A entrevista para o AgFeed começou minutos depois de a atleta americana Simone Biles conquistar a medalha de ouro da ginástica artística na categoria individual geral, nos Jogos Olímpicos de Paris.
“Ela é maravilhosa, né?”, perguntou Sheilla Albuquerque, CEO da fabricante de bioinsumos Solubio. Nos olhos e no sorriso, havia o brilho de quem falava da maior ginasta de todos os tempos. Mas não só dela.
“Quatro anos atrás, nas olimpíadas de Tóquio, a Simone estava super pronta, preparada, mas sofreu um burnout. Então ela decidiu parar no meio da competição, para cuidar da saúde. Se fosse uma fratura física, todo mundo entenderia”, lembrou.
“Mas, como era uma condição mental, disseram que ela era fraca, que estava desistindo. Agora ela voltou para ganhar tudo, né?”, disse Sheilla. “Acho que eu me conecto completamente com a história dela. Não que eu seja uma Biles, tá?”
Sheilla pode não ser uma Biles. Mas há muitos traços em comum entre as trajetórias e as missões de ambas.
Assim como a ginasta norte-americana, Sheilla começou a trabalhar muito cedo, aos 14 anos, como jovem aprendiz. “Tudo que me davam para fazer, eu fazia para matar, entendeu?”, recorda. “Eu vinha numa intensidade que... cara, e eu sou uma pessoa competitiva pra caramba, então eu fui galgando, galgando e cheguei”.
Formada em Administração, aos 44 anos se tornou CEO da AgroGalaxy, uma das maiores redes varejista de insumos agrícolas do País, que fechou aquele ano com receita líquida de R$ 11,6 bilhões.
“Só que quando eu cheguei, eu já não tinha ar... eu me exauri no processo de chegar aonde eu queria.”
Como Simone, Sheilla alcançou ao topo da carreira. Como Simone, Sheilla largou tudo para cuidar da saúde mental. Como Simone, Sheilla foi criticada e incompreendida. E, como Simone, Sheilla está de volta. Mais forte.
Hoje à frente da Solubio, além de suas metas corporativas, ela assumiu outra, esta pessoal: contar sua história, como forma de alertar às outras pessoas sobre os riscos do burnout.
Reconhecida como doença pela Organização Mundial da Saúde em 2022, o burnout (ou Síndrome do Esgotamento Profissional) é um distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico.
Segundo a Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt), cerca de 30% dos trabalhadores brasileiros sofrem de burnout. Grande parte não se dá conta.
“Eu deixei isso chegar num ponto em que me levou a um esgotamento tanto emocional como físico”, diz Sheilla. “Eu devia ter feito correções de rumo antes, para não precisar de uma parada total para manutenção. As pessoas têm que se permitir falar sobre saúde mental”.
No depoimento a seguir, Sheilla fala abertamente sobre esse momento decisivo de sua vida e de sua carreira, sobre como ela entrou em burnout e como, com apoio da família e também dentro do ambiente profissional, está conseguindo superar esse desafio.
Preocupada demais para notar os sinais
“Eu não tive um burnout por ser CEO da AgroGalaxy [durante 1 ano e 2 meses, entre setembro de 2022 e outubro de 2023]. Foi pelos 32 anos de trabalho sem me permitir descansar de maneira adequada.
Uma hora o copo transbordou, mas ele não estava vazio. Veio enchendo aos poucos, por décadas. Eu trabalhava 12, 13, 14 horas por dia. Quando saía de férias, só tirava períodos de uma semana. E sempre com o celular ligado.
O varejo no agro é extremamente complexo. [Em 2023, a receita líquida da AgroGalaxy caiu 19%] A AgroGalaxy tinha nove empresas compradas, nove culturas diferentes, nove sistemas diferentes, equipes diferentes... Eu passava o dia vendo milhares de informações, tendo que resolver milhares de questões. É como se a minha cabeça fosse um dínamo que ia processando.
