“Desculpe. Estou 120% inserido neste “fervo” do Plano Clima”. Foi assim que uma fonte, representante de uma das maiores entidades representativas do agronegócio brasileiro, respondeu a uma mensagem enviada pelo AgFeed, em busca de mais informações sobre a polêmica.

O Plano Clima norteia as ações do Brasil para o enfrentamento às mudanças climáticas e para o cumprimento das metas do Acordo de Paris. Lideranças do agronegócio, porém, têm feito diversos questionamentos ao texto do plano que foi apresentado pelo Executivo.

O “fervo” citado pela fonte é um sintoma do quão elevada ficou a temperatura nos bastidores do agro. As críticas do setor ao Plano Clima e as sugestões de mudança ganharam até mesmo a adesão formal do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), em documento oficial divulgado na última semana.

As entidades estão bastante incomodadas com a contabilidade feita pelo governo no Plano Setorial da Agricultura e Pecuária, presente na Estratégia Nacional de Mitigação, parte integrante do Plano Clima. O documento entrou em consulta pública no dia 28 de julho, processo que se encerrou na segunda-feira, dia 18 de agosto.

Depois de um período de consulta, análise e incorporação das sugestões, o plano será submetido ao Subcomitê-Executivo do Conselho Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM), liderado pelo Ministério do Meio Ambiente.

Ao todo são 11 pastas envolvidas, para que o plano seja aprovado e implementado. O documento ajuda o Brasil a cumprir seus compromissos no Acordo de Paris, que se dispôs a reduzir suas emissões líquidas de gases de efeito estufa entre 59% e 67% até 2035, chegando a uma emissão entre 850 milhões e 1,05 bilhão de toneladas de CO2 equivalente em dez anos.

Se nada mudar, a agricultura e pecuária será o setor da economia que terá de fazer a maior diminuição de emissões de CO2 ao longo dos próximos dez anos – ao mesmo tempo em que outros setores como energia e transporte poderão até aumentar a quantidade de emissões no período.

“Nós esperamos que haja uma alteração desse documento ou até mesmo uma retratação por parte do Ministério do Meio Ambiente. Isso é trabalhar contra o Brasil, é um ato extremamente autofágico”, disse, enérgico, o deputado Pedro Lupion, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) ontem, a jornalistas.

O Ministério da Agricultura e Pecuária resolveu encampar a pauta do setor produtivo por meio de uma nota técnica, obtida pelo AgFeed, que foi enviada, no último dia 15 de agosto, à Secretaria Nacional de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente. O texto traz críticas e pedidos de mudanças na forma como foi feita a contabilização.

Pela proposta que consta no Plano Clima, a agricultura e pecuária precisariam, já em 2030, reduzir de forma significativa suas emissões líquidas de carbono, passando de 1,393 bilhão de toneladas de CO2 em 2022 para 891 milhões de toneladas, queda de 36%.

O montante de emissões a serem cortadas cresce ainda mais considerando uma perspectiva para a próxima década. Dessa forma, a ideia é que agricultura e pecuária emitam entre 640 milhões e 700 milhões de toneladas de CO2 em 2035, banda que equivale a uma redução de 50% a 54% em relação a números de 2022.

A discórdia surgiu do fato de que o Executivo resolveu colocar, na conta de emissões a serem abatidas pela agricultura e pecuária, 813 milhões de toneladas de CO2 equivalente que correspondem a emissões de desmatamento, enquanto que as emissões relacionadas à produção agrícola e pecuária somam 643 milhões de toneladas de CO2 equivalente.

“Com a incorporação das emissões e remoções relacionadas à conversão de vegetação nativa para uso agropecuário, estima-se que 813 MtCO₂e, o que corresponde a cerca de 70% das emissões totais brutas atribuídas ao setor de LULUCF (uso da terra, mudança do uso da terra e florestas) do inventário nacional, passam a ser consideradas no escopo deste plano setorial”, diz o plano da agricultura.

No documento enviado ao Meio Ambiente, o Ministério da Agricultura reconhece que a importância do Plano Clima é “indiscutível”, mas atenta para “ajustes substanciais para garantir ampla adesão dos setores, coerência metodológica, respeito aos padrões internacionais de reporte (IPCC/UNFCCC), utilização de bases oficiais, e equilíbrio na alocação de responsabilidades e benefícios.”

