de 3,5 milhões de unidades por ano - sem campanhas de publicidade.
A marca francesa Vert, que em seu país de origem se chama Veja, é um fenômeno de mercado. Apostando em um modelo de comunicação direta, baseada na divulgação de sua relação com os produtores das matérias-primas usadas em seus calçados, a grife se tornou ícone do consumo responsável, ganhou adeptos famosos e se espalhou de maneira orgânica pelo mundo.
Nessa história de sucesso, agricultores e cooperativas brasileiras têm papel central. Se a sede do grupo é em Paris, seus produtos são, em grande parte “fabriqué au Brésil”.
Com matérias-primas e fabricação brasileira, que levam em conta o meio ambiente e o desenvolvimento social e econômico dos agricultores, as vendas têm aumentado pelo menos 50% ao ano.
O desafio da Vert atualmente é o de adaptar sua produção, mantendo o mesmo modelo de comércio justo e sustentável que foi o motor de sua criação, à demanda que continua crescente.
“Quando começamos nossa aventura em 2004, não tínhamos dinheiro para nada. Iniciamos com 27 produtores de algodão orgânico no Ceará e na época compramos duas toneladas de matéria-prima”, disse ao Agfeed, em português, o francês Sébastien Kopp, co-fundador da Vert com François Ghislain Morillion.
A cadeia de fornecimento da Vert no Brasil envolve hoje 1,2 mil produtores, com 277 toneladas de algodão agroecológico compradas diretamente de associações de agricultores para a confecção da lona.
Os preços definidos previamente são, em média, 25% superiores aos do mercado.
A relação com as cadeias produtivas é o DNA da marca, afirma Kopp. “Os preços não dependem da bolsa de Chicago”, frisa o fundador. A empresa paga adiantado em média 40% da safra aos agricultores.
O trabalho vai além do algodão orgânico: eles também plantam linhas de feijão, batata-doce, milho e gergelim na mesma área para regenerar o solo, que recebe pouca chuva.
“A terra árida virou fértil”, ressalta Kopp, acrescentando que, além do aspecto ambiental, há o lado social, ligado à agricultura familiar.
Por conta de secas que o Brasil tem sofrido nos últimos anos, além de pragas, como o bicudo, a Veja passou a comprar, desde 2018, também algodão no Peru, junto a 450 produtores.
Já existia no país uma fábrica de descaroçamento. O Brasil representa atualmente metade do algodão adquirido pela empresa, diz Kopp.
Os solados dos tênis são feitos com borracha reciclada e sintética, mas também nativa da Amazônia (cerca de 40% do material utilizado), produzida por mais de 1,2 mil pequenos produtores familiares.
Os seringueiros extraem o látex da mesma maneira utilizada há mais de um século, realizando uma “sangria” na árvore que permite o escoamento da seiva.
O mesmo sistema de comércio justo implementado no Ceará é aplicado na Amazônia: os seringueiros recebem, segundo Kopp, até cinco vezes mais do que os preços de mercado.
Os valores incluem um bônus de qualidade e serviços socioambientais. Os contratos são firmados diretamente com cooperativas de seringueiros um ano antes, o que garante visibilidade em relação à produção, ressalta o co-fundador da marca.
O grande impulso da Veja ocorreu a partir de 2012, pouco antes do início da distribuição da Vert no Brasil, em 2013.
Apesar do crescimento gigantesco das vendas desde então, os fundadores querem manter o mesmo espírito do projeto imaginado em 2004, que tem como pilares a preservação ambiental e a garantia de uma renda justa e dos direitos sociais dos produtores.
Naquela época, na faixa dos 20 anos, descontentes com o início de carreira em bancos nos Estados Unidos, eles decidiram criar uma organização não governamental que realizava auditorias de fornecedores asiáticos de empresas de moda.
Mas após ver as condições de moradia de operários chineses que fabricavam para uma marca francesa, eles constataram a impossibilidade de controlar cadeias de produção na China no segmento da moda.
