Os frigoríficos são o primeiro e o maior elo da cadeia agroindustrial da carne. Eles abatem e fazem o primeiro processamento dos animais oriundos da atividade pecuária. Cerca de 95% de seu faturamento está efetivamente relacionado à produção de carnes.

Há, no entanto, outras indústrias atentas ao que eles fazem e com os processos envolvidos nos outros 5% dos negócios. E uma delas é a da moda.

Pressionadas pelos consumidores, que exigem delas o uso de materiais com baixo impacto ambiental, grifes nacionais e internacionais têm se aproximado do setor em busca de soluções que garantam a boa procedência do couro utilizado em suas roupas, bolsas e calçados.

Esse movimento tem levado representantes de marcas como a brasileira Arezzo, a alemã Adidas e a sueca H&M a pontos distantes do interior do Brasil. Em verdadeiras expedições ao coração da pecuária brasileira, eles procuram entender melhor os processos de produção e como se certificar de que o couro que adquirem pode ser rotulado como sustentável.

Uma dessas experiências ocorreu na semana passada na região de Rio Maria e Xinguara, no sul do Pará. Cerca de 40 pessoas, enviadas por companhias brasileiras e de países como Estados Unidos, Itália, França e Japão, conheceram in loco o trabalho desenvolvido pela indústria do couro no Pará e pelo Frigorífico Rio Maria.

Em julho passado, o empresário e pecuarista Roberto Paulinelli, dono do Rio Maria, e outras empresas parceiras, incluindo o curtume gaúcho Durlicouros e o Banco Itaú, lançaram o Projeto de Rastreabilidade Individual e Monitoramento dos Indiretos (PRIMI).

Como o nome indica, o objetivo da iniciativa é vencer um dos principais desafios da pecuária: garantir a procedência dos animais desde o seu nascimento.

Para isso, é necessário contar com a adesão dos chamados fornecedores indiretos, que estão na ponta inicial da cadeia, muitas vezes sem nenhum monitoramento. A ideia inicial era distribuir gratuitamente entre os pecuaristas cadastrados brincos de identificação para os animais.

A previsão inicial seria ter cinco fazendas e cerca de 20 mil brincos distribuídos, mas segundo Ivens Domingos, gerente sênior de Sustentabilidade da Durlicouros, já há mais de 40 fazendas certificadas e 113 mil brincos solicitados.

“O mundo todo quer saber a origem dos animais e do couro comercializado no Brasil. Então, estamos fazendo a nossa parte”, disse Paulinelli. A convite da Durlicouros, a comitiva internacional, - que tinha nomes de empresas como Adidas e Arezzo&Co, de vestuário e calçados, além de McDonalds e indústrias de alimentos - conheceu os processos de abate no frigorífico e de brincagem numa fazenda local.

“Através dessas visitas desse pessoal, vai abrir um novo leque de negociações para o couro brasileiro. E não é só Rio Maria, no Pará, ou para a Durlicouros, isso é um negócio para o Brasil. Eles estão vendo que a gente trabalha sério, faz a coisa certa e eles ficaram muito impressionados com o trabalho que a gente faz”, ressaltou o pecuarista, que é mineiro de Bambuí e mora no Pará há mais de 20 anos.

Comitiva de visitantes de empresas nacionais e estrangeiras na planta da Durlicouros em Xinguara (PA)

Entre os visitantes estava Fernanda Bock, coordenadora de Sustentabilidade da Arezzo&Co. Segundo ela, a companhia iniciou no ano passado um projeto com a intenção de atingir 20% dos sapatos rastreados até o frigorífico, como forma de entender essa cadeia.

“Nós conseguimos atingir mais de 23%”, contou Fernanda ao AgFeed. “E a gente tem o grande desafio de chegar até as fazendas de cria, recria e engorda. A gente sabe que é um desafio hoje os frigoríficos conseguirem essa rastreabilidade, mas isso é um trabalho colaborativo”.

De acordo com a executiva, o compromisso da empresa é ter, até 2030, toda a origem do nosso couro mapeada na fazenda de cria. “Queremos garantir que o nosso couro não esteja relacionado com desmatamento das florestas, dos biomas, com áreas de povos originários”, diz.

A Arezzo participa de entidades que atuam nesse sentido e é signatária do compromisso Deforestation-free Call to Action. Para ela, iniciativas como essa ajudam na união de esforços entre os diversos elos da cadeia, que é “muito longa, muito complexa e com muitos atores”.

“Então, se a gente não trabalha junto e não tiver um projeto como esse que a gente está vendo aqui hoje, realmente o nosso caminho vai ser muito mais difícil”, destacou.