Quando anoitecia, eu não conseguia dormir. Foi isso que pegou. Eu fechava os olhos e o sono não chegava. Minha mente ficava tentando resolver os problemas que eu não havia conseguido resolver durante o dia, numa velocidade absurda.
“Esses sinais já estavam comigo desde fevereiro de 2023, mas, como eu tinha várias coisas para resolver, me recusava a parar. Eu conseguia desempenhar, conseguia conversar, conseguia trabalhar.
Eu comentava com as pessoas: ‘não dormi de novo, você acredita?’, e nem percebia quanto aquilo era um problema. Estava muito ocupada para perceber. Fiquei assim por quatro meses”.
O dia do estalo
“Eu tive um estalo no dia em que eu parei de comer.
Eu não conseguia pôr a comida na boca. Simplesmente não descia. Eu comia a primeira garfada, comia a segunda e não levantava mais o garfo. Não conseguia mais. A sensação de angústia era tanta, que eu simplesmente não tinha apetite.
Quando comecei a não comer, o corpo ficou fraco. Aí eu pensei: está na hora de procurar uma psicóloga”.
O diagnóstico
“A psicóloga olhou para mim e falou: ‘Filha, você está com burnout. Olha para você. Precisa ir hoje num psiquiatra. Precisa voltar a dormir hoje’.
Dois dias depois, consegui ir a um psiquiatra. Ele falou: ‘é burnout mesmo, você precisa de uma licença médica’. Eu respondi que não tinha condição, havia muito trabalho para fazer.
“A dificuldade de sair vem de você não se permitir não dar certo. Você tem que dar certo. Você é a primeira mulher nisso, você foi a primeira que fez aquilo...”
Aí ele perguntou: ‘você já está sentindo a dor nas pernas?’ Eu estava, era muita dor. ‘Daqui a três meses você vai parar de andar e, com mais três, vai precisar de ajuda para tomar banho’.
O psiquiatra me passou um entorpecente de elefante e falou: ‘o remédio é só um paliativo. Não faz o serviço para você. Você tem que mudar seus hábitos, tem que mudar sua vida’.
O médico quis me dar seis meses de atestado. Eu chorei e pedi: não, me dá só 15 dias. Eu vou superar isso em 15 dias”.
A licença
“Eu tirei os 15 dias de licença, mas não ajudou. Com o entorpecente para elefante, eu voltei a dormir. Mas não a comer.
Era só pensar nos problemas que estariam à minha espera no trabalho que os batimentos cardíacos passavam de 80 para 140.
Ali eu já estava absolutamente esgotada. Não processava mais informação. Era como se eu tivesse... nunca usei nada, não bebo, não fumo, nada, zero, mas parecia que eu havia tomado estimulantes e ficado hiperativa, até chegar a uma exaustão.
Mesmo assim, não pedi para sair da AgroGalaxy. Passados os 15 dias, eu voltei para o escritório”.
A dificuldade de sair
“A dificuldade de sair vem de você não se permitir não dar certo. Você tem que dar certo. Você é a primeira mulher nisso, você foi a primeira que fez aquilo...
Você olha para os 2.700 funcionários da AgroGalaxy, olha para as pessoas que confiaram em você para aquele cargo, olha para as mulheres que estão se inspirando em você e então fala: eu não posso falhar. Não tenho esse direito. Vou arrebentada, mas vou.
Até o ponto em que o corpo fala para você: o problema é seu, eu vou te desligar”.
O afastamento
“Eu sou gordinha, cheinha. Mas quando eu voltei para a AgroGalaxy, estava com 15 quilos a menos e com os olhos fundos. A Larissa [Larissa Pomerantzeff, conselheira de Administração da AgroGalaxy] foi almoçar comigo e viu que eu não conseguia comer.
