Bagaço de frutas como a laranja podem ter um destino inusitado: virar adubo orgânico e, quem diria, contribuir para a produção de novos alimentos no campo.

Mas a história não é tão simples quanto parece. Provar que o resíduo sólido foi transformado em um produto e realmente foi parar na lavoura é um processo trabalhoso.

As indústrias geram os resíduos, caminhões levam o material até empresas de gestão de efluentes, os materiais são pesados, passam por um processo industrial de compostagem até serem transformados em adubo.

Para começar a resolver esse problema, a greentech Carrot.eco e a empresa de gestão de resíduos Tera Ambiental firmaram uma parceria para o desenvolvimento do primeiro adubo orgânico rastreado por inteligência artificial.

A rastreabilidade ajuda a qualificar o produto vendido pela Tera.

“Para você saber se aquele adubo é orgânico, precisa saber, no momento da compostagem, qual foi a temperatura e oxigenação dele no momento da leira”, afirma Marcelo Doria, fundador e COO da Carrot.

“Para a Tera, essa comprovação vai diferenciar o produto deles no mercado na hora de vender para os seus clientes”.

Mas a ideia das empresas não é apenas rastrear a produção, algo que a Tera inclusive já faz, mas também reverter todo o processo em créditos ambientais, com o objetivo de estimular a circularidade.

“No nosso processo, nós temos um sistema de gestão de recebimento de resíduos orgânicos que foi integrado ao software da Carrot”, explica Lívia Baldo, diretora comercial da Tera Ambiental.

“Com essa integração, trazemos processo único de comprovação de que todo o resíduo orgânico foi realmente transformado em fertilizante. Comprovamos desde o momento em que o resíduo entrou, quanto o processo de saída, a partir de dados imutáveis”.

Com sede em Jundiaí, cidade da região metropolitana de São Paulo, a Tera atua há 25 anos no processamento e tratamento de resíduos industriais.

A companhia é contratada por empresas da região para realizar o tratamento de efluentes — resíduos gerados por indústrias, atividades agrícolas ou residências, descartados no meio ambiente sob a forma de líquidos ou gases.

Uma das clientes da Tera para o tratamento de efluentes é a Coca-Cola Femsa, que remete refrigerantes e sucos que não passaram pelos padrões de qualidade de envase, líquidos que seriam descartados pela companhia de bebidas.

O refrigerante por si só não pode ser rastreado, por ser um efluente que passa no processo de tratamento por lagoas de decantação e que vai para o Rio Jundiaí.

Mas esse processo também gera um resíduo sólido que pode ser rastreado e é o lodo, e que é utilizado como matéria-prima para a fabricação de fertilizantes. Com isso, a Tera obtém 30 mil toneladas por ano de um produto que pode ser utilizado em diversas culturas como cana-de-açúcar, trigo e frutas.

Mas hoje não basta apenas promover a circularidade dos materiais. É preciso rastrear todo o processo, da origem do resíduo ao produto final, comprovando que o resíduo orgânico de fato foi compostado e virou adubo, missão que está desenvolvida pela Carrot.

“O mercado do clima é o mais exigente do mundo. Você tem que conseguir comprovar as coisas”, afirma Ian McKee, CEO e cofundador da startup.

Criada em 2023 por McKee e por Marcelo Doria, a startup modelou uma tecnologia que utiliza inteligência artificial e machine learning para garantir que o processo de transformação de resíduos está conforme.

São mais de 40 regras avaliadas pela Carrot, que reúne e organiza informações díspares entre si, como dados de geolocalização da coleta, pesagem de resíduos na origem, modelo e volume do caminhão que está transformando o resíduo e dados governamentais obrigatórios de transporte dos materiais.

“Para se plugar na nossa plataforma, a Tera foi auditada e homologada por um auditor de terceira parte, que visitou a empresa para entender a qualidade do trabalho, a documentação, qual era o volume, de onde vinha aquelas massas de resíduos”, afirma Marcelo Doria.