Veio então a ideia de criar um produto emblemático de sua geração: o tênis. Mas nesse segmento, segundo eles, tudo precisava ser reinventado. “Eles eram fabricados em condições sociais abomináveis e com os materiais mais poluentes”, afirma Kopp.
Eles haviam visitado o Brasil em uma dessas auditorias para empresas de moda e pensaram imediatamente no País para o seu projeto. É certo que a palavra Amazônia sempre inspira os consumidores europeus.
Eles aprenderam a falar português no campo, junto com os agricultores, quando lançaram a empresa. “Passamos muito tempo com eles” diz Kopp.
O objetivo, diz ele, era ir “até o final do caminho”, ou seja, seguir o caminho das matérias-primas até o final. “Ninguém faz isso”, afirma.
A ideia era mostrar que é possível fabricar tênis que “respeitam a natureza e as pessoas, sem fazer greenwashing”, ou seja, uma imagem falsa de sustentabilidade por parte de uma empresa.
No caso do couro brasileiro, foi um longo périplo, iniciado em 2008, até encontrar parceiros, no Rio Grande do Sul e no Uruguai. Isso porque existe uma dificuldade de rastreabilidade do material, já que o gado geralmente passa por diferentes fazendas até o frigorífico e o couro representa apenas 2% ou 3% do valor do animal.
Para reduzir a pegada ecológica dos modelos em couro, em razão das emissões produzidas pelo gado, a Veja só exporta seus produtos do Brasil por navio e “quando ele está cheio”, destaca Kopp.
“Foi bem mais difícil no início. Agora todo mundo quer trabalhar conosco” diz ele, ressaltando que os fundadores não têm investidores por receio de mudar o projeto da marca.
Sem publicidade nem “embaixadores”, a Veja, que realiza apenas dois ou três lançamentos por ano. Na França, os preços dos modelos vão de 120 a 180 euros (de pouco mais de R$ 600 a quase R$ 1 mil).
É certo que a publicação de fotos de celebridades na imprensa e nas redes sociais usando seus modelos, como a duquesa Meghan Markle, ajudaram a impulsionar as vendas.
A empresa informa não realizar operações comerciais com pessoas famosas, como geralmente fazem as grifes de moda junto a artistas e influenciadores de peso.
O faturamento da Veja passou de 180 milhões de euros em 2021 para 260 milhões de euros no ano passado. Atualmente, 30% das vendas são online.
A companhia emprega 500 pessoas, sendo 250 na sede em Paris, inaugurada no final do ano passado em uma antiga gráfica do Partido Comunista francês.
O prédio com a parte interna toda branca é pé direito de vários metros, onde também há um show-room, ganhou uma decoração minimalista como os tênis da marca. As salas de reuniões têm nomes de cidades brasileiras.
O Brasil não é apenas o país que fornece matéria-prima e onde os modelos são produzidos, em duas fábricas, uma em Quixeramobim, no Ceará, e outra em Porto Alegre.
O mercado brasileiro já é o segundo maior da marca, após o dos Estados Unidos. Na sequência vêm países europeus: Reino Unido, Itália, França, Espanha e Alemanha.
A empresa tem apenas cinco lojas, sendo três delas na França (duas em Paris). Seus modelos também podem ser encontrados em lojas de departamentos como a Galeries Lafayette.
Há um projeto, em fase bem avançada, de inauguração de uma unidade em Madri. A possibilidade de uma loja no Brasil também está em discussão. A Veja também estuda a eventual mudança de nome da marca Vert para Veja no país, diz Kopp.
Atualmente, para lidar com o forte aumento constante das vendas, a Veja também estuda possibilidades de fábricas em outros países para complementar a produção brasileira. Um deles seria Portugal.
“Crescemos bastante, mas não temos pressa. Começamos com uma produção pequena. Vamos passo a passo”, diz o co-fundador da marca de tênis sobre a necessidade de adaptar a produção à corrida dos consumidores mundo afora pelos seus produtos.