O descumprimento de contratos de entrega por cafeicultores e o uso de instrumentos de financiamento de médio prazo e em dólar para rolagem de dívidas de curto prazo. A disparada nos preços da commodity e do dólar, além de acusações contra instituições financeiras na evolução de uma dívida bilionária.

Assim foi desenhada a crise do Grupo Montesanto Tavares, um dos maiores exportadores de café do País, responsável por 8% das vendas brasileiras da commodity no exterior.

Uma crise que começa em meados de 2021, com a quebra da safra 2021/2022, e culmina com a disparada nos preços do grão em um período de seis meses no ano passado.

Uma crise que passa por tentativas de acordos com credores, chamados de “hostis”, e chega ao pedido de recuperação judicial no final do mês passado para renegociar um passivo de R$ 2,13 bilhões.

O drama do Montesanto Tavares está detalhado na petição com 48 páginas protocolada na 2ª Vara Empresarial de Belo Horizonte (MG), obtida pelo AgFeed.

Com receita de R$ 2,6 bilhões e 166 mil toneladas de café comercializadas para 58 países em 2023, a companhia é formada por duas tradings: a Atlantica Coffee e a Cafebras.

Fundada em 2000 e com operações em quatro municípios mineiros - Belo Horizonte, Varginha, Caparaó e Manhuaçu - a Atlantica tem um armazém com capacidade para processar 300 mil sacas de café por ano e para armazenar outras 250 mil sacas.

A Cafebras nasceu em 2013, em Patrocínio (MG), atende um nicho de mercado de cafés especiais e tem 10% do capital da japonesa Itochu Corporation. Grande parte da rede do Montesanto Tavares recebe o café de 2 mil pequenos produtores, que representam 90% das compras da companhia.

Parte desses produtores teria sido responsável pelo início da crise da companhia, segundo o documento. Em 2021, com a quebra na safra brasileira, muitos cafeicultores não teriam entregue (ou teriam postergado a entrega para o ano seguinte) o produto contratado pelas tradings.

Para cumprir acordos fechados de venda ao exterior, as duas empresas afirmam ter sido levadas a comprar no mercado spot os produtos por preços muito maiores. Para isso, tomaram crédito emergencial na forma de Adiantamentos em Contrato de Câmbio (ACCs)

Instrumentos comuns para exportadores, com os ACCs as companhias recebem empréstimos em dólar atrelados ao valor contratado a receberem no futuro pelo café exportado.

Esse crédito deveria ser utilizado para o pagamento de toda a operação de um produto já negociado, mas, no caso do Montesanto Tavares, foi gasto na compra do café para repor o não entregue.

“Atlantica e a Cafebras vivenciaram cenário no qual o não recebimento do café provocou uma defasagem no ativo das companhias, ao mesmo tempo em que a elevação dos preços e a consequente necessidade de obter crédito para comprar café e honrar contratos com clientes provocou a elevação no seu passivo. Deu-se origem, então, a um endividamento bancário que terminou desencadeando a crise financeira atual”, informou o Montesanto Tavares no pedido de recuperação judicial.

No documento, o grupo admite “que pela força da conjuntura e da exigência imperiosa das instituições financeiras”, as empresas “passaram a se valer dos limites velados das ACCs que lhes eram disponibilizados” para rolar dívida de curto prazo.

Até maio de 2021, antes da crise, a média semanal de captação com ACCs foi de US$ 1,4 milhão, enquanto a média de liquidações foi de US$ 1,2 milhão. Mas entre junho de 2021 e julho de 2024, a média semanal de captações passou a US$ 5,7 milhões e a de liquidações para US$ 4,7 milhões.

Apesar de ser o tomador do dinheiro, o grupo exportador tenta sustentar, no pedido de recuperação judicial, que as instituições financeiras teriam concedido crédito sabendo que o objetivo não era para operações de exportação.

“De fato, como era de ciência das instituições financeiras, o objetivo das captações era completamente diverso daquele ao qual o ACC é destinado”. No documento, a companhia cita que peritos apontaram que em 52 ACCs faltavam dados básicos sobre as operações de exportação a que se refeririam os adiantamentos.

Avalanche

A bola de neve do endividamento só cresceu com os empréstimos em dólar de ACCs desde 2021. Mas se transformou em uma avalanche a partir de maio de 2024, com a disparada do preço do café para recordes históricos.

Como grande exportadora, a companhia precisa desembolsar recursos para cobrir as “chamadas de margem” nas bolsas em operações de entrega futura. Nessas operações de hedge, são necessários aportes das exportadoras para corretoras durante a alta nos preços, como no ano passado.

De acordo com o exposto no pedido de RJ, esses compromissos com derivativos pelas tradings do grupo eram de R$ 50 milhões em maio de 2024, ou 74% da receita a receber com café embarcado. Mas saltaram para R$ 470 milhões em novembro de 2024, ou 158% da receita com o café embarcado.

“Nesse cenário, as recuperandas empenharam-se em obter a reordenação de suas operações financeiras com bancos e corretoras de seu habitual trato, mas as expectativas não foram atendidas”, relatou o grupo no documento.

“Com efeito, o gesto hostil de algumas das instituições financeiras no sentido de não prorrogar os prazos das linhas de crédito e declarar o vencimento de obrigações, exigindo o imediato adimplemento das recuperandas, vem impactando a operação das empresas e levando-as a uma grave instabilidade”, completou.

Sem acordo, o Montesanto Tavares conseguiu na Justiça um “stay period” de 60 dias, prorrogado por mais 30 dias para uma última tentativa de renegociar as dívidas sem a execução de garantias ou pagamentos adicionais.

O prazo terminaria nesta quinta-feira, 6 de março. Mas a companhia se antecipou e recorreu à recuperação judicial.

No documento, a companhia informa que não existem dívidas relevantes de outra natureza, além das financeiras, seja com empregados, fornecedores ou tributárias, “concentrando-se a crise verdadeiramente no endividamento bancário”.

De fato, grande parte do valor dos 400 débitos com credores relacionados nos anexos ao plano é com instituições financeiras.

O maior credor, com mais de um terço do passivo declarado, é o Banco do Brasil. São US$ 128,8 milhões, ou cerca de R$ 741,9 milhões a receber pelo câmbio atual. Banco Pine, com R$ 166 milhões, e Santander, com R$ 159 milhões, completam o pódio dos credores.

Apesar de a dívida declarada para a recuperação judicial do Montesanto Tavares ser de R$ 2,13 bilhões, o passivo que consta na relação de credores é de mais de R$ 4 bilhões. Segundo Daniel Vilas Boas, advogado no processo, isso ocorre porque dívidas feitas por uma empresa têm como avalista outra empresa do grupo e, assim, o valor é contado duas vezes.

O processo foi distribuído ao juiz Murilo Silvio de Abreu, da 2ª Vara Empresarial de Belo Horizonte (MG), o mesmo que acompanhou os processos anteriores relativos ao “stay period” que fracassou.

Antes de aceitar ou rejeitar a demanda recuperação judicial, Abreu nomeou um perito para certificar se a empresa realmente está em atividade.