Perguntou o que estava acontecendo e eu contei sobre os médicos. A Lari falou: ‘Está todo mundo vendo o que você tá passando, só que a gente não quer desrespeitar. A gente vai te apoiar, mas você precisa decidir o que vai fazer da vida’.
Naquele dia, o Sebastian [Sebastian Popik, CEO do fundo de investimentos Aqua Capital, controlador da AgroGalaxy], me ligou e falou: ‘Sei que é muito difícil se desconectar do trabalho, então não foi você que pediu, tá? Sou eu que estou te colocando de licença. Fecha o computador, vai embora para casa, a gente vai cuidar de tudo’.
Ele me perguntou quem eu achava que podia ficar no meu lugar e eu respondi que fazia sentido trazer de volta o Welles [Welles Pascoal, fundador da AgroGalaxy. Ele era o antigo CEO e retornou ao cargo].
O pessoal do Aqua foi maravilhoso. Me ajudou, me blindou, pediu para as pessoas não falarem comigo de trabalho.
“Se você quer ajudar alguém nessa condição, diga a ela que vai passar”
Eu voltei para casa e jantei gostoso, fazia quatro meses que aquilo não acontecia. A gente foi a uma tratoria. Eu comi, comi, comi muito, dei risada. Foi o dia em que a gente conseguiu conversar, falamos por umas duas horas.
Eu, que sou a louca do celular, que fico o tempo inteiro olhando, não toquei no telefone. Meu marido e as crianças comemoraram: ‘puxa, minha mãe voltou’.
Foi o primeiro dia, em muito tempo, que eu senti uma paz. Parecia que tinha saído, sei lá, um caminhão, uma carreta lotada das minhas costas”.
O que não dizer a alguém com burnout
“A pessoa com burnout esgotou uma energia vital. Me dava um ódio quando alguém que nunca passou por isso vinha e dizia: ‘vamos lá, levanta’.
A melhor coisa que me disseram nessa hora foi: ‘eu já estive aí nesse lugar onde você está e posso te dizer que vai passar’. Isso é um alívio, um bálsamo. Se você quer ajudar alguém nessa condição, diga a ela que vai passar”.
A recuperação
“As tarefas das primeiras duas semanas eram conseguir levantar da cama, tomar banho, comer e ler a Bíblia. Quando eu conseguia essas quatro coisas, eu já me dava parabéns, porque era um esforço brutal.
Quando você perde a emoção, precisa empurrar o corpo para as coisas mais simples. Você quer ter energia e vontade, mas elas não existem e você não tem de onde tirar.
O médico falou que eu precisava de uma atividade física e aí eu me encontrei no pilates. Era uma quinta coisa para fazer no dia. Na terceira semana, eu consegui levar minha filha na escola: seis tarefas diárias.
Passadas quatro semanas e com os antidepressivos trazendo resultados, eu consegui fazer as coisas sem esforço.
Quando deu quatro meses de licença, eu já estava de saco cheio de ficar em casa”.
A volta
“Aí liguei para o Sebastian e falei: me arruma qualquer coisa para fazer.
Conversei com o meu psiquiatra e ele me liberou, com duas condições: ‘não trabalhe mais de quatro horas por dia e fique fora da AgroGalaxy, porque a sua questão emocional está muito conectada lá’.
O Sebastian me deu uns dois ou três projetos para investigar e, logo depois, surgiu a oportunidade de ser People and ESG Operating Partner do Aqua.
Ainda não era uma coisa super do negócio, achei que seria providencial para terminar a minha recuperação. Desempenhei esse papel por sete meses.
Quando o Aqua negociava uma participação majoritária na Solubio, o Alber [Alber Guedes, fundador da SoluBio] me falou: ‘você vai ter que ser a CEO’.
Falei: eu não quero mais ser CEO. Eu vou te dar a ajuda que você quiser, mas eu não preciso ser CEO”.