Na nota, a pasta segue dizendo que “a produção de alimentos é um aspecto geopolítico extremamente sensível e o Brasil possui papel de destaque internacional” e que “ao mesmo tempo, a melhor ciência disponível aponta com veemência como os impactos da mudança do clima estão e continuarão a afetar a produção de alimentos na região tropical.”

A pasta avalia também que a política de mitigação de emissões de gases de efeito estufa no setor agrícola “não pode prescindir de forte alinhamento com estratégias de adaptação”.

“Fica evidenciado que a manutenção da competitividade dos sistemas de produção agrícola não pode prescindir de planejamento e alocação de recursos setoriais na geração de dados, estudos estruturantes e de longo prazo e pesquisas que possam caracterizar adequadamente os componentes do setor”, destaca o texto.

Dessa forma, o Mapa afirma que as emissões atribuídas ao setor agropecuário “não correspondem às práticas internacionais, seguindo as metodologias preconizadas pelo IPCC e UNFCCC.”

“Portanto, considerando as inconsistências das propostas de alocação de emissões e remoções, deve haver a retirada das menções a mudanças do uso do solo do setor de agropecuária devendo ser alocadas no setor de ‘conservação da natureza’, assim como as emissões de combustíveis fósseis ao setor de ‘energia’”, finaliza o documento enviado pela pasta.

A manifestação do Mapa veio após uma reunião entre o vice-presidente da FPA, deputado Arnaldo Jardim, e o ministro Carlos Fávaro, em que o chefe da pasta teria tomado conhecimento do assunto e motivado a nota técnica enviada ao MMA.

Eco nas críticas

O documento enviado pelo Ministério da Agricultura ecoa pontos de discordância que já haviam sido trazidos nos últimos dias pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) em uma longa análise que foi, inclusive, anexada pelo Mapa junto à nota técnica que foi enviada à pasta chefiada por Marina Silva.

Em um documento de análise do Plano Clima, a FPA fez várias críticas metodológicas em relação ao plano apresentado pelo governo, que podem ser resumidas em seis tópicos: (1) excessiva concentração de responsabilidades/obrigações para o setor; (2) inadequada atribuição das emissões de desmatamento para o setor; (3) desconsideração das remoções de GEE em propriedades rurais privadas; (4) metas de redução de “supressão legal”, sem garantia dos incentivos correspondentes; (5) base de dados “não oficiais” ou não disponíveis para auditagem; (6) ausência de participação do poder legislativo.

“Percebe-se que ao setor agropecuário foi atribuída a maior carga de responsabilidades/obrigações para o cumprimento da NDC, em patamares desproporcionais comparativamente com os demais segmentos econômicos”, disse a FPA.

A frente parlamentar cita exemplos. Enquanto a proposta apresentada pelo governo exige que a agropecuária reduza em até 54% suas emissões, o setor de energia teria permissão para aumentá-las em até 44% no mesmo período.

Outro ponto criticado pela FPA envolve o fato de que desmatamento praticado em assentamentos da reforma agrária e comunidades tradicionais foi incluído na conta do setor produtivo.

A proposta também foi questionada pela forma como distribui responsabilidades sobre o desmatamento. Pelo desenho atual, 813 milhões de toneladas de CO2 equivalente oriundas da derrubada de florestas seriam atribuídas ao setor agropecuário.

Já o Plano Setorial de Conservação da Natureza repassa ao poder público apenas 356 milhões de toneladas, cerca de 44% do total, diz a FPA.

Além da discrepância, a FPA aponta que a metodologia adotada diverge da lógica do Inventário Nacional de Emissões de Gases de Efeito Estufa, que separa o desmatamento em duas categorias: mudança de uso do solo e setor agropecuário.

Outro ponto de atrito é a previsão de que o setor produtivo reduza a supressão de vegetação mesmo quando a lei permite a atividade, como no cumprimento integral das regras de Reserva Legal e Áreas de Preservação Permanente (APPs), previstas pelo Código Florestal.

Embora o plano mencione mecanismos de incentivo e valorização da vegetação nativa, não há garantias de que haverá recursos suficientes nem de que eles chegarão aos produtores. Para a FPA, essa lacuna abre espaço para o recrudescimento de medidas “repressivas e punitivas” contra o setor.

A frente criticou também o fato de que o plano não considera a remoção de gases do efeito estufa feitas nas propriedades privadas.

