Por Leila Harfuch e Gustavo Dantas Lobo*
Recorrência, intensidade, imprevisibilidade e antagonismo são termos corriqueiros quando se trata dos eventos climáticos catastróficos que vem assolando o produtor rural no Brasil nos últimos anos.
Esse cenário adverso vem suscitando cada vez mais o debate sobre os instrumentos da política agrícola destinados à gestão dos riscos climático para o setor agropecuário, especialmente o Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR).
O ano de 2021 foi especialmente emblemático para o setor de seguros e as apólices com alguma subvenção econômica do PSR, uma vez que foi registrado um pagamento recorde de indenizações, na casa dos R$ 9,8 bilhões, 239% do montante coletado em prêmios.
Essa sinistralidade extraordinária reacendeu o debate sobre a necessidade de consolidação de um fundo destinado à cobertura suplementar dos riscos do seguro rural, neste artigo nomeado para fins de simplificação como “Fundo de Catástrofe”.
Um fundo desta natureza já foi instituído em 2010, prevendo um aporte da União de cerca de R$ 2 bilhões, mas nunca foi estruturado e formalizado.
Buscando solucionar esse processo, o PL 2951/2024 pretende, dentre outros elementos, consolidar um conjunto de reformas para a política de seguro rural no Brasil.
Apesar de amplo, o PL 2951/2024 possui três principais pilares de mudança nos rumos dessa política, que podem impactar sobremaneira na capacidade de pulverização desse instrumento no território: a não discricionariedade dos recursos para subvenção; a integração entre seguro e outras políticas agrícolas, em especial o crédito rural; e a formalização do Fundo de Catástrofe.
A natureza discricionária das despesas com o PSR é uma das principais limitações para a massificação do seguro rural no País, na medida em que o processo de alocação de recursos para subvenção está sujeito a cancelamentos, bloqueios e contingenciamentos de orçamento.
Nesse sentido, o PL 2951/2024 prevê a mudança da dotação orçamentária do PSR para o órgão “Operações Oficiais de Crédito, Recursos sob Supervisão da Secretaria do Tesouro Nacional – Ministério da Fazenda” (OOC-STN), o mesmo que opera diversos outros instrumentos de política agrícola, como o crédito rural e a política de preços mínimos (PGPM).
Essa mudança na dotação orçamentária abriria espaço não só para a possibilidade de alocação de mais recursos, com maior perenidade e previsibilidade, mas também permitiria uma melhor gestão e interoperabilidade entre políticas (segundo pilar), na medida em que o próprio PL prevê a possibilidade de melhores condições de financiamento e priorização de acesso para contratos de crédito com lastro em apólices de seguro.
Uma mudança dessa natureza traria maior segurança para as próprias instituições financeiras e poderia produzir impactos importantes nas renegociações de dívidas.
Ainda, a criação do Fundo de Catástrofe, com previsão de aporte governamental na ordem de R$ 4 bilhões e coparticipação do mercado segurador como condição para operar a subvenção econômica, tem como potencial a diluição do risco entre os entes (produtores, seguradoras e resseguradoras), podendo impactar nos preços das apólices.
Claro, ainda existem alguns pontos a serem esclarecidos, como as regras para coparticipação, os agentes que poderão compor esse fundo e os gatilhos de acionamento. De todo modo, o PL caminha no sentido de garantir maior perenidade ao setor de seguros rurais no Brasil.
As reformas propostas pelo PL 2951/2024 têm, portanto, grande potencial de transformação do PSR, enquanto instrumento de política agrícola de gestão de riscos, aumentando a capacidade deste de pulverização no território.
Ademais, é possível ainda tecer alguns pontos que poderiam ser incorporados ao longo do processo de formatação do Fundo.
O primeiro deles diz respeito à possibilidade das Instituições Financeiras (IFs) em compor o Fundo de Catástrofe. Na medida em que contratos de crédito que possuem apólices de seguro são dotados de menor risco, é de interesse das IFs que o Fundo saia do papel.
Ainda, precificar o risco de operações de crédito rural sem apólices de seguro incorre em maior exposição ao risco de inadimplência, cujo aporte das IFs no Fundo poderia reduzir os impactos ao Tesouro Nacional das renegociações de dívidas.
Atualmente, as renegociações de dívidas são problema crônico no crédito rural e um Fundo de Catástrofe poderia auxiliar nesse processo, obviamente após uma avaliação da estrutura do fundo e suas regras de aportes e operacionalização.
Outro ponto interessante é a reflexão sobre a função social desse fundo e em que medida este pode dirimir falhas de mercado, como a seleção adversa e a assimetria de informação.
Um elemento que impacta altamente na sinistralidade é a concentração de culturas e regiões, na medida em que se concentram naquelas regiões e culturas expostas ao maior risco. Uma oportunidade para incentivar a dispersão territorial e de cultivos segurados é atrelar ao critério de coparticipação do Fundo um indicador de diversificação regional e de atividades seguradas.
Quanto maior a diversificação, menor seria o ponderador de uma determinada seguradora, na medida que esta se preocupa com a redução da seleção adversa.
O último ponto se refere à assimetria de informação, especialmente no que diz respeito à novos produtos. Uma vez que novas regiões e culturas a serem seguradas carecem de dados para um cálculo atuarial adequado, essas apólices são dotadas de maior risco.
Uma das funções sociais do Fundo de Catástrofe poderia ser a de ressegurador público para produtos inovadores no mercado. Na medida em que novos produtos surjam, o Fundo assumiria parte dos prêmios e, por consequência, parte das indenizações em caso de perdas.
Esse sistema funciona de forma similar na Espanha e teria como principal efeito a criação de novos produtos de seguro com dispersão regional.
Em linhas gerais, o PL 2951/2024 possui grande potencial, pois ataca diversos limitantes crônicos da política de subvenção ao prêmio do seguro rural e do próprio mercado de seguro rural.
Fortalecê-lo e apoiá-lo na arena política é, portanto, fundamental para a construção de um seguro rural perene, amplo e sustentável econômica, social e ambientalmente.
*Leila Harfuch é sócia gerente da Agroicone, economista pela UEL-PR, doutora em Economia Aplicada pela ESALQ/USP e pós-doutora em Economia pela FGV-SP.
*Gustavo Dantas Lobo é pesquisador da Agroicone, doutorando no Programa de Pós-graduação em Economia Aplicada (PPGEA) da Escola Superior de Agricultura Luís de Queiroz (ESALQ), mestre em Economia – Desenvolvimento Econômico e Políticas Públicas, pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Viçosa.