Fernanda Bock (à esq.), da Arezzo&Co., na visita ao curtume da Durlicouros

Um dos anfitriões na visita, Evandro Luís Durli, sócio da Durlicouros, afirma que “o grande desafio que todos estão atrás é dos indiretos, ou seja, onde o bezerro nasceu e onde cresceu”.

A empresa, fundada em Erechim (RS), tem 8 unidades no Brasil e uma no Paraguai e hoje faz de 22 a 25 mil couros por dia. No Pará há 18 anos – a unidade de Xinguara produz 5,5 mil peças diárias –, já faz a rastreabilidade do fornecedor direto (fazendas que cria e recria), mas sabe que precisa ir além.

“A partir da rastreabilidade dos indiretos, nós vamos pagar melhor o preço do couro. Não só pelo animal rastreado, mas pelo animal que tem menos marcas de fogo”, diz.

Segundo Durli, há uma depreciação de 35% no valor das peças por causa do excesso de marcas de fogo. “Se o pecuarista marcar certo, todo mundo ganhará vendendo esse produto mais caro”, afirmou.

Uma das preocupações dos exportadores de couro é a entrada, em vigor, das novas regras da União Europeia que não permitirão a aquisição, pelas empresas lá instaladas, de produtos que não estejam totalmente rastreados.

“O que a gente está fazendo hoje, principalmente aqui no Pará, é trabalhando nesse sentido”, disse Durli. “O objetivo de trazer representantes dessas diversas empresas aqui para mostrar para eles que a gente está fazendo a coisa certa, principalmente aqui no Pará, porque muitas vezes as pessoas têm um estigma de que o Pará e a Amazônia estão destruindo o meio ambiente”, destacou.

Créditos de couro sustentável

As exportações brasileiras de couro ainda são tímidas em relação ao potencial do rebanho nacional. No ano passado, que superaram a marca de US$ 1,2 bilhão, com a negociação de 354,5 mil toneladas de peles, ou 140,7 milhões de m2, conforme números da Secex divulgados pelo Centro de Indústrias de Curtumes do Brasil (CICB).

O baixo valor das peças, somado ao custo para criar estruturas que, nas plantas, segreguem as peles de animais rastreados dos demais, faz com que muitos frigoríficos não se interessem pelo produto, que acaba descartado. Assim, ao invés de gerar riqueza, gera resíduos e impactos ambientais.

Quebrar esse círculo vicioso é um empenho que exige, muitas vezes, criatividade. Outra comitiva visitou o Mato Grosso em outubro passado, conhecendo propriedades rurais que participam de um projeto inovador nesse sentido.

Cerca de 30 visitantes estrangeiros, entre eles representantes de marcas globais integrantes da Textile Exchange – organização global sem fins lucrativos direcionada a gerar impactos positivos em temas ligados às mudanças climáticas entre as principais empresas têxteis e de moda -- estiveram duas fazendas e uma unidade industrial, com frigorífico e curtume.

Imagem aérea de fazenda integrante do projeto de créditos de couro sustentável no Mato Grosso (Foto: Produzindo Certo)

As propriedades fazem parte de um projeto inédito desenvolvido pelo programa Leather Impact Accelerator, da organização, e a empresa brasileira Produzindo Certo.

Tendo como exemplo a lógica do mercado de crédito de carbono, eles elaboraram um modelo de geração de créditos de couro sustentável, como forma de incentivar pecuaristas a adotarem compromissos de adequação socioambiental, seguindo um protocolo elaborado especificamente para o projeto.

Assim, o produtor que demonstrar estar em conformidade com esse protocolo, sem desmatamento e com bem-estar animal, faz jus a um crédito de couro sustentável, calculado a partir da quantidade de animais que estiveram na fazenda durante o ano.

Esses créditos são adquiridos por marcas parceiras, como a sueca H&M e outras grifes de moda e artigos esportivos, gerando uma remuneração extra ao pecuarista.

“A marca não estará comprando o couro diretamente do produtor, mas o remunerando pela quantidade que necessária para compensar parte do uso de couro na fabricação de seus produtos”, afirma Charton Locks, COO da Produzindo Certo.

O modelo vem sendo testado em propriedades da Amazônia e do Cerrado desde o início do ano, com previsão de durar pelo menos mais dois em fase piloto.

As visitas às fazendas em outubro tinham como objetivo engajar mais empresas nas novas “safras” do projeto. Segundo Locks, a reação positiva dos visitantes estrangeiros indica que ele deve até mesmo crescer.

No primeiro ano, que incluiu quatro propriedades localizadas nos biomas Amazônia e Cerrado, foram gerados quase 100 mil créditos de couro sustentável. “Já foi tudo comercializado”, afirma Locks.