Do ponto de vista técnico, a FPA criticou a modelagem utilizada, um instrumento denominado Brazilian Land Use and Energy System (BLUES), para a definição das metas setoriais de redução de emissões.

“Ao longo do processo de elaboração das propostas de Planos Setoriais, foi recorrente a crítica de falta de transparência na estruturação das informações, uma vez que não foi assegurado acesso irrestrito à base de dados do BLUES, o que inviabiliza a realização de atividades de auditagem e, por conseguinte, fragiliza a verificação da conformidade de suas projeções”, diz a análise da FPA.

Além disso, a frente parlamentar também criticou o fato de que foram utilizados dados de um programa não oficial, o MapBiomas, rede global e multi-institucional, formada por universidades, ONGs e empresas de tecnologia, como base para a alocação de expressiva parcela do desmatamento ocorrido no país como se fosse responsabilidade do setor.

Houve ainda questionamentos sobre a ausência de participação do Poder Legislativo na elaboração da proposta e do fato de que a consulta pública sobre o plano ter ficado aberta por menos de 30 dias, “o que não é razoável, dada a complexidade do tema e os impactos para o setor agropecuário.”

A FPA solicitou que sejam atendidos cinco pontos. O primeiro é que seja feito um plano setorial específico para tratar de emissões relacionadas ao desmatamento (tanto em áreas públicas quanto privadas).

Em segundo lugar, a frente pede que sejam inclusas as remoções de carbono em propriedade rurais privadas na contabilidade.

Além disso, o setor demanda a inclusão de “salvaguardas efetivas” para que a busca da redução da “supressão legal” ocorra estritamente através de instrumentos de incentivos, com a garantia de disponibilidade e de acesso a recursos financeiros suficientes para os produtores rurais.

Outro pedido é a garantia de acesso irrestrito aos dados e ao modelo utilizado, sem a utilização de dados não oficiais. O quinto ponto solicitado foi “assegurar a efetiva participação do Poder Legislativo nas etapas de discussão e de deliberação dos planos setoriais”.

CNA aguarda mais negociação

“Nós vamos trabalhar intensamente até a COP 30 para que esse documento não saia como proposto na consulta pública”, diz Nelson Ananias, coordenador de sustentabilidade da Confederação Nacional da Agropecuária (CNA), em entrevista ao AgFeed.

“A gente submeteu também nossos posicionamentos na consulta pública e estamos esperando as rodadas de negociação para a finalização do plano”, acrescentou.

Ananias diz que a CNA participou da construção do Plano Clima, mas depois acabou sendo surpreendida com o que foi apresentado para consulta pública. “Quando a consulta pública vem, ela ignora e incorpora pontos que não foram discutidos lá”, afirma.

O principal ponto de divergência da CNA – assim como da FPA – é a ideia de que o desmatamento entre na conta de emissões de agricultura e pecuária.

“Ilegalidade é responsabilidade do governo, que tem que trabalhar através de ações, de combate ao desmatamento ilegal, de incentivos para que não aconteça desmatamento ilegal e não simplesmente jogar cerca de 70% das emissões nas costas do setor agropecuário brasileiro”, avaliou o dirigente.

A CNA defende, portanto, que o documento seja revisto e que seja feita a distinção de emissões entre uso da terra, mudanças no uso da terra e florestas (identificados geralmente pela sigla LULUCF) e agricultura e pecuária.

“O que é LULUCF continua sendo desmatamento, que é responsabilidade do governo, e que o setor agropecuário se comprometa, através da agricultura, principalmente do mecanismo da agricultura de baixa emissão de carbono, a cumprir a sua meta de ampliar, recuperar áreas degradadas e pastagens e outras ações que estão preconizadas lá no Plano ABC. Isso seria justo com o setor, isso seria justo com o Brasil, isso seria justo com o produtor rural brasileiro”, afirma Ananias.

Caso nenhuma alteração seja feita, Ananias se preocupa também com a ideia que o documento pode levar para agentes externos que vão participar da COP 30, a ser realizada em Belém, em novembro.

“Entraremos na COP com um documento oficial do governo que diz que o setor é responsável por 68% das emissões a curto prazo. Pode trazer um impacto de barreiras não tarifárias em cima do setor do agro, levando em consideração que o documento oficial diz que o agro é o principal emissor de gases de efeito estufa no país, principalmente o desmatamento. Traz um impacto direto em toda a cadeia produtiva no agro”, avalia.

