Quando o mato era alto, em 2008, a KPTL, fusão das gestoras de venture capital A5 Capital Partners e Inseed Investimentos, começou a desbravar dois mundos. O primeiro era o de venture capital. O segundo, investir em empresas de base tecnológica do agro.

Quinze anos depois, muita coisa mudou. O venture capital não só foi desbravado, como viveu dois anos de exuberância no Brasil (2020 e 2021), com investimentos recordes. O agro e sua agtechs avançaram – é verdade. Mas até agora não surgiu nenhum unicórnio, como são chamadas as startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão.

Para Renato Ramalho, CEO da KPTL, que tem R$ 1 bilhão em ativos sob gestão, isso não é necessariamente uma má notícia. “Que bom que não aconteceu ainda um unicórnio. O setor agro até dessa doença está protegido”, afirma Ramalho, em entrevista ao AgFeed. “A proximidade do agro com o lado real da economia ajuda a não ter essas notícias supervalorizadas e hiperinflacionadas gerando valor do nada.”

Ao longo de sua história, a KPTL já levantou mais de R$ 1,3 bilhão em dez fundos diferentes e investiu em mais de 110 empresas. O agro tem um papel de destaque nessa carteira. Já foram mais de 20 aportes – 10 delas ainda estão ativas no portfólio.

São os casos da Agrotools, que traz soluções digitais para o agro, da fintech Laqus e da Smartbreeder. “A minha tese, como em qualquer outro setor, é investir em setores no qual o Brasil é protagonista globalmente. Agro, evidentemente, é um desses setores”, diz Ramalho.

De acordo com Ramalho, o campo não tem mais de 20% de sua área conectada. E, para ele, isso é uma questão, um problema e uma limitação. “Mas é o tamanho de uma oportunidade”, acrescenta o CEO da KPTL.

Nesta entrevista que você lê a seguir, Ramalho explica por que o Brasil não tem um unicórnio, diz acreditar que muitas empresas bilionárias vão surgir nos próximos anos, fala que a união de agro e clima é imbatível e comenta sobre a “jabuticaba brasileira”. Vá até o fim da entrevista para saber qual é.

Por que o agro, que é o maior negócio do Brasil, não conseguiu ainda gerar um unicórnio no País?
Deixa fazer uma piada, mas que é um papo sério. Que bom que não aconteceu ainda um unicórnio, porque eles pararam de voar. O setor agro até dessa doença está protegido. A proximidade do agro com o lado real da economia ajuda a não ter essas notícias supervalorizadas e hiperinflacionadas gerando valor do nada.

Mas, independentemente do cenário de supervalorização, outros setores tiveram empresas que valem mais de US$ 1 bilhão. Por que não no agro?
Esse é um bom ponto. Ainda não temos. Mas teremos. Quando se fala de tecnologia e inovação no agro se remete aquela coisa de Embrapa, que é a maior impulsionadora de inovação no agro brasileiro. Quando mistura venture capital nessa agenda, todo mundo mede muito a questão de digitalização. De um lado, temos um agro supereficiente e com uso intensivo da biotecnologia. Mas que carece de conectividade. O campo não tem mais de 20% de sua área conectada. Isso é uma questão, um problema e uma limitação. Mas é o tamanho de uma oportunidade.

O que mais?
Temos também um fator geracional. Essa é a segunda ou a terceira geração (que assume os negócios) e isso leva cabeças jovens para dentro da fazenda, o que têm feito o consumo e o uso de tecnologia ser adotado.

Essas limitações estão sendo superadas?
Prefiro que seja construído assim. Brinco que não adianta colocar gasolina aditivada em um Fusca. Só vai gastar dinheiro. O Fusca vai sempre ter a mesma velocidade. Mas acredito que não vamos ter só empresas bilionárias de base tecnológica. Acho que o agro vai passar a ser representado na bolsa. Ainda tem muito pouco de agro e agro tecnológico em bolsa. Não tenho a menor dúvida que em até dez anos, vamos ter até 20 empresas de agro e de base tecnológica listadas.

"Ainda tem muito pouco de agro e agro tecnológico em bolsa. Não tenho a menor dúvida que em até dez anos, vamos ter até 20 empresas de agro e de base tecnológica listadas"

Além de todos os fatores que citou, uma das razões não seria o fato de o venture capital não investir muito nessa tese?
Acredito que não. Do lado do venture capital existe um amadurecimento cada vez mais consistente. Não é uma decisão do gestor A, B ou C que decide que vai fazer o venture capital acontecer em agro. Isso não existe. É uma mentira. É uma construção que não se sustenta. O venture capital acontece em determinados setores em que se enxergou que existe um dinamismo de empreender. Quando aquele setor enfrenta a vontade do empreendedor de resolver a ineficiência, é aí que o venture capital vai fazer acontecer. Não vem do dinheiro. Vem de baixo para cima. E isso tem acontecido nos últimos dez anos.

