A partir de decisões do STJ entre 2019 e 2020, produtores rurais passaram a ter o direito de acessar a Recuperação Judicial (RJ) mesmo atuando como pessoa física.
Desde então, o número de pedidos no setor tem aumentado significativamente. O que se tratava um instrumento emergencial, reservado a casos extremos de insolvência, acabou se transformando em uma alternativa recorrente para reestruturar dívidas, muitas vezes causadas por má gestão e decisões precipitadas em ciclos de alta.
Apenas em 2024, o número de RJs no agro saltou 138% em relação ao ano anterior, segundo dados da Serasa Experian, totalizando mais de 1.270 processos, um recorde histórico.
A nova legislação tem refletido uma realidade mais complexa do agronegócio. A recuperação judicial é um mecanismo legal previsto pela legislação brasileira para auxiliar empresas, incluindo produtores rurais, a reorganizar suas finanças e evitar a falência, garantindo a continuidade das operações. Portanto, seu uso deve ser reservado para situações extremas, em que não haja outra alternativa viável.
A utilização excessiva do mecanismo, no entanto, é mais comum e tem raízes profundas. Nos anos de preços recordes das commodities e crédito abundante, produtores expandiram suas operações de forma acelerada, adquirindo terras a preços inflacionados e assumindo dívidas que se tornaram impagáveis com a mudança do cenário econômico, como se o ciclo positivo não fosse terminar.
A combinação de otimismo excessivo com gestão financeira inadequada e acesso fácil ao crédito acabou se mostrando perigoso. A situação foi agravada pela ausência de gestão profissional em propriedades rurais, onde decisões financeiras são tomadas sem planejamento técnico.
Como consequência, a crise se intensificou em 2024, quando a soja e o milho registraram o maior prejuízo em 25 anos, segundo dados do Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada). A queda dos preços, somada à quebra de safra provocada por eventos climáticos, tornou 2023 e 2024 um dos piores períodos da história recente. O produtor que antes tinha sobra de caixa agora mal consegue pagar os custos operacionais.
A recuperação judicial, que deveria ser tida como um último recurso, se transformou em uma forma de alongamento forçado de dívidas, com descontos que chegam a 80% ou 90% do valor original do passivo e prazos extensos, muitas vezes sem a devida correção monetária, criando um ciclo vicioso que prejudica todo o ecossistema do agronegócio.
A reação das instituições financeiras tem sido elevar as taxas de juros e restringir o acesso ao crédito, o que encarece o financiamento e reduz a confiança das revendas, comprometendo a capacidade de planejamento dos produtores, além de pressionar os preços das commodities e causar e fuga de investidores dos Fiagros e fundos agro.
A soma destes fatores causa um risco real da dimunuição do crédito disponível justamente para quem mais precisa dele: os produtores sérios e comprometidos.
Renegociar ainda é o melhor caminho
A solução passa por um tripé: diagnóstico financeiro realista, planejamento de fluxo de caixa e renegociação estruturada com credores.
Muitos produtores, quando orientados, conseguem evitar a RJ ao apresentar sua realidade de forma transparente, negociar garantias, repactuar prazos e até alongar compromissos em 3, 5 ou 7 safras.
É preciso reforçar que a RJ é um processo complexo, oneroso e arriscado. Além dos custos com administradores judiciais e advogados, o produtor perde autonomia, expõe todo seu patrimônio e, muitas vezes, não consegue concluir o processo com sucesso.
Mais do que evitar os períodos difíceis, o verdadeiro diferencial está em como o produtor reage a eles, planejando estratégias mais eficazes para as próximas safras. O aprendizado contínuo é essencial para reduzir a necessidade de recorrer à recuperação judicial, um processo muitas vezes desgastante.
Além disso, é fundamental que o produtor desenvolva a capacidade de reconhecer sinais de dificuldades financeiras antes que a situação se agrave, preparando-se para gerenciar riscos e reestruturar o negócio de forma preventiva.
A principal lição é que gestão se tornou um insumo essencial: não basta ser um excelente produtor se não houver domínio sobre números, projeções de fluxo de caixa e avaliação de riscos haverá vulnerabilidade.
Além disso, a educação financeira precisa ser tratada com urgência, com conteúdos claros e acessíveis que orientem os produtores sobre práticas de gestão e renegociação de dívidas.
Por fim, é indispensável que toda a cadeia produtiva se una - associações, bancos, revendas, fintechs e os próprios produtores - para combater a banalização da Recuperação Judicial, criando alternativas extrajudiciais que sejam, ao mesmo tempo, eficientes e seguras para todos os envolvidos.
Com esse preparo, o produtor passa a ter condições de agir com mais segurança. Ao identificar os sinais de alerta e realizar análises de risco com o apoio de ferramentas especializadas, ele pode buscar alternativas viáveis para reorganizar sua vida financeira mesmo em cenários adversos.
Caso não seja encontrado um equilíbrio, em dois ou três anos poderemos enfrentar uma retração significativa no crédito rural, que será sentido do campo à mesa do consumidor.
Para evitar esse cenário, é necessário adotar uma abordagem multifacetada, que envolva maior rigor na análise dos pedidos de recuperação, programas de educação financeira para produtores e a criação de mecanismos alternativos de negociações de dívidas.
Essas ferramentas são pontos centrais para transformar os desafios do presente em decisões estratégicas para o futuro. Com uma gestão mais consciente, os produtores podem atravessar períodos difíceis e manter a sustentabilidade de seus negócios a longo prazo.
Leonardo Rodovalho é COO da Nagro.