Depois da carne e da gordura de porco, vem aí o algodão de laboratório – e um brasileiro está no centro dessa inovação. Seu nome é Luciano Bueno e talvez poucos tenham ouvido, no Brasil, sobre seu trabalho. Mas a Galy, empresa que fundou em 2019 e da qual é CEO, desperta atenção em rodas bilionárias globais.

Sediada nos Estados Unidos, a startup acaba de arrecadar US$ 33 milhões numa rodada de investimentos do tipo série B liderada pela empresa de investimentos Breakthrough Energy Ventures, criada por Bill Gates e que tem como investidores Jeff Bezos, Michael Bloomberg e Richard Branson.

A rodada também incluiu gigantes mundiais do segmento de fast-fashion como H&M Group e a Inditex, dona da Zara. Antes delas, a Galy já havia recebido aportes de pesos pesados como Sam Altman, CEO da OpenAI, a empresa por trás do Chat GPT.

O interesse de nomes fortes do mundo de venture capital e do segmento de moda não é à toa. Bueno e a Galy prometem revolucionar a indústria têxtil a partir do desenvolvimento, nos últimos anos, de um "algodão de laboratório", que usaria 99% menos de água em comparação com o cultivo tradicional, 97% menos faixa de terra e ainda emissões 77% menores de CO2.

Também leva menos tempo para ser produzido – algo como 18 dias – em comparação com a fibra convencional, cujo ciclo agronômico chega a 180 dias.

O discurso da Galy para atrair investidores de peso baseia-se, justamente, no impacto ambiental do plantio de algodão. A cultura do algodão exige muita água ao longo de seu cultivo, além de necessitar do consumo intensivo de defensivos e fertilizantes.

Para além do impacto ambiental, outra vantagem da empresa – e também o que ajuda a chamar a atenção de investidores e possíveis clientes – é trabalhar com um produto que não procura ser uma alternativa ao algodão, como tantas que existem pelo mercado, mas a fibra natural obtida em laboratório através da chamada agricultura celular.

"O que a gente oferece é: 'Olha, eu sou o único que te dou algodão que não é substituto e é feito de uma forma muito mais sustentável, com menos uso de água, menos emissões de CO2", afirmou Edgar Soto, diretor de relações comerciais da Galy, ao AgFeed.

"Em breve, o mundo enfrentará maior volatilidade na agricultura convencional, à medida que as condições climáticas extremas se tornarem mais frequentes. Quando chegar a hora (de dificuldades na produção comercial), a Galy estará pronta (para atender o mercado)”, avalia o CEO e fundador da empresa, Luciano Bueno.

A Galy sustenta que, a partir de seus métodos de produção, pode ajudar até mesmo nos planos climáticos das companhias, o que talvez explique a empresa ter se tornado a queridinha dos investidores – desde que foi fundada, a startup já conseguiu captar US$ 65 milhões em diferentes rodadas de investimento.

"Alguns de nossos investidores, como Inditex e H&M, por exemplo, têm metas super agressivas de redução de água e de CO2", diz Soto.

O CEO da Inditex, Óscar García Maceiras, confirma essa tese: “Ao investir em tecnologias de ponta para produzir fibras de última geração, não estamos apenas avançando em direção à nossa meta de usar exclusivamente materiais com menor impacto ambiental, mas também moldando ativamente a transformação da indústria por meio de investimentos estratégicos de capital”, disse ele.

Laboratório da Galy em Boston (EUA)

Apenas no começo

Tudo isso, porém, está em fase inicial. Até aqui, a Galy produziu “mais de um quilo” de algodão e ainda não fabrica comercialmente o produto. A ideia, com os investimentos recebidos, é acelerar esse processo entre o fim desse ano e o começo do ano que vez, segundo Soto. “Esperamos produzir já alguns quilos, mas para uso interno.”

Um primeiro contrato de US$ 50 milhões foi assinado, há um ano, com a empresa Suzuran Medical, com prazo de vigência de dez anos. Ele entrará em vigor assim que a startup tiver sua primeira fábrica comercial de algodão. A ideia é que sejam consumidas 3 mil toneladas da fibra.

A Suzuran Medical é uma companhia japonesa que fabrica materiais para uso médico e hospitalar, como batas e materiais para higienização, todos feitos de algodão.

"Eles gostaram que o nosso algodão é muito puro. Quando você colhe o algodão do campo, ele vem com terra, as pessoas manuseiam, vem com contaminação do manuseio, contaminação de inseticida que tem em cima, das máquinas. No nosso caso, não tem nada disso, porque a gente está fazendo em laboratório, é tudo superlimpo", explica Soto.

O processo de fabricação do algodão utiliza o conceito de agricultura celular, em que a Galy extrai uma amostra de um planta de algodão real e insere esse fragmento em um meio de cultura, uma solução com hormônios e nutrientes, para que as células aumentem de tamanho sem parar. Depois, tudo isso vai parar nos chamados biorreatores, equipamentos que lembram a estrutura de uma cervejaria.

Os cientistas, então, começam a manipular as células para que ela se transformem em fibra de algodão. "Nosso time fica trabalhando para achar o equilíbrio, a fórmula certa de meio de cultura, as melhores células, as linhagens celulares", afirma Soto.