A solidão do CEO
“Ser sozinho é diferente de solitário. Sozinho é um isolamento que você escolhe. Solitário, você fica sem escolher.
CEO é um cargo solitário. O ar é rarefeito no topo, né? Eu adoro estar cercada, gosto de barulho de gente, gosto de tomar decisões em conjunto. Quando me tornei CEO na AgroGalaxy, eu não estava preparada para esse descolamento”.
A volta ao comando
“Eu gosto muito da Solubio, uma empresa que contribui para o alimento ser cada vez mais saudável e o solo, cada vez mais vivo. Fazer o bioinsumo crescer no Brasil e no mundo é uma ideia que me empolga, que me entusiasma.
Mas eu tinha medo de falhar, de não dar certo como CEO. Então eu falei, não, não, não. E o Alber disse: ‘vem, vem, vem, eu não abro mão, você tem que vir’.
Então em abril de 2024 eu me tornei CEO da Solubio.
Mas fiz isso com a determinação de não ser uma CEO solitária. Certas decisões eu vou tomar sozinha, sou totalmente confortável com isso. Mas não todas. Quero um time que jogue junto comigo”.
Aprendizado: dizer não
“Eu tinha muita dificuldade de dizer não. Mas depois que você vê a morte cara a cara, você conclui que é melhor repensar.
Na Solubio eu passei a dizer não para coisas que posso delegar para alguém. Passei a ser seletiva no que eu vou participar. Se for uma reunião ‘for your information’, me manda o material que leio em seguida.
“Eu tinha muita dificuldade de dizer não. Mas depois que você vê a morte cara a cara, você conclui que é melhor repensar”
Estou dizendo não para a ambição de ser multitarefas. Quando você tenta fazer três coisas ao mesmo tempo, nenhuma sai bem feita. Você tem uma sensação de produtividade, mas acaba deixando tudo mal-feito.
Estou me comportando de outra forma. Isso não quer dizer que eu não estou trabalhando bastante. Estou viajando, estou indo conhecer os clientes, estou dedicada àquilo que, de fato, é importante.
Na SoluBio, a gente escolheu três prioridades. Só vai incluir uma quarta quando uma das três estiver resolvida, para não entulhar as pessoas”.
Aprendizado: aceitar a incerteza
“Na AgroGalaxy eu me sentia responsável pelo incontrolável: a cotação do dólar, o preço da soja, o impacto da fala do presidente, se o cliente ia ou não pagar.
Eu fiz muita terapia para respirar fundo e pensar: isso aqui eu não controlo, então eu não me preocupo.
Não me preocupar é diferente de não me planejar. Planejar é se preparar para o futuro, é trabalhar no curto, no médio e no longo prazos. A preocupação, hoje, consome as forças que poderiam resolver o problema amanhã”.
Aprendizado: a importância da carreira
“Quando me perguntavam ‘quem é você?’, eu respondia contando a minha história profissional: comecei como jovem aprendiz, fiz tarará, tarará, tarará, sou mãe da Dani, da Mel, esposa do Clodoaldo. Também sou pastora e gosto de cantar. Era assim.
Isso está errado. Você, por exemplo, não é um jornalista. Você está jornalista. Você é outra coisa. Mas a nossa sociedade, principalmente a ocidental, tem quase uma idolatria com o trabalho.
Ele ocupa um espaço muito grande na nossa vida, a ponto de gente associar à nossa identidade, ao nosso valor como pessoa.
Eu coloquei a carreira num lugar que não era dela. Num lugar onde ela era absoluta e todo o resto era... adjacente. Eu idolatrei... Isso é um perigo. Parecia que eu estava dentro de uma bolha. Eu não via minhas filhas. Assim: eu via, mas não via.
Hoje eu responderia à pergunta mais na linha: sou uma filha de Deus que está nessas posições, nesses papéis. Mas esses papéis não definem quem eu sou. Portanto, eu posso trocar quantas vezes forem necessárias”.