Você já parou para pensar como a segurança alimentar do Brasil depende de estruturas que vão muito além das fazendas e do campo?

Em 2024, durante um evento sobre segurança cibernética no agro, o conceito de "infraestrutura crítica" ganhou destaque. Trata-se de tudo aquilo – físico ou digital – que, se interrompido, pode causar impactos graves na segurança, saúde, economia e até na ordem social.

Países como Estados Unidos, Canadá e membros da União Europeia já reconhecem explicitamente o setor de alimentos e agricultura como parte dessa infraestrutura essencial para a estabilidade nacional.

No Brasil, porém, a produção de alimentos não é formalmente reconhecida como infraestrutura crítica, o que representa um desafio extra para a segurança alimentar do país.

Como o Brasil se compara a outros países?

Veja na tabela abaixo como o Brasil se posiciona em relação a outros países da OCDE quanto ao reconhecimento de setores críticos:

 

A ausência do reconhecimento formal da produção de alimentos como infraestrutura crítica no Brasil se reflete diretamente nas dificuldades que o setor enfrenta para avançar em políticas e agendas estratégicas. Essa lacuna compromete a base de sustentação necessária para o desenvolvimento sustentável do agronegócio brasileiro.

Instabilidade no financiamento da produção

A recente crise envolvendo o Plano Safra 2024/2025 exemplifica essa fragilidade. A suspensão abrupta das linhas de crédito, seguida da liberação emergencial de R$ 4 bilhões, expôs a falta de planejamento estrutural.

O aumento da taxa Selic de 10,75% para 13,25% elevou significativamente os custos de financiamento rural, comprometendo a capacidade de investimento desde pequenos agricultores até grandes corporações.

Crise na pesquisa agropecuária

A Embrapa, principal instituição de pesquisa agropecuária do país, enfrenta uma crise sem precedentes, encerrando 2024 com um déficit de R$ 200 milhões. Atualmente, mais de 90% do orçamento da empresa é destinado ao pagamento de salários, restando recursos insuficientes para pesquisa.

Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura, destaca que a meta é elevar os investimentos em pesquisa da Embrapa para R$ 1 bilhão anuais, mas a realidade atual mostra apenas R$ 317,2 milhões destinados ao custeio de pesquisas em 2025, quando seriam necessários pelo menos R$ 500 milhões.

Déficit na conectividade digital

A transformação digital do campo esbarra na infraestrutura de telecomunicações deficitária. Apenas 23,8% da área disponível para uso agrícola no Brasil possui cobertura 4G ou 5G, concentrada principalmente no Sul e Sudeste.

Segundo Paola Campiello, presidente da ConectarAgro, "muitas áreas rurais estão localizadas em regiões isoladas, com baixa densidade populacional, o que reduz a atratividade econômica para as operadoras expandirem suas redes.

Tramita no Senado o Projeto de Lei 1.069/2024, que busca instituir a Política Nacional de Conectividade no Campo, mas os avanços são lentos diante da urgência das necessidades.

Vulnerabilidades na segurança cibernética

O setor agro também está cada vez mais exposto a ataques cibernéticos. Segundo o Gartner, 30% das organizações de infraestrutura crítica devem sofrer incidentes digitais até 2025. Mas carece de soluções específicas para o setor, como afirma o Nailson Rego. Executivo com mais de 35 anos no agronegócio, ele ressalta que "a gente não tem uma solução da porteira para dentro. O agro tem muitas coisas específicas".

Vagner Christ, da Netfive, alerta que "um ataque bem-sucedido pode interromper as operações de máquinas agrícolas, sistemas de irrigação e até a logística de distribuição, causando prejuízos incalculáveis".

O desafio da dependência de insumos importados

O agronegócio brasileiro é gigante, mas depende fortemente de insumos vindos de fora. Para se ter uma ideia, mais de 85% dos fertilizantes usados no país são importados, sendo que só a Rússia, Belarus e Canadá respondem por 70% desse mercado.

Isso deixa o país vulnerável a crises internacionais, sanções e até guerras, como vimos recentemente. Além disso, máquinas, defensivos e sementes somaram mais de US$ 22 bilhões em importações em 2023, mostrando como nossa indústria ainda é frágil nesse aspecto.