Quer dizer, então, que, em certo sentido foi, bom para as agtechs ficarem fora da festa do venture capital?
Acredito que sim. O meu desconforto em relação a unicórnio, principalmente no Brasil, é que muitos deles foram criados de cima para baixo. Eles foram artificialmente inchados. E essa conta chega. E o empreendedor e o investidor vão ter que se explicar. Então, que bom para o agro que não participou dessa, não vou falar nem brincadeira, pois foi um jogo sério e vai gerar lições. Espero que todo mundo aprenda. Adoraria que tivéssemos empresas bilionárias, consistentemente construídas, baseadas em economics, em números e em faturamento. E não artificialmente, como essa coisa meio infantil do cavalinho com chifre, cor de rosa ou cor de arco-íris.

Qual a sua tese em agro?
A minha tese, como em qualquer outro setor, é investir em setores no qual o Brasil é protagonista globalmente. Agro, evidentemente, é um desses setores. Os EUA são a meca do consumo. Mas, dentro do agronegócio, empresas que têm a bandeira do Brasil têm um prêmio em relação a outras geografias, porque de fato nós fazemos isso como ninguém. Dentro do agro tem algumas verticais que são mais ou menos interessantes. Estamos posicionados em quase todas, como da porteira para fora, a exemplo da Agrotools. Proteína é uma área interessante. Matricialmente olho de tudo do ponto de vista tecnológico. Tem dentro de biotecnologia uma agenda mais de bioeconomia. Gosto até de coisa mais de hardware.

"A agenda climática, que deve ser nas próximas décadas tão importante quanto a do agro, vai explodir. Ninguém faz o que a gente faz ou vai fazer quando se mistura agro e clima"

Recentemente, você disse que “o jogo mal começou em agtechs no Brasil”. Por quê?
Acredito que por causa desses motivos que te falei. Mais um motivo é a intimidade que o agro tem com a agenda climática. É um setor que tem mais de 20% do PIB, que ainda tem 20% de conectividade, tem menos de 15% de penetração de seguro. Se você mistura a questão climática, a ciência produtiva e a questão da mineração, é um setor tão grande e com tanta coisa para acontecer. A própria agenda climática, que deve ser nas próximas décadas tão importante quanto a do agro, vai explodir. Ninguém faz o que a gente faz ou vai fazer quando se mistura agro e clima.

Você enxerga dificuldade para captar investimentos quando a tese é inovação em agro?
Captação é sempre difícil, porque você compete pelo dinheiro com diferentes produtos: ações, renda fixa, imobiliário. No mundo que estamos vivendo hoje, em que os juros estão altos no mundo inteiro, trazer para o nível de rentabilidade e do risco como venture capital é mais difícil. O mundo hoje não só está deixando de olhar o agro, como qualquer produto alternativo de longo prazo com risco. Dentro dos setores que o Brasil tem para oferecer, agro e clima estão na contramão. São setores que são bem olhados, analisados e investidos. Mas não quer dizer que está fácil.

Você também disse recentemente que fundos de pensão, no Brasil, não investem em venture capital. Chamou isso de uma “jabuticaba” brasileira. É um desafio furar essa bolha?
Pensa que o fundo de pensão tem uma meta para atingir, gerar rentabilidade para pagar seus pensionistas. Com o nível de renda fixa de hoje, um título do Tesouro ou de um banco de primeira linha está entregando 14%. O fundo de pensão não precisa fazer absolutamente nada. Por que vai tomar risco de outros setores? Economicamente até entendo a cabeça de um gestor de um fundo de pensão.

Mas independentemente do nível dos juros, os fundos de pensão brasileiros raramente investem nessa classe de ativos?
Vamos tentar questionar isso um pouco. No Brasil, onde temos um problema clássico, histórico de produtividade, seria óbvio que o Brasil tivesse uma política de Estado que focasse na eficiência. E tecnologia e inovação deveriam ser uma mola para isso acontecer, como política de longo prazo. São exemplos disso Israel, Coreia e a própria Califórnia. Essas geografias usam o dinheiro que têm para investir nessas atividades. E os endowments das universidades e os fundos de pensão investem nessa classe de ativos. Não precisa ser 95%. É um 1%, 2% e até 5%. Mas eles são os principais investidores, em valores absolutos, nas iniciativas de inovação e pesquisa e desenvolvimento dentro dessas geografias.

O maior dinheiro, de longo prazo no Brasil, está dentro dos fundos de pensão privados e públicos e eles não investem em inovação pela competição da renda fixa. Nesses últimos anos, a gente viu algumas iniciativas batendo na nossa porta. O problema é que isso voltou (os juros subiram) e eles voltaram para a renda fixa. É uma jabuticaba brasileira. Não conheço nenhuma outra geografia do mundo que tem uma área de venture capital em que os fundos de pensão não sejam atores importantes. No Brasil, isso é praticamente zero.