O que faria um alto executivo de uma multinacional do agro, com trajetória de mais de duas décadas na mesma empresa, decidir trilhar novos caminhos? Um ano sabático? Uma oportunidade em outro país?

Até pode ser, mas no caso de Luciano Souza, que até poucos meses era diretor comercial da ADM, com uma carreira de 26 anos na gigante norte-americana, a razão de tudo é o etanol de milho - ou melhor, o etanol de milho produzido por um dos maiores empresários de Mato Grosso, Joci Piccini.

Em entrevista exclusiva ao AgFeed, Souza contou os detalhes do projeto que fez brilhar seus olhos e dar uma guinada na sua carreira.

“Tenho uma relação de amizade e uma relação comercial com a família Piccini, principalmente com o Joci, de longa data. Vínhamos conversando sobre os negócios deles e a ideia das usinas de etanol já vinham amadurecendo há algum tempo”, lembrou.

São duas novas usinas de etanol de milho em construção, que totalizam investimentos de R$ 1,85 bilhão. Além de recursos da família Piccini, o projeto envolve outros sócios, incluindo fundos, e negocia com potenciais investidores.

Joci Piccini é figura tradicional do agronegócio de Mato Grosso, especialmente na região de Lucas do Rio Verde, onde, nessa última eleição, foi eleito como vice-prefeito da cidade.

O empresário é um dos idealizadores da Fundação Rio Verde, de pesquisa e desenvolvimento tecnológico na agricultura, que deu origem a maior feira de tecnologia agrícola de Mato Grosso atualmente, a Show Safra, que ocorre em março, em Lucas do Rio Verde.

Piccini tem 90 mil hectares de lavouras só na primeira safra, pelo que apurou o AgFeed. Além disso, o grupo possui negócios em diferentes áreas, como confinamento de gado, concessionárias Case e New Holland e até postos de combustíveis.

Ao encontrar o AgFeed recentemente, Joci Piccini se mostrou entusiasmado com o projeto do etanol, fez questão de mostrar as fotos das obras já adiantadas, mas disse que a entrevista ficaria por conta “do nosso CEO”, Luciano Souza, o executivo que deixou a ADM.

Souza disse que entre o convite recebido no primeiro semestre e a saída da ADM foram cerca de dois meses. Resolveu aceitar porque era “uma proposta totalmente diferente”, não era trocar de posição ou assumir cargos mais altos. Joci o convidou a montar duas empresas “do zero”. Já está dirigindo os negócios e passará a ser sócio, participando dos resultados que atingir.

“É uma empresa em que eu acredito, que cuida também das pessoas. Estamos falando de combustível verde, vamos trabalhar em equilíbrio com o meio ambiente. São culturas que eu aprendi durante todos os 26 anos (na ADM), são valores e cuidados que eles também querem implementar aqui. Então é formar um time, essa cultura de trabalho para, de alguma maneira, ter uma empresa sólida, uma empresa também perene”, afirmou Luciano.

Duas usinas greenfields

O projeto envolve duas empresas distintas. A primeira é a RRP Energia, controlada basicamente pela família Piccini, que está construindo uma usina de etanol de milho no município mato-grossense de Tapurah. As obras já estão 70% concluídas.

“Na primeira fase (de Tapurah) vamos processar mil toneladas (de milho) por dia. A obra termina em março e nossa expectativa é começar a operar em abril de 2025”, revelou Souza.

Para a segunda fase, segundo o executivo, todos os equipamentos já foram comprados e contratados. Serão mais 1,7 mil toneladas de milho por dia.

Portanto, assim que entrar em operação, ao mesmo tempo, já começam as obras da fase seguinte. “Nós vamos chegar na safrinha 2026 com 2,7 mil toneladas por dia.”

Do total de milho processado, 43% vira etanol, 32% se transforma em DDG e o restante produz óleo. A expectativa é produzir cerca de 1,3 milhão de litros de etanol por dia até 2026.

O investimento em Tapurah é de R$ 650 milhões na primeira fase e pode chegar a R$ 450 milhões na segunda etapa.

A segunda usina que está sendo liderada por Joci Piccini é na cidade de Diamantino, também em Mato Grosso. Lá as obras já foram iniciadas, porém a expectativa é de que a produção comece até julho de 2026, até que cheguem todos os equipamentos.

A unidade de Diamantino terá sua primeira fase com 1,5 mil toneladas de milho processadas diariamente. Serão investidos R$ 750 milhões no projeto.

Neste caso, trata-se de uma outra empresa, a Parecis Bioenergia, que tem, além de Piccini, mais uma família entre os sócios, além de quatro fundos investidores, que o executivo prefere não revelar por enquanto.

