De um lado estão as maiores tradings de soja globais com risco de perder incentivos bilionários a partir de janeiro. De outro estão pelo menos 4 mil produtores rurais impedidos de comercializar a safra em seis estados brasileiros.
A mais recente queda de braços do agronegócio envolve a chamada moratória da soja, assinada há 18 anos, que proibiu a compra da oleaginosa produzida em fazendas onde houvesse desmatamento a partir de 2008.
Há alguns anos, com o avanço de ferramentas de monitoramento por satélite e com o Cadastro Ambiental Rural (CAR), tradings começaram a barrar a compra de soja vinda de fazendas onde ficasse clara “a supressão de vegetação”, ou seja, a abertura de áreas para plantio ou construção de estruturas na propriedade.
O Código Florestal brasileiro, aprovado em 2012, permite que uma propriedade no bioma Amazônia, por exemplo, utilize 20% da área para produção, desde que preserve os 80%. Mas pelas regras da moratória, mesmo que esse desmatamento tenha sido legal, ou seja, faça parte dos 20% permitidos, o produtor fica proibido de vender a soja.
Dados da Aprosoja Brasil indicam que já há mais de 4,2 mil CPFs de produtores rurais nesta “lista da moratória” nos estados do Amapá, Maranhão, Mato Grosso. Pará, Rondônia e Roraima, não apenas impedidos de vender às tradings signatárias do acordo, mas também sem acesso a financiamentos do Banco do Brasil, por exemplo.
Fontes do setor ouvidas pelo AgFeed argumentam que as tradings já possuem todo o georreferenciamento das propriedades e sabem quais são as áreas que têm desmatamento anterior ao período do acordo.
Por isso, teriam condições de atender aos pedidos de clientes internacionais fazendo uma oferta de preços apenas a quem se enquadra nos requisitos.
“Hoje nomes de quem não tem ilícito acabam na mesma “lista suja” de quem tem alguma pendência, porque aplicar a mesma regra para todos é mais simples para as tradings", ponderou uma fonte.
Somente no estado de Mato Grosso seriam 85 municípios e 2,7 milhões de hectares afetados, o que, segundo a Aprosoja-MT, estaria levando a uma perda de receita entre soja e milho na ordem de R$ 20 bilhões.
Sem chegar a um acordo com a Abiove, que representa as grandes indústrias, os produtores ao longo do ano buscaram apoio dos políticos em cada estado. O auge da polêmica foi a aprovação de uma lei em Mato Grosso, maior produtor de soja do Brasil, estabelecendo que, a partir de janeiro de 2025, empresas que “restrinjam a produção”, exigindo leis mais rigorosas que a brasileira, perderiam seus incentivos fiscais.
“Foram firmados compromissos de ajuda mútua entre produtores e prefeitos, de que estes ajudariam os produtores com a pauta e, uma vez atendidos os interesses da classe, que eles não abandonariam os municípios. Esse elo está bem consolidado”, revelou uma fonte do setor ao Agfeed.
Já é consenso de ambos os lados que os dias estão contados para a moratória da soja do jeito que foi criada. Por isso, tradings e produtores buscam agilizar um acordo alternativo que possa substituir a regra atual.
Um dos movimentos é liderado pela deputada federal Coronel Fernanda (PL/MT), que vinha realizando audiências públicas e, no último dia 26 de novembro, apresentou formalmente uma proposta para todas as entidades envolvidas – incluindo Abiove e Anec (Associação dos Exportadores de Cereais) durante um encontro em Brasília.
A parlamentar propôs a criação do “PCAS”, Pacto de Conformidade Ambiental da Soja, onde produtores, indústrias e até representantes do Ministério Público definiriam um modelo para certificar quem está em situação regular e dar suporte aos demais para que buscassem a regularização.
“Aparentemente a proposta foi bem aceita pelos representantes da indústria e partiu deles a sugestão da participação do Ministério Público. Sem o órgão não sairemos do lugar", afirma uma fonte que participou do encontro. “A participação do MPF seria fundamental já que poderia validar e acompanhar os processos e termos de referência dentro do grupo de trabalho".
A premissa, porém, não seria o “desmatamento zero” e sim o cumprimento da legislação ambiental brasileira, principalmente o Código Florestal que permite abrir áreas em determinados percentuais, dependendo de cada bioma.
“O desmatamento ilegal, cometido como crime, tem que ser punido. Nós estamos falando daquele desmatamento que, às vezes, fica irregular, por falta de licenças, que está o pedido lá há 3 anos e não se resolve. Nós precisamos ajudar os produtores a regularizar essas situações, porque não dá para eles ficarem à margem da lei”, afirmou a deputada Coronel Fernanda, em entrevista ao AgFeed.
Como representante de Mato Grosso, onde a lei já foi sancionada, ela considera que, a partir de janeiro, a moratória acaba, por isso defende um novo acordo com urgência.
