Na produção de um medicamento amplamente utilizado no processo de inseminação artificial de bovinos, a indústria farmacêutica depende da extração de um hormônio presente sangue de éguas prenhes, o eCG (Gonadotrofina Coriônica equina). Só que a retirada dessa substância é um processo invasivo e exige um grande rebanho de fêmeas.
A Kimera Biotecnologia, uma startup de biotecnologia baseada em Ribeirão Preto (SP), decidiu seguir por outro caminho: usar engenharia genética para produzir, em laboratório, o mesmo hormônio, só que sem envolver os animais no processo.
Depois de uma década de pesquisas, a biotech finalmente conseguiu receber autorização oficial para operar uma biofábrica capaz de produzir 4 milhões de doses de hormônios, instalada no Supera Parque, o centro de inovação tecnológica e pesquisa da USP de Ribeirão Preto.
A estrutura acaba de ter seu registro deferido pelo Ministério da Agricultura e Pecuária. A Kimera planeja agora abrir uma rodada de investimentos até o fim do ano para dar tração ao negócio.
O processo, porém, não foi simples. A Kimera nasceu em 2014 e foi criada pelo casal de pesquisadores Camillo Del Cistia Andrade e Mayb Andrade. Camillo é biomédico de formação, doutor em genética pela Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, tem mais de 20 anos e atuava como pesquisador na universidade. Mayb é engenheira de software e trabalhava como professora universitária.
A ideia de criar a startup veio a partir da inquietação de Camilo enquanto atuava no laboratório de glicobiologia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP de Ribeirão. Ele estudava justamente o hormônio que estimulava a ovulação das vacas e era produzido com o hormônio eCG das éguas e pensou numa alternativa de laboratório.
"Quando uma égua está prenhe, ela produz no organismo dela um hormônio e, quando você tira o hormônio dessa égua e insere em uma vaca, induz a sua ovulação. Só que isso, geralmente, gera maus tratos para o animal", explica Mayb, que hoje é diretora financeira e administrativa da Kimera.
"O Camillo falou para mim que esse medicamento era produzido no exterior e que o Brasil, que é um dos maiores consumidores do mundo, não fabricava. Aí ele disse: 'Eu vou fazer isso no laboratório.' Quando ele me falou isso eu ri e disse a ele: 'Você está doido'", recorda Mayb.
Mas, com o passar o tempo, ela acabou se convencendo de que a ideia era de fato boa e, após um problema pessoal, entendeu que era o momento certo de arriscar. Logo, Camillo passou a fazer os estudos e começou a trabalhar com as células, sempre com apoio de instituições públicas de fomento à pesquisa como a Fapesp.
A startup desenvolveu o hormônio r-eCG, que tem um comportamento de forma similar aos hormônios extraídos das éguas prenhas, mas não é produzido utilizando o sangue dos animais. A partir de uma célula comercial, a Kimera consegue fazer o processo de desenvolvimento.
"A gente pega a célula e faz uma mudança genética no DNA dessa célula. Ensinamos a célula a fazer a mesma coisa que a égua faz no corpo dela”, resume Mayb.
Os desafios da empresa foram se impondo na medida que gerenciar um laboratório é diferente de administrar um CNPJ. "A gente não tinha noção do mercado, se era algo viável. Quando já tínhamos uns quatro anos de Kimera, começamos a participar de iniciativas de aceleradoras para startups no Brasil, na Espanha, nos Estados Unidos e vimos que existia um mercado grande e muita coisa a ser feita na área de hormônios recombinantes na saúde animal”, explica Mayb.
Mayb e Camillo tentaram, então, fazer parcerias com indústrias farmacêuticas, mas as tratativas não deram certo. "As parcerias não eram muito legais, era difícil a parceria de uma grande empresa com startup muito no início", relata Mayb.
Em 2020, o casal resolveu que iria produzir o produto fora do Brasil após conhecer investidores. "Estava mais fácil fazer fora do Brasil do que aqui", lembra Mayb, que passou o início de 2020 conhecendo fábricas e estabelecendo parcerias. "A gente tinha possibilidade de fazer negócio na Nova Zelândia", recorda.
Camillo já estava com a passagem de ida comprada para embarcar para a Oceania em abril de 2020 quando a pandemia do coronavírus, que já vinha escalando no primeiro trimestre de 2020, estourou de uma vez só em todo o mundo. "E no dia 16 de março, não esqueço disso porque era o aniversário do Camilo, a Nova Zelândia foi o primeiro país a fechar suas fronteiras."
Ao casal, restou ficar no Brasil. Mayb lembra que as empresas do Supera Parque se uniram e passaram a fazer testes de covid-19 gratuitamente para a população local. Como a Kimera tinha equipamentos e conseguia facilmente operacionalizar os exames, entrou na linha de frente de testagem. "Eles fizeram mais de 150 mil testes de graça para a população. A gente não faturou nada nessa época, mas eu tenho orgulho."
Com seus altos e baixos, a pandemia do coronavírus foi enfraquecendo e os países começaram a reabrir fronteiras, entre elas, a Nova Zelândia. Mas o momento da Kimera já era outro. A startup já tinha um produto, mas não tinha fábrica. Tentativas de terceirizar essa parte do processo não deram certo. “Só que nós tentávamos fazer parcerias e era muito ruim o que vinha, tinhamos que abrir mão de quase tudo", recorda Mayb.
"No fim de 2021, falamos: 'Quer saber? Ou vamos ter que dar esse produto para alguém ou vamos montar uma fábrica'", recorda a empreendedora.
O casal dono da Kimera resolveu montar uma biofábrica no parque tecnológico de Ribeirão e conseguiu um investidor que aportou R$ 2 milhões para montar a infraestrutura e fazer a compra de equipamentos.
Mayb e Camillo passavam dias e noites fazendo a montagem do laboratório, desde os equipamentos em si até a estruturação legal, uma vez que o registro precisa ser solicitado tanto à CTNBio quanto ao Ministério da Agricultura e Pecuária.
O registro da biofábrica saiu neste mês, o que foi motivo de comemoração na startup, uma vez que somente multinacionais tem registros para estruturas semelhantes no Brasil, segundo Mayb.
"Hoje a Kimera tem uma fábrica de produção, uma fábrica de envase, um laboratório de pesquisa e um laboratório de controle de qualidade", relata Mayb.
Agora, a empresa se prepara para o pedido de registro de seus produtos, os hormônios recombinantes, um processo que pode levar algum tempo até se concluir, além de outros produtos que ainda estão em testes de bancada.
Mas, com a estrutura já montada e aprovada com os devidos registros oficiais, a Kimera pode também prestar serviços para indústrias farmacêuticas enquanto o registro de seus produtos não sai. A ideia é que esse tipo de demanda gere pelo menos R$ 2,7 milhões em receita à startup até o fim do ano. "A empresa não gerou receita até hoje. Agora vamos ter capacidade de faturar", diz Mayb.
Formada até aqui com recursos próprios do casal Andrade e dos órgãos de fomento à pesquisa, a Kimera também pretende abrir uma rodada de investimentos, em valor e formato ainda a ser definido, para atrair investidores privados e indústrias farmacêuticas.
Resumo
- Kimera foi criada em 2014, com o propósito de produzir em laboratório um hormônio cuja produção, atualmente, pode provocar maus tratos a animais
- O eCG (Gonadotrofina Coriônica equina) é amplamente utilizado no processo de inseminação artificial de bovinos
- Startup acaba de receber autorização do Ministério da Agricultura para operar sua biofábrica e agora quer fazer captação para tracionar a produção