“São pessoas que se conhecem, que têm uma confiança. Analisaram muito o negócio, avaliaram bastante, mas acreditam também nas pessoas”, ressaltou.

Souza conta que, mesmo antes dos ajustes societários, a família Piccini já foi adiantando a compra dos equipamentos e o andamento das obras em função do timing.

Sobre o financiamento do projeto, por enquanto os sócios estão seguindo o cronograma de aportes próprios, mas “em algum momento haverá captação no mercado, as conversas estão ocorrendo”, disse.

Diferenciais competitivos

A ideia é acompanhar com rapidez o crescimento desse setor, que deverá ter pelo menos 15 novas usinas de etanol de milho entrando em operação no futuro próximo, segundo ele. Até agora era um mercado dominado pela Inpasa e pela FS, empresas que também seguem com investimentos bilionários para expandir a produção.

“Naturalmente, o boom de novos entrantes cria certos desafios de comercialização, da originação de milho, da comercialização do etanol e do DDG. Mas ainda assim, eu vi uma certa diferença no grupo (Piccini)”, disse Souza.

Os “diferenciais” de Joci Piccini nessa corrida pelo etanol de milho realmente são significativos. Um deles é a forte atuação do grupo na área agrícola. Com dezenas de milhares de hectares plantadas, já pode ser ele mesmo um grande fornecedor das usinas, mas certamente também passará a ser um importante comprador de milho no estado.

Nos cálculos de Luciano Souza, o grupo vai precisar de 2 milhões de toneladas de milho por ano, por isso deverá comprar de diferentes regiões.

“Seremos originadores de milho nessas regiões, fomentadores. Em algum momento vamos estar participando também de operações de barter, de crédito, para fomentar a agricultura”.

Os sócios vêm também ampliando a atuação em confinamentos – destino certo para pelo menos parte da produção de DDG que será criada.

“Com a nossa chegada, ocorre uma transformação nessas regiões, porque você aumenta o confinamento, você muda o perfil da pecuária, com mais oferta de milho e DDG, é um ganha-ganha”.

Na ponta do etanol, o executivo lembra que os sócios possuem também uma distribuidora de combustível, “que poderia absorver toda a produção de Tapurah”.

“Claro que são logísticas diferentes, tem arbitragens, mas nos dá uma capilaridade, uma percepção de mercado e de consumo muito grande. Você tem uma verticalização bastante sólida da agricultura, passando pela comercialização do etanol, pelo consumo de DDG, e o mercado de óleo é um mercado super demandante”, reforçou.

Um dos gargalos na indústria de etanol é o suprimento de biomassa, já que as caldeiras dependem, por exemplo, da madeira vinda de florestas plantadas, para fazer a fábrica funcionar. Neste quesito, o grupo também já teria se preparado, com investimentos feitos.

Até mesmo nos desafios de mão de obra, para conseguir formar times que vão operar todas essas frentes de originação e comercialização, ele acredita que o grupo, em função dos demais negócios que opera, também tem uma certa vantagem.

Depois de mais de 20 anos trabalhando com diferentes grãos, mas especialmente com soja, Luciano Souza se diz entusiasmado com o futuro do etanol de milho.

“Realmente eu confio bastante, vejo que os próximos anos serão ainda bastante positivos, porque tem as oportunidades que virão ainda. Estamos falando sobre o futuro de SAF (combustível sustentável de aviação), estamos falando sobre o futuro do transporte marítimo. Tem muita coisa para acontecer”.

As empresas lideradas por Luciano Souza também entrarão no mercado com foco na rastreabilidade do milho, possibilidade de acesso ao mercado de CBios e regras de compliance e governança, com foco em sustentabilidade e políticas ESG. “Acho que cada vez mais o mercado vai estar demandando e premiando isso”.

Ainda assim, ele acredita que um dos diferenciais para enfrentar os “fortes competidores” será o conhecimento local que os sócios possuem e a capacidade de oferecer agilidade, preço baixo e “uma melhor experiência ao fornecedor e ao cliente”.

No começo, a produção de DDG deve ser voltada ao mercado interno, mas pelo know-how que Souza já possui na multinacional ADM, está previsto, mais adiante, acessar também o mercado externo.

Será a vez de enfrentar um desafio que ele conhece bem, “a capacidade de elevação”, ou seja, a logística que permite movimentar volumes para os portos e ao destino final.

“Você segregar mais um produto é mais desafiador. A gente vê no ano que vem uma safra recorde de soja, uma safra grande, ou talvez recorde, de milho. Então, a elevação vai ser um bom desafio”.