O negócio da Carrot é fazer a auditoria de supply chain e a certificação da circularidade dos resíduos.

A startup tokeniza os dados, estima a quantidade de gás metano – que é produzido pela decomposição da matéria orgânica e um dos mais poluentes do mundo – que deixa de ser emitida na atmosfera com o processo de compostagem e, a partir disso, gera créditos de reciclagem, que é um comprovante de destinação correta e que pode ser usado como forma de compensação por empresas que não conseguem reciclar todos os seus resíduos.

O crédito de reciclagem é semelhante ao crédito de carbono, mas os dois conceitos não são iguais. No caso do crédito de carbono, as empresas negociam seus estoques de carbono para atingir metas de descarbonização.

Já os créditos de reciclagem, instrumento criado pelo governo federal há três anos, permitem que uma companhia adquira créditos gerados por recicladores, como forma de adequação à Política Nacional de Resíduos Sólidos, sem a necessidade de que a empresa tenha um programa interno de logística reversa.

“A gente prova de onde vieram as massas de resíduos, de onde vêm os produtos e para onde eles vão. Criamos os ativos ambientais em cima disso”, explica Ian McKee, o CEO.

Todos os dados são gravados em blockchain, registro digital em que as informações são distribuídas em blocos interconectados e que não pode ser alterado.

“A gente vai gravando em blockchain todo o código que foi gerado desde o momento da coleta, todo o histórico de custódia daquela massa até garantir que foi compostado”, afirma Marcelo Doria.

“Com isso, você comprova que o adubo é orgânico e, ao mesmo tempo, o ganho ambiental vai para dentro de um crédito, que está começando a ser vendido no mercado e que a gente usa para redistribuir valor para toda a cadeia”, complementa Doria.

No momento da venda, que é feita em balcão, a Carrot fica com 20% do valor recebido pela transação, enquanto que coletores, transportadores e composteiros dividem o restante, em porcentagens que variam de 1% a 20%, a depender da localidade e das condições do procedimento.

Ao invés de validar seu processo de checagem por certificadoras como a Verra, a maior do mundo nesse segmento, a startup optou por um caminho próprio para a certificação dos créditos.

A Carrot utiliza metodologias do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, criado pelo Protocolo de Kyoto, e está trabalhando com um auditor terceirizado, a consultoria Bureau Veritas, para validar as informações – processo que foi sendo feito ao longo do último ano.

“Quando se fala de crédito de carbono, você vê auditores verificando de 1% a 3% dos dados. Nós verificamos 100% dos dados. Não existe nada no mundo hoje que verifique tantas informações para garantir a rastreabilidade de ativos”, diz McKee.

Como o processo de certificação de projetos de carbono, em geral, é moroso, a intenção da startup também é potencializar esse processo de rastreabilidade com o uso de inteligência artificial.

“O próximo desafio é pegar e usar a inteligência artificial para fazer de novo tudo isso, só que em vez de um ano, fazer em um mês”, afirma Marcelo Doria.

“A gente começou dentro do padrão tradicional, usando as metodologias da ONU, e fizemos o que eles fazem. Agora estamos num processo de entender: o que dá para a gente fazer do que jeito que eles fazem, usando tecnologia, para ser mais eficiente ou até ter mais informação, que traga mais valor?”, complementa.

Até aqui, a Carrot gerou 40 mil créditos para a Tera, que agora estão em fase de comercialização. Como o projeto ainda é experimental, nem toda a produção da empresa está sendo rastreada neste momento.

Hoje, segundo Lívia Baldo, diretora comercial da empresa, 40% do volume de fertilizantes produzido pela empresa já está certificado. A ideia é chegar em algum momento aos 100%.

“Dependemos de os geradores aceitarem fazer essa integração, pois os dados são deles”, afirma a diretora comercial da Tera.