Todo esse processo é feito hoje em um laboratório em Boston, nos Estados Unidos. No mês que vem a Galy vai inaugurar uma pequena fábrica de 10 mil litros para aumentar a escala de produção, fazer testes e qualificar os processos para, mais adiante, erguer uma fábrica já em escala comercial.

"Essa nova estrutura vai produzir uma quantidade um pouco maior de algodão, só que foi criada mais para uso interno do que qualquer outra coisa. Hoje, a gente tem escala laboratorial, não tem escala industrial", diz Soto.

O diretor da Galy prefere não arriscar uma data exata de quando a startup ergueria uma fábrica em escala comercial. Ele avalia que isso aconteceria apenas "daqui a alguns anos" e que uma estrutura do tipo teria um porte de "centenas de milhares de litros."

Em paralelo ao algodão, a Galy também está fazendo, há dois anos, testes com outros produtos como cacau e café em pó, que chegaram a ser apresentados a um evento em junho em Londres – com direito a chocolate com “gosto e cara” de chocolate.

Dos dois produtos, o mais promissor é o cacau, de acordo com Soto. "A ideia é justamente a gente explorar esses produtos que façam sentido para a gente, de ponto de vista econômico, que tenham um preço legal, que tenha demanda." Segundo ele, empresas dos Estados Unidos e da Europa, de chocolates e de fragrâncias, já demonstraram interesse pelo produto.

Também há uma vantagem de produção, segundo ele: diferentemente do algodão, a célula do cacau já é o produto em si, o que ajuda a baratear o custo.

Time da startup, com Bueno ao centro

Muita persistência no caminho

Antes de criar a startup, há cinco anos – inicialmente em parceria com a bióloga Paula Elbl –, Bueno já tinha experiência anterior com a moda: na adolescência, vendeu roupas para juntar dinheiro e, mais tarde, em 2015, montou uma empresa, a Horvath, que também prometia um produto inovador: uma camisa impermeável a manchas e que não amassava.

Na época, Bueno chegou a participar do reality-show Shark Tank Brasil apresentando o produto, que foi vendido em lojas. Mas teve dificuldades após um acordo mal-sucedido com uma grande varejista, com a qual fez um contrato de exclusividade. O projeto acabou engavetado.

Nesse meio tempo, o empreendedor conseguiu migrar para os Estados Unidos e resolveu tentar um outro negócio. "Ele teve a ideia de replicar o que estão fazendo com carne cultivada para o mundo da moda e pensou isso para o algodão", afirma Soto.

Inicialmente, houve um aporte de US$ 5 milhões. Mas, logo depois de criada a empresa, veio um primeiro sobressalto: a pandemia.

A Galy não conseguia laboratórios para desenvolver seus protótipos, até que conseguiu a autorização da Universidade de Massachusetts da cidade de Amhrest, a duas horas de viagem de Boston, para montar uma estrutura inicial. Em paralelo, a startup mantinha outro laboratório em São Paulo.

Um novo aporte – 300 mil euros – veio após a Galy vencer um prêmio de sustentabilidade da H&M Foundation, o Global Change Awards, em 2020.

Amostras do algodão produzido pela empresa

"Então (a startup) ganhou notoriedade e, com isso, assinou em 2020, 2021, alguns contratos de prova de conceito com a H&M e com a Suzuran Medical para entregar, em (alguns) meses, 100 gramas de algodão e 500 gramas de algodão, respectivamente", afirma.

No fim de 2021, veio a rodada de investimento de série A, quando foram aportados US$ 26 milhões na startup. A rodada foi liderada por um dos mais famosos investidores de risco dos Estados Unidos, John Doerr, e pelo fundo Material Impact. Também entrou na rodada o fundador da OpenAI, dona do ChatGPT, Sam Altman.

Em 2022, a Galy montou um laboratório no Brasil – inicialmente em uma casa na Avenida Europa, região nobre de São Paulo, e depois numa estrutura locada da Bayer na zona sul da capital paulista.

"Só que, em 2023, o dinheiro que foi levantado começou a ficar mais curto e levantar capital começou a ficar um pouco mais apertado. Então, tomamos a decisão de fechar a operação no Brasil", conta Soto.

"A gente acabou conversando com investidores e teve a decisão estratégica para também alongar um pouquinho de tempo de vida da empresa e deixamos os novos produtos (cacau e café) em on-hold.", afirma.

Hoje, são cerca de 35 funcionários. A maioria fica em Boston, onde trabalham norte-americanos, brasileiros, colombianos e venezuelanos. “Já aqui no Brasil, só ficamos eu e mais duas, três pessoas, do administrativo”, diz Soto.

Por enquanto, segundo o executivo, a Galy é a única startup no mercado a oferecer o produto.

"A gente tem quatro, cinco anos de pesquisa na frente (de eventuais concorrentes) e 15 patentes em andamento. E muita pesquisa que a gente fez é única, não está publicada. Estamos fazendo (a produção) de uma forma que os estudos, os artigos acadêmicos, os livros não estão fazendo, pois estamos fazendo em escala. Se você pegar qualquer paper escrito sobre algodão em laboratório, não são feitos em biorreatores, mas na placa de Petri (recipiente cilíndrico utilizado em laboratório, geralmente para identificação de microrganismos)."