Logística e conectividade: gargalos históricos

O transporte é outro ponto de atenção. Estradas não pavimentadas aumentam em até 30% o custo logístico da soja e portos como o de Santos já operam no limite.

A pandemia escancarou esses problemas: atrasos na liberação de contêineres causaram prejuízos de bilhões em carnes não exportadas. Só 40% das propriedades rurais têm acesso à internet de alta velocidade, o que limita o avanço da agricultura de precisão.

Pesquisa e inovação: pilares para a segurança alimentar e soberania

Garantir a segurança alimentar e a soberania nacional passa, necessariamente, pelo investimento contínuo em pesquisa, ciência e inovação. O Brasil anunciou recentemente um investimento de R$ 500 milhões em pesquisas voltadas à segurança alimentar até 2026, por meio do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

Esses recursos visam desenvolver soluções sustentáveis para o combate à fome, fomentar novas tecnologias e fortalecer a agricultura familiar, que é responsável por grande parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros.

Especialistas e cientistas destacam que fortalecer as redes de pesquisa, desenvolver tecnologias locais e promover a inclusão digital são estratégias fundamentais para transformar os sistemas alimentares e torná-los mais resilientes diante de desafios climáticos, sociais e econômicos.

O uso de inovação – como inteligência artificial, ferramentas digitais e tecnologias sociais adaptadas a diferentes biomas – pode elevar a produtividade, garantir o acesso à água e modernizar a produção rural, além de criar soluções para distribuição e comercialização de alimentos.

Cenários geopolíticos e impactos potenciais

Além das questões internas, o Brasil enfrenta barreiras comerciais e tensões internacionais. A União Europeia, por exemplo, discute regras ambientais mais rígidas para importação de produtos agrícolas, o que pode afetar nossas exportações. Conflitos armados e bloqueios em pontos estratégicos, como o Canal de Suez e o Estreito de Ormuz, também podem impactar o fluxo global de insumos e alimentos.

Caminhos para fortalecer a resiliência nacional

O Brasil já começou a reagir. O Plano Nacional de Fertilizantes anunciado em 2022, prevê que metade dos insumos seja produzida aqui até 2050, com investimentos em reservas de potássio e fábricas de fertilizantes. Parcerias com países como Canadá e Rússia buscam diversificar fornecedores e reduzir riscos regionais.

Na logística, o Plano Nacional de Logística prevê R$ 130 bilhões em investimentos até 2030, com destaque para ferrovias, portos automatizados e o uso de blockchain para rastrear cargas. Tudo isso visa tornar o transporte mais eficiente e seguro.

No cenário internacional, o Brasil aposta em diplomacia ativa, negociando acordos com países estratégicos e defendendo a criação de um "Banco de Fertilizantes" no âmbito dos BRICS para evitar crises de abastecimento.

A urgência do reconhecimento estratégico

A ausência do reconhecimento formal da produção de alimentos como infraestrutura crítica no Brasil não é apenas uma questão conceitual – é um obstáculo concreto que afeta todas as decisões estratégicas para o desenvolvimento sustentável do setor.

Sem esse status, o agronegócio fica vulnerável a instabilidades políticas e orçamentárias que comprometem desde o financiamento da produção até os investimentos em pesquisa e inovação.

Garantir a segurança alimentar do Brasil exige uma abordagem integrada: investir em produção nacional de insumos, modernizar a logística, proteger sistemas digitais, fortalecer a diplomacia e, sobretudo, ampliar o investimento em pesquisa e inovação.

Reservas estratégicas de fertilizantes, centros de operações de segurança cibernética, monitoramento climático via satélite e o desenvolvimento de novas tecnologias são algumas das ações já em andamento.

O desafio é grande, mas o Brasil tem potencial para se tornar ainda mais protagonista no cenário global, desde que reconheça formalmente a produção de alimentos como infraestrutura crítica e invista em inovação, resiliência e planejamento de longo prazo. Afinal, a segurança alimentar é, acima de tudo, uma questão de soberania nacional.

Guilherme Soria Bastos Filho é o coordenador do Centro de Estudos em Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGV Agro), atuando como consultor e profissional sênior, por mais de 30 anos, no setor agropecuário nacional.