Por Isabella Glatting e Carlos Aurélio Magalhães Melo*
Não é novidade que o mundo contemporâneo tem aderido cada vez mais a medidas que visam à preservação do meio ambiente.
O avanço de mecanismos de descarbonização, a difusão de metas climáticas corporativas, a modernização das normas regulatórias do mercado financeiro e a pressão de importadores, como é o caso da Moratória da Soja, colocaram a sustentabilidade no centro das estratégias de negócios, especialmente no agronegócio.
Essa mudança de paradigma elevou o patamar de cobrança sobre produtores, cooperativas e companhias no geral, exigindo rastreabilidade, conformidade socioambiental e comprovação de práticas sustentáveis.
Na COP 30, o Governo Federal apresentou um projeto que pretende inaugurar uma nova fase na agenda ambiental. Trata-se do Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), uma iniciativa que promete ser capaz de remunerar países tropicais pela manutenção e recuperação de sua cobertura florestal.
A proposta é ambiciosa e busca transformar a conservação em fluxo financeiro estável e duradouro. Contudo, em meio ao crescente número de mecanismos ambientais, entre eles créditos de carbono, metas de ESG, green bonds e compromissos de desmatamento zero, surgem dúvidas sobre como o TFFF poderá coexistir com instrumentos já consolidados na agenda climática global.
É nesse ambiente, já marcado por tensões, disputas metodológicas e elevados custos de adequação, que o TFFF chega ao debate, prometendo mais uma peça, talvez transformadora, no complexo quebra-cabeça da governança ambiental global.
O TFFF difere de mecanismos tradicionais como o REDD+ ou os mercados voluntários de carbono. Em vez de remunerar reduções de emissões ou permitir compensações, o fundo busca pagar diretamente pelos hectares de floresta que permanecem em pé ou são restaurados ao longo do tempo.
Para isso, sua arquitetura combina dois componentes centrais: um fundo de investimento internacional (TFIF), responsável por captar recursos de países, bancos multilaterais e investidores privados; e o chamado “Mecanismo TFFF”, incumbido de monitorar resultados, validar dados nacionais, verificar cobertura florestal via satélites e calcular os repasses.
Em teoria, o modelo cria um fluxo permanente de remuneração, desvinculado de ciclos políticos ou da volatilidade típica da cooperação internacional baseada em doações.
A proposta também carrega elementos inovadores. Ao privilegiar políticas estruturais e não projetos pontuais, o TFFF busca induzir mudanças de longo prazo, dando previsibilidade financeira a países tropicais. O fundo também argumenta que sua métrica, baseada em hectares e não em carbono, simplifica verificações e reduz debates técnicos que com frequência travam iniciativas ambientais.
O Brasil, que concentra boa parte das florestas tropicais preservadas do planeta, vê no TFFF uma oportunidade de transformar um ativo ambiental estratégico em fonte adicional de recursos. Em tese, o fundo poderia fortalecer programas de conservação, fomentar cadeias produtivas da bioeconomia, apoiar ações contra o desmatamento ilegal e abrir novas possibilidades de inserção internacional.
Para o agronegócio, a iniciativa poderia representar uma alternativa de alinhamento entre produção e preservação, especialmente diante da crescente demanda por comprovação de sustentabilidade em cadeias globais.
Contudo, mesmo antes de sair do papel, o TFFF desperta controvérsias significativas. A primeira delas diz respeito à própria sustentabilidade financeira do modelo. As cifras anunciadas até agora estão longe das metas ambicionadas para o lançamento, o que cria incertezas sobre a escala e o impacto real do fundo.
Além disso, como os pagamentos dependem dos rendimentos gerados pelo TFIF no mercado financeiro global, eventuais crises ou ciclos econômicos desfavoráveis podem comprometer a previsibilidade dos repasses.
Outro ponto sensível é a governança. Embora o material técnico do Governo Federal descreva uma estrutura compartilhada entre Banco Mundial, países participantes e o secretariado técnico, ainda não está claro como serão tomadas as decisões estratégicas, quem exercerá controle operacional e de que forma serão evitadas ingerências externas sobre políticas nacionais de uso da terra.
Esse debate é particularmente relevante para o Brasil, que historicamente enfrenta tensões entre autonomia na gestão ambiental do território e financiamento internacional para conservação.
Há, ainda, a interação complexa entre o TFFF e mecanismos já existentes. Apesar de o fundo afirmar que não haverá risco de dupla contagem com créditos de carbono, especialistas chamam atenção para a possibilidade de sobreposição entre iniciativas que medem florestas por métricas distintas.
Enquanto o REDD+ se baseia em emissões evitadas, o TFFF se apoia em hectares preservados, mas ambas as abordagens podem incidir sobre as mesmas áreas. Sem clareza metodológica e coordenação regulatória, o resultado pode ser confusão, insegurança jurídica ou perda de credibilidade.
Por fim, surge o desafio de equilibrar preservação e desenvolvimento produtivo. Ao atrelar pagamentos à manutenção de florestas, o fundo inevitavelmente pressiona decisões políticas relacionadas à expansão agrícola, infraestrutura e uso do solo. Isso exige prudência para que incentivos de conservação não se transformem, na prática, em mecanismos de restrição ou condicionamento externo ao direito de produzir, especialmente no Brasil, país cujo agronegócio desempenha papel essencial na economia, nas exportações e na segurança alimentar global.
O TFFF, portanto, surge como uma proposta carregada de potencial, mas igualmente cercada de incertezas. Sua capacidade de aliar preservação florestal, segurança jurídica, viabilidade financeira respeito à autonomia na gestão ambiental do território ainda depende de uma arquitetura de governança sólida e da confirmação dos aportes anunciados.
Para o Brasil, e particularmente para o agronegócio, o fundo representa tanto uma oportunidade de liderança quanto um ponto de atenção. A maneira como o país se posiciona diante dessa iniciativa pode influenciar não apenas o futuro de suas florestas, mas também a competitividade de suas cadeias produtivas e sua inserção no crescente ecossistema global de finanças verdes.
*Carlos Aurélio Magalhães Melo é pós-graduando em Direito Empresarial pelo IBMEC/SP, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e atua como advogado da área de Agronegócio do VBSO Advogados.
*Isabella Glatting é bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogada da área de Agronegócio do VBSO Advogados.