Em conversa com investidores na semana passada, o americano Bill Anderson, CEO do conglomerado industrial alemão Bayer, deixou o tradicional roteiro corporativo de lado e foi buscar em uma experiência pessoal uma analogia para os dias que enfrentará para recuperar a empresa.
O executivo, de 57 anos, relatou um acidente que sofreu há cerca de três anos. Como conta uma reportagem do jornal britânico Financial Times, ele sofreu uma queda de skate, que resultou em quatro fraturas no fêmur e que o deixou, “no limite da inconsciência, por conta da dor”.
Depois do episódio, Anderson passou por cirurgias e dolorosos meses de fisioterapia, numa prova de resistência que, na sua visão, se assemelha ao que a Bayer terá de atravessar a partir de agora.
Aos investidores, ele foi claro: A empresa, disse, está “muito quebrada”, como ele esteve há não muito tempo.
Ele, agora, está de pé, pronto para desafio de reerguer a gigante. E conviver com as dores corporativas será uma constante para ele e seus comandados nos próximos anos, como ele mesmo indicou. As terapias convencionais de cortes severos de custos, demissões e reorganizações estruturais já começaram a ser aplicadas.
Anderson acredita, no entanto, que há outros tratamentos eficazes para um dos males que abala a Bayer – e um dos mais graves, na visão de analistas e de grupos de acionistas: os efeitos colaterais da compra da americana Monsanto, em 2018, por US$ 63 bilhões.
Além do alto custo pago pela compra, a companhia convive hoje com milhares de ações judiciais, sobretudo nos Estados Unidos, em que o principal produto da divisão agrícola da empresa, o herbicida glifosato, é apontado como agente causador de câncer em agricultores que o utilizaram em suas lavouras.
Para muitos, a disputa jurídica é uma luta perdida – que pode resultar em mais de US$ 16 bilhões em indenizações a serem pagas pela Bayer. Para Anderson, ainda há batalhas a lutar nesse terreno e ele está disposto a encarar cada uma delas.
“Vamos nos defender vigorosamente”, disse Anderson. “Saudamos resultados positivos como os que vimos na sexta-feira e apelaremos de todos os veredictos desfavoráveis.”
O CEO se referia a um veredito favorável obtido pela companhia em um tribunal americano dias antes. Na semana passada, a Bayer festejou uma série de três vitórias jurídicas—foram 13 nos últimos 19 casos levados a julgamento, segundo comunicado emitido pela Bayer –, dando ânimo à estratégia adotada por Anderson de colocar a questão dos litígios entre os principais focos de sua gestão.
Se não pode vencer a guerra como um todo, Anderson acredita ser possível recuperar, com uma sequência de triunfos, parte do valor perdido pela empresa no mercado e na mente dos consumidores e agricultores. E também reduzir o impacto de eventuais novas condenações.
“Está claro que apenas uma estratégia de defesa não é suficiente. Estamos analisando o tema do litígio de todos os ângulos, dentro e fora do tribunal”, afirmou. “Isso inclui um envolvimento muito mais profundo com outras partes interessadas no domínio das políticas públicas. Inclui considerar todos os meios possíveis para encerrar essas ações judiciais para a empresa e para nossos clientes.”
Em 2020, a Bayer chegou a firmar um acordo de US$ 10 bilhões na justiça americana com a expectativa de que os processos fossem encerrados. Entretanto, os tribunais continuaram a receber queixas e a empresa adicionou mais US$ 6 bilhões em reservas para custear futuras indenizações. Anderson espera economizar parte desse total.
“Vamos fazer tudo aquilo que for gerar valor para os consumidores e os acionistas no futuro”, afirmou.
No encontro com os investidores, o CEO deixou evidente a relevância que o produto ainda tem para a empresa, fazendo uma defesa enfática da substância. Ele afirmou que “o glifosato é seguro”, mas foi além das questões de saúde, revelando como pretende direcionar o discurso em relação ao defensivo.
“É o produto químico de proteção de culturas mais utilizado no mundo devido ao papel único que desempenha em manter as ervas daninhas afastadas e proteger os rendimentos de culturas importantes, desde culturas em linha até frutas e vegetais”, disse ele.
Segundo ele, essa característica contribui para reduzir os preços dos alimentos, além de facilitar práticas como o plantio direto.
“Sem o glifosato, as emissões de carbono provenientes da agricultura aumentariam dramaticamente”, declarou Anderson, citando estudos que demonstrariam essa relação. E completou: “As ameaças à sua disponibilidade colocam em risco a subsistência dos agricultores”.
Mais uma dor de cabeça
Assim, em sua visão, uma eventual cisão da companhia, com a separação da divisão agrícola, não faria sentido. A área de Crop Science é grande geradora de caixa e com grande potencial de crescimento, segundo o CEO.
As disputas em torno do glifosato não são, porém, sua única dor de cabeça nesse sentido. Outra das apostas da companhia – inclusive como sucessor do glifosato em algumas culturas – o herbicida dicamba também tem sido alvo de contestações judiciais e até mesmo restrições de uso impostas por autoridades americanas.