“Com o fim da moratória nós precisamos resolver para que não sejam usadas essas situações como uma desculpa para impedir que os produtos brasileiros sejam exportados, como aconteceu recentemente com o Carrefour e outras empresas francesas que estavam denegrindo a imagem do Brasil lá fora”.
O diretor executivo da Aprosoja Brasil, Fabrício Rosa, diz que a proposta do pacto e a criação do GCAS, grupo de trabalho para tratar da conformidade ambiental da soja, vai muito além da questão do desmatamento, à medida que pretende fiscalizar outros itens de regularização das propriedades.
“É uma proposta mais proativa, mais inteligente, um programa de melhoria contínua para o agricultor e para cadeia, não se resume só a ver quem desmatou ou não”.
O AgFeed também conversou com o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado federal Pedro Lupion, que se disse preocupado.
“É um tema que a gente tem que enfrentar, é um tema muito grave. Isso passa muito também sobre os posicionamentos dos acordos comerciais de União Europeia e do Brasil”, disse.
Lupion se refere a proposta que tramita na Câmara dos Deputados para estabelecer o que tem sido chamado de “reciprocidade”, ou seja, só permitir que o Brasil feche acordos com países que tenham legislações ambientais compatíveis com a brasileira.
A FPA argumenta que a exigência de preservação dentro das propriedades é muito mais rígida no Brasil e que não há paralelo em outros países, onde, para preservar, são normalmente os governos que dão suporte financeiro.
Indústria se mobiliza
Após a reunião que tratou do “Pacto da Soja”, tanto Lupion quanto Coronel Fernanda dizem que ouviram elogios por parte dos representantes da Abiove, indicando que a proposta seria positiva.
Na semana passada, no entanto, o jornal britânico The Guardian publicou uma reportagem sobre uma possível movimentação das tradings no Brasil para encontrar um modelo que substitua a “moratória da soja”.
O AgFeed apurou que uma das propostas da Abiove é não mais monitorar fazendas inteiras, mas sim os “polígonos” deflorestados legalmente. Essa ideia já teria sido apresentada em audiências que a Câmara dos Deputados vem realizando desde o ano passado.
Na prática, um produtor rural que desmatou 100 hectares de um total de 900 hectares por exemplo, poderia vender a produção dos 800 hectares regulares.
Na visão da Aprosoja, essa é uma medida “paliativa”, que não resolve o problema, já que os entraves jurídicos envolvendo aqueles que estão na “lista suja” vêm se estendendo para diferentes setores e afetando até familiares do produtor alvo da sanção.
Outro argumento usado pelos produtores é de que existem municípios bastante jovens, para os quais a regra ainda seria um entrave. “Se fosse validada, cerca de 1,6 mil produtores ainda teriam a propriedade inteiramente bloqueada e ficariam fora do mercado”, pondera uma fonte do setor.
Ainda esta semana haverá uma reunião do conselho da Abiove que deve aprofundar a discussão da proposta.
Em nota emitida na última semana, a entidade afirmou que após o início dos debates sobre a moratória entre produtores e os poderes executivo e legislativo do Mato Grosso as “discussões se estenderam a outros estados da federação, culminando com a aprovação de leis estaduais que prejudicam significativamente os signatários da Moratória da Soja.
Uma legislação federal semelhante está sendo analisada atualmente no Congresso. Além disso, o órgão antitruste brasileiro (CADE) está investigando a iniciativa".
No documento, a Abiove afirma ainda que em todos os fóruns, “manteve sua posição de defesa da Moratória da Soja, buscando equilibrar as demandas de agricultores e consumidores, incluindo atualizações no modelo atual para garantir sua eficácia”.
Enquanto isso, a Coronel Fernanda confirmou ao AgFeed que uma reunião do grupo de trabalho foi marcada para o dia 17 de dezembro, em Brasília.
O que não se sabe é se uma proposta das indústrias será apresentada no encontro ou se as tradings apenas se preparam para lidar sozinhas com o cenário de corte nos incentivos de Mato Grosso a partir de primeiro de janeiro, o que pode ser feito junto às ONGs, como ocorreu no acordo original da moratória.
Para o diretor-geral da Anec, Sergio Mendes, é fundamental levar os produtores para a mesa de negociações, a fim de encontrar um acordo que envolva os dois lados.
“Perspectiva de ajustes do acordo sempre há, é preciso considerar a importância do produtor rural, mas também é preciso cautela para que não coloquemos a perder quase duas décadas de avanços na questão ambiental", pondera.
Para tanto, Mendes defende que seja discutido um modelo que incentive o produtor a recuperar áreas degradadas com a associação de cultivos que possam gerar renda adicional.
Ele cita como exemplo o cacau, que é um fruto típico do bioma Amazônia e vem sendo usado na recuperação de áreas com potencial de retorno financeiro.
Mendes revela ainda que Anec e Abiove estão avaliando a proposta da deputada coronel Fernanda e que devem enviar uma resposta em breve. "Certamente teremos algumas sugestões de ajustes", completa.
Com reportagem de Juliana Ribeiro.