Riscos para o Brasil

Rodrigo Lima, sócio-diretor da consultoria Agroicone, vai na mesma linha da CNA  e avalia que o Plano Clima ainda não tem a robustez necessária para seguir adiante.

Na avaliação de Lima, se levado para a COP como está, em sua avaliação, pode gerar problemas para o setor produtivo e o país como um todo – considerando o atual momento geopolítico, com taxações sobre produtos importados do Brasil pelos Estados Unidos de um lado e, de outro, a lei antidesmatamento da União Europeia prestes a entrar em vigor.

“Para mim, é dar munição para o inimigo. Acho que a gente tem que ser protagonista,  com muita proatividade e pragmatismo, mas o protagonismo sozinho não para em pé e corre o risco de trazer impacto para o agro do jeito que está sendo proposto. A gente vai dar munição para os Estados Unidos virem fiscalizar desmatamento. Para a Europa vir fiscalizar desmatamento”, avalia.

Segundo Lima, a fragilidade central está na metodologia adotada, a começar pelo fato de que foi criada uma divergência estrutural: enquanto o inventário oficial de emissões Brasil considera cinco setores, o Plano Clima divide em sete e realoca parte das emissões de desmatamento para a agropecuária.

“Se você é uma pessoa estrangeira, vai olhar esses dois dados e dizer: ‘Não estou entendendo’. Pode atrapalhar até a agenda de bioenergia e biocombustíveis, que não tem relação com isso tudo. O gringo pode pegar o dado e falar assim: Vocês estão produzindo biocombustíveis dentro dessa emissão, prova aí que você não está desmatando, então’.”

Além dos problemas metodológicos, assim como as entidades do agro, Lima avalia que o plano trouxe um peso de emissões agropecuárias que não reflete a realidade do setor, e que vai trazer uma responsabilidade para o setor muito maior do que deveria de fato ter.

Feitas essas ponderações, Lima avalia que o plano deveria ser revisto. “Se é para aprovar um Plano Clima, que aparentemente tem problemas – e na minha visão tem problemas – e que vai ser usado para nortear políticas públicas para os próximos 10 anos, prefiro não aprovar o plano. Ou está bem feito e bem estruturado, ou prefiro que seja revisitado e aprimorado”, conclui.

Já Ane Alencar, diretora científica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e coordenadora do Mapbiomas Fogo, defende que é preciso inserir as emissões de desmatamento na quantidade de emissões a serem abatidas pelo agro pela necessidade de engajamento do setor.

“Precisamos engajar os atores que tem um potencial de redução de emissões nesse processo. O governo colocou a parte de florestas num outro pedaço do Plano Clima. Toda a parte de florestas públicas, que é de competência do governo, está nesse outro plano clima setorial”, diz Alencar, em referência ao Plano Setorial de Conservação da Natureza.

“Se estamos falando que uma parte importante do desmatamento ocorre dentro de área privada, e deixamos isso de fora, não entendo como podemos engajar o setor na busca por reduzir essas emissões”, defendeu ela.

Em julho, numa entrevista ao site Capital Reset, Aloisio Melo, secretário de Mudança Climática do Ministério do Meio Ambiente, disse que a ideia de deslocar emissões de desmatamento para o agro “foi um trabalho nada trivial de olhar para a categoria mais detalhada das emissões [desmatamento], como ela é decomposta, e ver como está vinculada a que setor econômico, a que área de política governamental”.

O AgFeed fez pedidos de entrevistas e posicionamentos ao Ministério do Meio Ambiente e Ministério da Agricultura e Pecuária para comentar e detalhar o tema, mas as pastas não responderam ao contato até a publicação desta reportagem

Resumo

  • Plano Setorial de Mitigação da Agricultura e Pecuária, parte integrante do Plano Clima, incluiu emissões de CO2 por desmatamento na conta de redução que terá de ser feita pelo agro ao longo dos próximos 10 anos
  • O texto desagradou representantes do setor produtivo, que passaram a questionar publicamente a ideia, defendendo mudanças no Plano Clima
  • O Ministério da Agricultura e Pecuária pediu formalmente ao Ministério do Meio Ambiente para que sejam feitas alterações, em uma nota técnica obtida pelo AgFeed