No começo de fevereiro, um tribunal federal do estado de Arizona determinou a anulação dos registros dos produtos fabricados a partir da susbtância. A decisão afeta diretamente a Bayer, assim como Basf e Syngenta.
No caso da Bayer, os produtos à base de dicamba e as sementes de soja resistente ao herbicida representam entre 45% e 50% do mercado referente à cultura de milho nos EUA, também segundo informações do WSJ.
No mercado norte-americano, a proibição do uso de dicamba provocou reações de preocupação dentro do agronegócio. O comissário de Agricultura do estado de Dakota do Norte, Doug Goehring, disse que a determinação da justiça caiu como um “golpe esmagador” sobre os agricultores da região.
“Muitos produtores já haviam feito seus planos para a safra de 2024, e essa decisão vai provocar uma ruptura muito grande”, disse Goehring.
Por conta disso, ainda em fevereiro a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês) anunciou que os agricultores podem utilizar os produtos com dicamba que já estão estocado. Também os distribuidores poderão vender seus estoques até junho ou julho, a depender do estado.
A grande discussão em torno do dicamba é a sua volatilidade, que tornaria o químico mais propenso a se espalhar além das lavouras, atingindo áreas de outras culturas ou mesmo residenciais.
O produto foi bem aceito pelos agricultores, em um primeiro momento, por permitir um melhor controle de plantas que já haviam adquirido resistência ao glifosato – um problema que vem crescendo e desafiando a indústria de defensivos.
No Brasil, o produto é comercializado normalmente e não há qualquer discussão jurídica sobre a sua utilização.
O dicamba é um composto que pode ser utilizado em variedades de soja e algodão que sejam resistentes ao composto, que combate plantas daninhas de folhas largas, como buva, o caruru, a corda-de-viola, o picão-preto, dentre outras, segundo informações da Embrapa.
A própria Embrapa tem em sua página na internet uma espécie de manual para a boa utilização do químico.
São 13 itens no total, e o produtor deve ter cuidado até com a velocidade do vento e a umidade do ar quando aplicado próximo de culturas que não tenham resistência à sua atuação. A Embrapa recomenda uma distância mínima de 50 metros.
O dicamba é questionado desde seu lançamento nos Estados Unidos. Ele já havia sofrido restrições anteriores, mas desde 2020 a EPA emitiu novos registros para os produtos sem que, segundo seuys críticos, tivesse tido tempo de analisar devidamente seus possíveis efeitos.
Um estudo feito pela Embrapa Soja de Londrina, no Paraná, teve como objetivo mostrar os efeitos que o dicamba pode ter sobre uma cultura de soja não resistente ao químico.
“A interpretação conjunta dos dados demonstra que dependendo da dose e do momento em que ocorre o contato do produto com a soja, pode resultar em elevada fitointoxicação e alteração de alguns dos parâmetros avaliados”, diz o estudo dos pesquisadores da Embrapa.
Por esse motivo, em 2021, a própria Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja) manifestou preocupação com o início da comercialização de produtos feitos à base de dicamba no Brasil.
“A Aprosoja Brasil formou essa posição após a empresa detentora da tecnologia e de registro do produto Dicamba ter alterado o registro e a recomendação de uso do herbicida para uso apenas em pré-plantio e não recomendar seu uso em pós-plantio”, escreveu a entidade à época.
Na mesma nota, a Aprosoja ressalta que desde 2018 vinha “alertando as autoridades brasileiras sobre a necessidade de um regulamento mais rigoroso sobre o herbicida”.
Ainda em 2019, a Aprosoja e a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) protocolaram um ofício junto ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) tratando da preocupação causada pela liberação do uso de dicamba no país, já que somente uma variedade de soja é resistente ao produto.
Do lado das empresas, já começa um movimento para colocar no mercado novas variedades mais resistentes a herbicidas.
Um porta-voz da Bayer elogiou a ação rápida da EPA após a anulação dos registros dos produtos. “Nossa maior prioridade é que os produtores tenham os insumos e o suporte necessários para ter uma safra bem sucedida”, disse a fonte ao portal Agriculture Dive.
Um caminho adotado pela companhia tem sido investir na aceleraçãi de novas gerações de químicos e de biotecnologias. Recentemente, a Bayer anunciou, por exemplo, que trabalha em uma soja transgênica de quarta geração, que seria resistente a cinco herbicidas e a lagartas.
A soja de terceira geração já é resistente à dicamba e ao glifosato. Nesta próxima geração, que está sendo preparada para lançamento em alguns anos, as plantas também serão resistentes a 24D, glufosinato e mesotriona.
Anderson sabe que precisa manter a empresa de pé até que essas inovações cheguem ao mercado. Ele precisa de tempo. Resiliência, já mostrou que possui.
Com reportagem de Renato Carvalho.